machado de assis 1904

 

O excerto abaixo pertence ao livro Machado, de Silviano Santiago, que será lançado em breve pela Companhia das Letras. O autor foca nos quatro últimos anos da vida de Machado - já viúvo e se encaminhando para a morte - e, paralelamente, fala das mudanças urbanísticas do Rio de Janeiro e de sua sociedade.  

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[…] Machado de Assis se aproxima a caminhar pela rua Gonçalves Dias, vindo da rua do Ouvidor em direção à Sete de Setembro.

Para melhor observar o escritor ao longe, Laet abre uma frincha na risada que comparte com o colega.

Machado, visivelmente desnorteado, tem a pessoa de Laet como único alvo, razão maior para que, por passe de mágica, o católico fervoroso entristeça a cara sorridente e prepare de antemão a palavra de reconforto pela recente e lamentável perda da devotada Carolina. Esquece-se de dar a réplica ao colega do Pedro II. Repara melhor nos passos titubeantes e apressados do confrade que, mais próximo, lhe faz um discreto sinal. A pressa no caminhar não camufla o semblante desassossegado do viúvo, antes o escancara pela respiração arquejante e pelo movimento impaciente e nauseado dos lábios como se a mastigar alimento de difícil ingestão. Ao se aproximar, Machado de Assis sussurra frases aparentemente desconexas. Ecoam com discrição nos ouvidos de Laet. Se bem consideradas, não são compreendidas. Passam a assustar os dois bem-humorados professores.

O andar desnorteado, o semblante desassossegado e as palavras desconexas do recente viúvo desqualificam não só a expressão dos sentimentos de compaixão que vinham sendo ensaiados por Laet e seu colega do Colégio Pedro II, como também os cumprimentos afetuosos, embora tristes. Não conseguem se adiantar ao inevitável assalto do viúvo, tomado por crise.

Na estreitíssima calçada da rua Gonçalves Dias, Laet e seu colega ficam empacados que nem burros de carga; mudos e assombrados, se transformam em muro de pedras a impedir o vaivém cotidiano dos passantes. Recolhem o abraço sentido que fortaleceria e revigoraria a sensibilidade combalida do presidente da Academia de Letras, entregue ao luto cerrado desde a morte da esposa.

As curtas frases sussurradas pelo mestre saem aos solavancos, sem sentido aparente. O rosto perturbado e o corpo sem plumo, enviesado, estão de frente para os dois professores e atraiçoam o propalado estoicismo e também a elogiada retidão de propósitos do grande escritor nacional, do mesmo modo como o Santo Graal se evocado em delírio noturno pelo cavaleiro da Távola Redonda reflete o estado de confusão mental a que pode chegar o cruzado obcecado.

Chocado, Laet escancara os olhos e não acredita na cena que flagra em plena rua do centro da capital federal e à luz do sol. Atônito, julga que a dor pela perda de Carolina é que lhe transtorna a fisionomia e que as palavras são balbucios porque proferidas por criança órfã, aturdida por tragédia incompreensível. Não há como lhe passar pela cabeça que o escritor tenha exagerado no vinho e caminhe trôpego pelas ruas como um ébrio. Lembra-se, acertadamente, das crises de fundo nervoso que de tempos a tempos atacam o fundador da Academia de Letras e lhe despedaçam a couraça impermeável que agasalha a sensibilidade à flor da pele, desnudando-a. Quer desvencilhar-se do colega de colégio. Muda de assunto: recorre à confusão no trânsito acarretada pelo desentendimento entre um pedestre e o cocheiro da carroça de aluguel que vinha chicotando os cavalos e atropelando os passantes, e finalmente se queixa do vento que sopra pela brecha das ruas estreitas e lhe encarde o terno escuro com a densa poeira das demolições dos casarões coloniais. Alegando compromisso cerimonioso e urgente, Laet se despede do colega com quem zomba da reforma ortográfica proposta por Medeiros e Albuquerque.

Sozinho, Laet dá um passo até o velho enfermo e lhe dá o braço sem abraço. Com a firmeza de poste, sustenta o corpo enviesado, já curvado e bamboleante. Ao se expandir de forma desengonçada, o viúvo se entrega a ele como se à beira do desmaio. A situação exige jogo rápido e clandestino.

Laet substitui as ensaiadas palavras de condolência pela sugestão dum gole de Elixir Werneck, que lhe deve acalmar o estômago e restaurar o ânimo.

Leva-o amparado até a farmácia mais próxima. A de Orlando Rangel, que fica logo adiante, no número 41 da rua Gonçalves Dias. O farmacêutico e proprietário do estabelecimento reconhece o senhor que requer cuidado médico. Cumprimenta-o pelo nome. Abre a portinhola que acopla os balcões em L da loja, deixa-o entrar no recinto fechado e o conduz a um quartinho nos fundos, resguardado por cortina negra.

Em estado de choque, Laet toma assento numa das cadeiras para os clientes, como se estivesse à espera dos remédios receitados pelo médico. Não enxerga os fregueses que entram e saem da farmácia e os dois balconistas que os atendem. Permanece calado. Mantém-se como se estivesse sentado em banco do cais Pharoux, a aguardar que a lancha que traz os passageiros do transatlântico fundeado na baía ganhe as águas rasas do píer para dela sair a visita tão aguardada. Para tal golpe não há bálsamo possível — a frase ocupa o vazio da sua cabeça, como refrão de ladainha, e expressa um profundo desalento diante da fatalidade. Sua consciência adormece pouco a pouco.

Por detrás da cortina negra, o enfermo está sendo atendido pelo farmacêutico de plantão.


O velho enfermo reaparece restabelecido de todo.

Quando Machado de Assis transpõe de volta a portinhola que une os balcões em L, seu rosto senhorial concerta mesuras aos poucos fregueses da farmácia. Distenso, o enfermo retoma posse do corpo pequeno-burguês e este, todo de negro, ainda trajado à moda da Monarquia, reassume a personalidade mundana. A vida continua, como se a interrupção no convívio social cotidiano, camuflada pela cortina negra da farmácia de Orlando Rangel, não tivesse acontecido. Interrupção longa e tão definitiva que reconfiguraria para sempre o caráter de Carlos de Laet, sorteado pelo Acaso para contracenar com Machado de Assis no palco da rua Gonçalves Dias, em pleno centro da cidade que o prefeito Pereira Passos manda botar abaixo para que se construa a avenida Central.

Laet e Machado saem pela ampla porta da farmácia de Orlando Rangel. Lado a lado, como dois peões no tabuleiro de xadrez. Não dialogam. Expressam-se por curtíssimos solilóquios paralelos, como se marionetes em espetáculo absurdo. A linha dramática imposta pelo metteur en scène do Acaso à dupla de atores vai do estranhamento à simpatia, do constrangimento à covardia. Instruído pelas normas pequeno-burguesas, o protocolo traz de volta o silêncio. Cada um conta os passos que os levam até a Estação Carioca, onde Machado deve tomar o bonde em direção ao largo do Machado.