gertrude.stein infantil inedito04.03

 

A pouco conhecida faceta infanto-juvenil da obra de Gertrude Stein (1874-1946) chega ao país com a publicação de Para fazer: um livro de alfabetos e aniversários, pela Iluminuras. A autora cria pequenas histórias para cada letra do alfabeto - sempre naquela linguagem repetitiva e rítmica que caracteriza seus livros. 

A tradução é de Dirce Waltrick do Amarante e Luci Collin. Será publicada neste mês.

 

***

 

E eis então o E. Ninguém deve esquecer que E segue D. Edite, Eduardo, Ema e Elite.

Edite estava atrasada, ela nasceu com um mês de atraso.

Ela devia ter nascido no dia cinco de junho e pensou que era cedo demais então nasceu no dia cinco de julho, oh céus. Daí todo mundo sabia que o dia estava errado daí eles não iam dizer que ela tinha nascido naquele dia daí ela só tinha que seguir sua vida e fez uma cantiga, que dizia, levo vantagem, levo vantagem, pois julho é depois de junho e quatro de julho seria cedo demais e aqui eu estou não em junho mas em julho, oh céus por que, mas é claro que eu sei por que, é porque cinco de julho é o dia ideal para ver a aurora boreal. Edite sempre a vê no céu. Era do jeito que ela via. Para os outros talvez não existisse um céu assim mas ela sempre podia ver mesmo na densa floresta nada podia impedir Edite de ver o céu e muito bem também. Por que não. Se não. Por que não.

O céu é feito para ser azul.

A aurora para parecer rosa.

O céu é feito para ser preto.

O céu é feito para parecer azul.

Mas quando Edite viu o céu ele não era rosa ou preto ou branco ou azul, Edite podia ver de um lado a outro e quando ela olhou de um lado a outro ela soube que verde não é azul, violeta é azul, amarelo não é azul mas preto é azul. Qualquer outra pessoa poderia ficar confusa com as cores do céu. Mas não Edite. Ela sabia por que. E a razão de saber era que ela havia nascido no dia cinco de julho. Aniversário ou não era indiferente para ela, ela sabia por que o céu era azul, por que o céu era rosa, por que o céu era preto e azul naquele dia. Ela sabia.

Não adiantava nada lhe perguntar,

Ela nunca iria falar.

Por ela tocaram um sino.

E isso porque ela não nasceu em junho que era cedo demais mas em julho no dia cinco de julho oh céus. E ela nunca falaria por quê.

Nunca nunca nunca falar por quê.

Elite tentou tentá-la a falar.

Ele sabia muito bem como.

O que ele tinha a fazer era dizer bem muito bem.

E todo mundo sabia que ele tinha tudo a fazer.

Elite era o seu nome e Elite seu conteúdo.

E ele tentou fazer Edite falar.

Mas não nem mesmo Elite pode fazer Edite falar.

Não disse Edite não.

Eduardo e Ema e Elite disseram oh Edite fale.

Não disse Edite não.

E Eduardo e Ema e Elite estavam tão animados em tentar fazer Edite falar que eles nem sabiam bem o que queriam que Edite falasse. E nem Edite sabia muito bem o que falar e para quem. Não Edite sabia que havia nascido no dia cinco de julho e que ela podia dizer oh céus e que não importava o tanto que tentassem eles nunca iriam fazê-la falar. Mas o quê? Bem, ela esqueceu e eles também, mas eles nunca perguntaram O que, já que estavam tão ocupados fazendo-a falar e ela estava tão ocupada dizendo que nunca nunca ia falar que eles nem souberam o que foi que ela estava para falar e foi justo quando escutaram alguma coisa como um sino dizendo O que O que O que, que todos souberam que era o que eles esqueceram, justo o que, bem o que, então o que, O que o que O que.



 

E então todos foram dormir e era F. Sim era era era F.

Mas ninguém pode esquecer também que o F vem depois do E. Francisco, Fofo, Felipe, Florzinha.

Toda vez que Fofo saía ele via um trevo-de-quatro-folhas. Isso era tudo que Fofo fazia.

Mas havia muito mais para o Francisco.

Francisco, Francisco Cisco era seu nome; é um nome engraçado sim mas era o nome dele mesmo assim. Ele gostava de cachorros mas tinha medo deles então preferia falar de pássaros.

Ele tinha uma irmã que era franzina, tinha só um ano a menos do que ele mas ele, o Francisco, era fortão, mas ela era franzina. Naquela parte do país todos os gatos são fracotes, não há gatos grandões e talvez, bem, talvez nem tenha nada a ver com isso, claro, mas ela tinha só um ano a menos e seu nome era Florzinha e ela era franzina.

Eles podiam brincar com a bola que pertencia ao cachorro mas não podiam brincar com o cachorro porque tinham medo dele. Sabiam que Insone e seu irmão Soneca brincavam de pega-pega, eles os viram, e logo souberam que eles brincavam de esconde-esconde, alguém contou isso a eles, mas não havia dúvida sobre isso, Francisco Cisco e sua irmã Florzinha tinham medo de cães e continuaram tendo medo deles. Estavam todos lá fora eles e os cachorros mas Francisco e Florzinha mantinham distância o quanto podiam dos cachorros. Insone não estava realmente lá, eles só haviam escutado falar dele, e Soneca foi levado embora e assim as crianças não podiam vê-lo. Então eles estavam tranquilos para brincar com a bolinha do Soneca. Soneca nem se importava porque ele preferia brincar com gravetos e realmente Francisco e Florzinha também não ligavam muito para bolinhas a única coisa que talvez gostassem era rolar a bola entre as pernas quando ficavam com as pernas separadas e achavam alguém para fazer a bola passar por baixo delas. Passar pelo buraco é como chamavam essa brincadeira. Era isso o que faziam. Não havia cães e tudo estava calmo. Bem agora.

E então eles foram e eles foram além e foram para uma casa, um homem e então uma cabra e então uma mulher e então um cachorro e então a porta foi fechada.

Francisco sabia, ninguém lhe disse mas ele sabia o nome do homem do cachorro da mulher e da cabra e saber aqueles nomes todos assustava Francisco.

Mas então qualquer coisa podia assustar Francisco. Ele era filho de um capitão e um dos seus avós era coronel e o outro era general e qualquer coisa mesmo podia assustar o Francisco.

Cabras não têm nome mas homens têm mas Francisco nunca se importou com o nome que um homem tem nem com o nome de um cão mas um cão tem mesmo um nome. Francisco só se lembrava de seu próprio nome: Francisco Cisco.

Francisco estava assustado e então ele respirou fundo e olhou para sua irmã e ficou feliz porque ela era franzina porque assim ele não tinha que deixá-la para seguir o homem a cabra a mulher e o cachorro.

E então já era noite.

Ninguém sabia como isso tinha acontecido.

Ninguém sabia.

E estava uma escuridão.

E a irmãzinha não estava lá.

Mais tarde diriam que ela havia se afastado uns bons quilômetros.

E ela havia.

Mesmo pequenina ela havia.

Estava uma escuridão e era noite.

Ninguém sabia como isso havia acontecido mas havia.

Estava uma escuridão e era noite e não havia iluminação.

Era um país engraçado, havia montanhas mas eles não montavam, o que realmente havia era um monte de água e no meio daquela água toda havia um rio.

Pode acontecer bem assim.

No dia seguinte era feriado Francisco e Florzinha tinham um irmãozinho.

Eles cantavam esta canção.

Venha vaga-lume e acenda o nariz do bebê.

Venha vaga-lume e acenda o nariz do bebê.

Venha vaga-lume e acenda o nariz do bebê.

Venha vaga-lume e acenda o nariz do bebê.

Então estavam todos felizes juntos.

Então um dia era segunda-feira todos se perderam e não havia nada para comer além de capim, assim todos comeram capim. Sabiam que o capim crescia, sabiam que havia muitos tipos de capim e eles não gostavam de nenhum tipo que crescia.

Bem, estar perdido sempre transforma tudo em ontem que era domingo e assim isso foi o fim disso. Mas ainda assim ainda havia aniversários.

Francisco nasceu num dia assustador porque houve um terremoto naquele dia. Florzinha nasceu num dia terrível porque estava tão quente que a manteiga derretia, e para o bebê foi bem melhor, ele nasceu num dia mais úmido do que qualquer outro dia mas ainda assim úmido é melhor do que os outros dias.

Eles, nenhum deles, jamais podem fazer aniversário em outro dia.