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“Fazer amor é um ato sem importância, já que se pode repeti-lo indefinidamente.”

Todos voltaram os olhos para aquele que proferia semelhante absurdo.

Naquela noite, os convidados de André Marcueil no castelo de Lurance acabaram falando sobre o amor, um assunto que todos concordavam ser o mais bem escolhido, sobretudo porque havia senhoras, e o mais apropriado para evitar, mesmo nesse setembro de 1920, penosas discussões sobre o Caso [nota 1].

Lá estavam o célebre químico americano William Elson, viúvo, acompanhado de sua filha Ellen; o riquíssimo engenheiro, eletricista, construtor de automóveis e aviões Arthur Gough e sua mulher; o general Sider; Saint-Jurieu, o senador, e a baronesa Pusice-Euprépie de Saint-Jurieu; o cardeal Romuald; a atriz Henriette Cyne; o dr. Bathybius e outros. Tais personalidades diversas e notáveis poderiam ter trazido algum frescor ao lugar-comum sem esforço para atingir o paradoxo, bastaria que cada uma expressasse seu pensamento; a prática social, porém, logo reduziu os bons propósitos dessas pessoas, bem-pensantes e ilustres, à insignificância polida de uma conversação mundana.

A frase inesperada talvez provocasse o mesmo efeito que aquele, até hoje mal analisado, de uma pedra atirada num charco cheio de rãs – depois de um ligeiro desconforto, um interesse generalizado.

Ela poderia, antes de mais nada, produzir um outro resultado: sorrisos. Mas por infelicidade quem a pronunciara fora o anfitrião.

O rosto de André Marcueil, bem como seu aforismo, abriu um vazio no salão: não por sua singularidade, mas – se é que estas duas palavras podem vir juntas – por sua insignificância característica: tão pálido quanto o peitilho da camisa, ele teria se confundido com os painéis de madeira das paredes, pouco iluminados e sem o debrum nanquim da barba que ele portava como um colarinho, e de seus cabelos levemente compridos e ondulados a ferro, sem dúvida para esconder uma calvície incipiente. Os olhos eram provavelmente negros, mas com certeza fracos, pois se abrigavam por trás das lentes fumês de um pincenê de ouro. Marcueil tinha trinta anos e uma estatura média, que ele parecia gostar de diminuir ainda mais ao encurvar os ombros. Os pulsos, finos e tão peludos que lembravam à perfeição seus esguios tornozelos embainhados em seda preta – pulsos e tornozelos evocando em toda a sua pessoa uma fragilidade notável, pelo menos a julgar por aquilo que se via. Falava baixinho e devagar, como que preocupado em controlar a respiração. Se possuísse uma licença de caça, sem dúvida se leria na descrição física: queixo arredondado, rosto oval, nariz comum, boca comum, compleição comum... Marcueil encarnava tão bem o tipo do homem comum que, na verdade, isso o tornava extraordinário.

A frase se revestia de uma ironia deplorável, sussurrada como um sopro pela boca desse manequim: Marcueil certamente não sabia o que dizia, pois dele nunca se ouvira falar que tivesse amante, e supunha-se que seu estado de saúde lhe proibisse os prazeres do amor.

Fez-se um silêncio glacial, e alguém se apressou a mudar de assunto, quando Marcueil retomou: “Falo sério, senhores”.

“Eu imaginava”, murmurou a nada jovem Pusice-Euprépie de Saint-Jurieu, “que o amor fosse um sentimento.”

“Talvez, senhora”, disse Marcueil. “Basta entrarmos num acordo… sobre... o que se entende... por sentimento.”

“É uma impressão da alma”, apressou-se em dizer o cardeal.

“Li alguma coisa sobre isso nos filósofos espiritualistas na minha infância”, acrescentou o senador.

“Uma sensação enfraquecida”, disse Bathybius. “Viva os associacionistas ingleses!”

“Minha opinião quase coincide com a do doutor”, disse Marcueil.

“Um ato atenuado, provavelmente, isto é, não bem um ato, ou melhor: um ato em potencial.”

“Admitindo-se essa definição”, disse Saint-Jurieu, “o ato realizado excluiria o amor?”

Henriette Cyne bocejou, ostensivamente.

“Claro que não”, disse Marcueil.

As senhoras julgaram que deveriam se preparar para corar atrás de seus leques, ou para fingir que iam corar.

“Claro que não”, ele concluiu, “se ao ato realizado suceder um outro que resguarde aquilo que... de sentimental só acontecerá mais tarde.”

Desta vez, muitos não contiveram um sorriso. O anfitrião evidentemente lhes dava toda a liberdade para tanto, divertindo-se com o desenrolar de um paradoxo.

É fato muitas vezes observado que os seres mais fracos são aqueles que mais se dedicam – em imaginação – a proezas físicas.

Somente o doutor objetou, com sangue-frio: “Mas a repetição de um ato vital leva à morte dos tecidos, ou à intoxicação deles, que chamamos fadiga.”

“A repetição produz o hábito e a habi... lidade”, retorquiu com a mesma gravidade Marcueil.

“Viva o treinamento!”, disse Arthur Gough.

“O mitridatismo”, disse o químico.

“O exercício”, disse o general.

E Henriette Cyne gracejou:

“Ombro... arma! Um, dois, três.”

“É isso mesmo, senhora”, concluiu Marcueil, “se concordar em seguir contando até que se esgote a série infinita dos números.”

“Ou, para resumir, as forças humanas”, disse com seu lindo sotaque ciciante Mrs. Arabella Gough.

“As forças humanas não têm limites, senhora”, afirmou tranquilamente André Marcueil.

Ninguém sorria mais, apesar da oportunidade que o orador lhes oferecia: a evocação de tal teorema dava a entender que Marcueil queria chegar a algum ponto. Porém a qual? Sua expressão não dava a entender que ele poderia se aventurar pelo perigoso caminho dos exemplos pessoais.

Mas a expectativa foi frustrada: ele ficou por ali, como se tivesse encerrado peremptoriamente a discussão com uma verdade universal.

Foi de novo o doutor que, irritado, rompeu o silêncio: “Quer dizer então que há órgãos que trabalham e repousam quase simultaneamente e dão a ilusão de não parar nunca?...”

“O coração, vamos continuar no plano sentimental”, disse William Elson.

 

NOTAS

[nota 1]: Referência ao Caso Dreyfus, que dividiu a França por doze anos, de 1894 a 1906. Quando Jarry escreve o livro, em 1902,  ele supõe que o caso continuará em pauta em 1920. [A partir de nota de Annie Le Brun] (Obs.: as traduções do latim são em geral do tradutor; as demais notas,  salvo indicação contrária, são dos editores.)