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O trecho abaixo pertence ao novo  livro de contos Guerra de ninguém (Editora Iluminuras), do escritor Sidney Rocha. Vencedor do Jabuti em 2012 com a obra O destino das metáforas (contos). Sidney lançará o livro em 2 de dezembro, dentro da programação da Semana do Livro de Pernambuco.

 

***

I.

Esta é a história das duas meninas criadas no mesmo jardim, os pais desejando para a filha do amigo melhor destino que para sua própria filha. Se não tinham as mesmas bonecas era porque tinham mordomos e amas diferentes, e não é justo criar as beldades imaginando um mundo de rostos marcados pela igualdade, onde o jogo vai perdendo o interesse de ser jogo.

Chama-se Clara, a mais nova, ali ao lado do carrossel azul.

De vez em quando vem Anassilva, a babá, girar a roda.

Clara sempre aguarda o movimento e quando as mãos de Anassilva largam tudo rumo ao desfiladeiro, a mocinha, toda na cambraia, trinca bem os dentes de aço enquanto os cavalos empinam, galopam, atravessam o mar comendo chocolates e depois vão descendo das nuvens de volta ao jardim. Seus cabelos fazem mechas no sentido anti-horário e parecem ter gosto de sal, se algum nebuléptero voasse sobre o quintal da embaixada e atacasse a menina, como fazem nos bairros afastados. Mas os animais desse porte, devoradores de cabelos, se vão desalinhados, como ensinou Anassilva às meninas, já não existem desde muitas eras, elas souberam depois.

Clara carrega uma força a mais com ela, seu corpo levita onde as outras meninas afundam.

A outra menina, de pele transparente ao sol, também tem um carrossel no mesmo quintal. Talvez vejamos outros carrosséis ali, no entanto fiquemos nesses: nos de Clara e Carmelita: é esse o nome da outra, dos olhos de lagartixa correndo de coisa à Coisa, de árvore à Árvore, mundo a mundo, os cabelos escorridos e loiros desafiando os nepulópteros, digo, nebulépteros.

 

Nada garante, mas a tendência é que cresça uma moça saudável, de pernas fortes, sorriso de sol, há algo de vitalista se erguendo no mundo quando ela se move. Não permite que a babá gire os cavalos. Empurra ela mesma o engenho e, até que pegue embalo, ela já tem enfiado inteiros os sapatos de porcelana na areia frouxa, manchado os meiões até os joelhos, ou afundado nas poças, quando chove sobre Santiago. Quando o plantel engrena ela ainda dá duas ou três voltas de impulso para depois embarcar. Sequer monta nos cavalinhos como Clara faz tão bem, em três tempos. Carmelita viaja pela América em pé entre os alazões, o punho erguido, a outra mão tocando a crina do cavalo lilás.

Têm a mesma idade, que meses não contam. Os pais as protegem do mundo, embaixador um, militar outro, homens de boa vontade, solidários na piscina, suas esposas são cabeças sob o chapéu de palha, de bruços nas lounge chairs, raybans escondendo rostos idênticos, a pele a mesma coleção Helena Rubinstein, os camparis iguais. Os pezinhos finos com os dedões esticados chutando malemolentes o vento, crianças também, cujos carrosséis são rollyroyces. São eucarísticas e ambas leram Les misérables, Le petit prince, O reverso da medalha e O presidente castrado — claro, quanto a este, os rapazes não podem nem sonhar.

Não há nada trágico na vida das pessoas normais, esses religiosos não entendem nada sobre o dinheiro, por isso nada sabem sobre a felicidade.

Os pais das meninas discutem pouco e concordam em tudo.

Mesmo em casa, como nesse verão, no Chile, falam inglês ou, se algum criado anglofalante vem servir o gim, mudam o botão para o alemão, o tcheco, e sempre dão risadas quando a pergunta “por que estamos falando em húngaro?” aparece entre eles. Leem o jornal, comentam sobre as tournées, o embaixador precisa entender rápido as leis do rúgbi, do beisebol, e do enigmático jacktaes: é como a bocha, mas de origem saxã, onde as bolas são arremessadas por pequenos canhões de ar comprimido, os times são bem definidos no começo, no entanto, ao fim, há como que um fratricídio, um cada um por si, ou mata-mata, nome pelo qual o jogo é ensinado nas escolas dos povoados simples da África do Sul.

É missão do diplomata perfeito conhecer o dia a dia dos povos e entender suas paixões para esclarecer melhor suas vontades, diz o pai de Carmelita à mãe de Carmelita, e ela crê nele como em Platão.

Cresceram Clara e Carmelita. E nisso me enganei em tudo. A valorosa Carmelita preferiu o litoral. Clara se embrenhou na Patagônia. Nas festas na base militar ou nos encontros de toga e beca, chatos por natureza, ainda conseguiam criar para si brincadeiras de moças numa redoma, longe do mundo tolo da política.

Então, veio o golpe.

Que coisa feia.

 

 

II.

Era um tempo de tomada de decisões, não se pode ficar em cima do muro a vida inteira, disse o embaixador à filha Carmelita no jantar em casa, não se sabe o caminho ao certo, filha, vai-se caminhando, é preciso coragem porque tudo passa, mas depois, depois.

Era um tempo de tomada de decisões, não se pode ficar em cima do muro a vida inteira, disse o general à filha Clara no jantar em casa, não se sabe o caminho ao certo, filha, vai-se caminhando, é preciso coragem porque tudo passa, mas depois, depois.

Os amigos se transformaram em inimigos em todos os lugares, nas igrejas havia dois cristos agora, um, da Ascenção, sob a aura azul e outro, da Paixão, sob a poça vermelha.

Numa tarde irrepreensível, ainda em um mundo que corria por fora do vale profundo do país, as universitárias Clara e Carmelita se sentaram para tomar um refresco na San Antonio com Santa Ermida, como todas as moças faziam.

O garçom entregou o bilhete. “Senhora Clara?” “Mais admiradores da Clarinha-gostosa”, riu Carmelita. “Nada. Recado do chefe, disse Clarinha — ‘Ligar pra casa urgente’.” E foi ao telefone do balcão. Carmelita se vestia como uma bonequinha do campo, como as moças lindas nos campos de alfazema, nas embalagens dos perfumes, com seus slogans “Cheirai aos lírios dos campos”, esse mundo inteligente da publicidade.

 

Naqueles anos, Carmelita preferira o cheiro do mato. Adquirira o odor virginal das margaridas, levava vida reflexiva, onde rapazes e moças não estão pensando todo tempo no tempo futuro, embalada pelas histórias do pai, dos discos voadores abduzirem pessoas todos os dias.

Quando voltou de lá, andava como uma estaca e tinha cor de cera. “Seu pai... meu pai... meu pai acaba de prender seu pai.” “O quê?”, perguntou Carmelita saindo do transe da tarde limpa e caindo dentro do pesadelo que garantiria a sua vida rumos bem diferentes, agora. A guerra civil é bem como o jacktaes, só que com gente. Naquele maio, o general, ele mesmo, meteu uma bala na cabeça ensacada do embaixador. Se não foi ele, o dedo no gatilho não importa, a cabeça no saco, sim. Pelo menos para a menina Carmelita.

 

 

III.

Vinte anos depois, Carmelita voltou do exílio. Não havia mais embaixada nem passado nem espírito. Se havia na menina alguma força vitalista agora, se perdera tanto quanto se perdera no país, tudo quanto podia perder.

O tempo passa para os ditadores também, todos morrem. Carmelita era a médica dos seus próprios sonhos, enfurnada em pesadelos sistemicamente sonhados para fazerem seu psicanalista gozar.

Eram duas mulheres duras, agora.

Viviam na mesma cidade, não se viam, de algum modo juraram nunca falar sobre isso.

Como se diz, o destino joga porque gosta.

Só sei que noutra irrepreensível tarde, Clara e Carmelita se encontraram por acaso no café da San Antonio com Santa Ermida. Não, deixe-me ser mais preciso: quando se viraram, estavam uma diante da outra.

De fato, notaram ser duas mulheres duras, agora.

 

Alguma força superior rachou o tempo e o espaço nessa hora.

 

***

 

Então, o garçom entregou o bilhete.

“Senhora Clara?”

“Mais admiradores da Clarinha-gostosa”, riu Carmelita.

“Nada. Recado do chefe, disse Clarinha — ‘Ligar pra casa urgente’.”

Quando voltou de lá, era a bonequinha do campo, como as moças lindas nos campos de alfazema, nas embalagens dos perfumes, com seus slogans “Cheirai aos lírios dos campos”, esse mundo inteligente da publicidade.

 

“Era o quê, dessa vez?”, perguntou Carmelita.

Clara fez ar blasé.

“Nada, eles nunca dizem coisa com coisa, né?”

Sorriram.

Em algum lugar, porém, continua zoando a bala.

Ninguém que não seja um deus consegue entender as regras desse jacktaes.