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O excerto pertence ao livro O fim do homem soviético, recentemente lançado pela Companhia das Letras. Nele, a escritora e jornalista Svetlana Aleksiévitch - vencedora do Nobel de Literatura de 2015 -  examina o impacto das políticas de abertura política e econômica, realizada por Mikhail Gorbatchev, na vida dos cidadãos. No trecho abaixo, Svetlana reúne alguns depoimentos sobre o ex-presidente russo. A tradução é de Lucas Simone

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Sobre amar e desamar gorby

“A época do Gorbatchóv… Multidões enormes de gente com rostos felizes. Li‑ber‑da‑de! Todos respiravam isso. Os jornais passavam de mão em mão. Era uma época de grandes esperanças: a qualquer momento estaríamos no paraíso. A democracia era para nós um animal desconhecido. Íamos correndo para as manifestações, como loucos: vamos agora descobrir toda a verdade sobre Stálin, o gulag, vamos ler Os filhos da rua Arbat, livro proibido de Rybakov, e outros bons livros, e seremos democratas. Como estávamos errados! Todos os radinhos gritavam essa verdade… Depressa, depressa! Leiam! Escutem! Nem todos estavam prontos para isso… A maioria das pessoas não tinha posições antissoviéticas, elas só queriam uma coisa: viver bem. Para poder comprar jeans, videocassetes e o limite dos sonhos: um carro! Todos queriam roupas bonitas, comidas gostosas. Quando eu trouxe para casa O arquipélago gulag do Soljenítsin, minha mãe ficou horrorizada: ‘Se você não der um fim nesse livro agora eu expulso você de casa’. O marido da vovó tinha sido fuzilado antes da guerra, mas ela dizia: ‘Não tenho pena do Vaska. Fizeram certo em render. Pela língua comprida’. ‘Vovó, por que você não me contou nada?’, eu perguntei. ‘Prefiro que minha vida acabe, mas que você não sofra.’ Assim viviam nossos pais e os pais deles. Passaram por cima de tudo isso com um rolo compressor. Quem fez a perestroika não foi o povo, quem fez foi um só homem: Gorbatchóv. Gorbatchóv e um punhado de intelectuais…”

“O Gorbatchóv é um agente secreto americano… Um maçom… Traiu o comunismo. Jogaram os comunistas na lata do lixo, os do Komsomol jogaram no lixão! Odeio o Gorbatchóv por ele ter roubado de mim a pátria. Guardo meu passaporte soviético como meu bem mais precioso. Sim, nós enfrentávamos fila para pegar um franguinho passado e umas batatas podres, mas isso era a pátria. Eu a amava. Vocês moravam no ‘Alto Volta com mísseis’,* mas eu morava num grande país. A Rússia sempre foi um inimigo para o Ocidente, eles têm medo dela. É um espinho na garganta. Ninguém quer uma Rússia forte, com os comunistas ou sem eles. Eles nos veem como um depósito de petróleo, de gás, de madeira e de metais não ferrosos. Nós trocamos petróleo por roupa de baixo. Mas havia uma civilização sem essas roupinhas e sem esses trapos. Uma civilização soviética! Alguém queria que ela deixasse de existir. Foi uma operação da cia. Nós já somos governados pelos americanos. O Gorbatchóv foi muito bem pago para isso… Mais cedo ou mais tarde ele vai ser julgado. Espero que esse Judas sobreviva para ver a fúria do povo. Eu daria com prazer um tiro na nuca dele lá no polígono de Bútovo.** (Bate com o punho na mesa.) Veio a felicidade, né? Apareceu kolbassá, apareceu banana. Estamos chafurdando na merda e comendo só coisas de fora. Em vez da pátria, um grande supermercado. Se o nome disso aí é liberdade, eu não preciso dessa tal liberdade. Que se dane! O povo está no fundo do poço, somos escravos. Escravos! Na época dos comunistas, como dizia Lênin, era a cozinheira que administrava o Estado: operárias, ordenhadeiras, tecelãs. Mas agora no parlamento só tem bandido. Milionários em dólar. Eles tinham que ir para a cadeia, não para o parlamento. Fomos tapeados com a perestroika!

Eu nasci na URSS e gostava dela. Meu pai era comunista, me ensinou a ler com o jornal Pravda. Todo feriado nós íamos juntos para os desfiles. Com lágrimas nos olhos… Eu era pioneiro, usava gravata vermelha. Veio Gorbatchóv, e não tive tempo de entrar no Komsomol, o que eu lamento. Sou um sovok, não é? Meus pais também, meu avô e minha avó também. Meu avô sovok morreu na defesa de Moscou, em 1941… E a minha avó sovok lutou com os partisans… Os senhores liberais estão trabalhando para ganhar o deles. Querem que nós passemos a ver nosso passado como um buraco negro. Eu odeio todos eles: gorbatchóv, chevarnadze, iákovlev. Escreva com letra minúscula, de tanto que eu os odeio. Não quero ir para a América, quero ir para a URSS…”.

“Aqueles foram anos belos, ingênuos… Nós acreditamos no Gorbatchóv, agora já não acreditamos tão facilmente em ninguém. Muitos russos voltaram da emigração para a pátria… Foi tanto ânimo! Pensávamos que iríamos destruir esse barracão. Construir alguma coisa nova. Eu terminei a faculdade de letras da Universidade de Moscou e entrei na pos‑graduacao. Sonhava em trabalhar com ciência. O ídolo daquela época era Aviérintsev, toda a camada culta de Moscou se reunia para ver as aulas dele. Nós nos encontrávamos e cultivávamos uns nos outros a ilusão de que logo o país seria outro, e de que nós lutaríamos por isso. Quando fiquei sabendo que minha colega de curso estava indo embora para Israel, fiquei muito surpresa: ‘Mas você não fica com dó de sair? Tudo aqui está só começando’.

 

* Alto Volta, antiga colônia francesa na África Ocidental, atual Burkina Faso. O apelido jocoso citado no texto refere‑se à própria União Soviética.
** Prisão onde, entre 1936 e 1953, mais de vinte mil prisioneiros políticos foram executados.