Eliane Brum.Inédito abr17

 

No inédito deste sábado (29), um texto da jornalista Eliane Brum. Ela relança o livro O olho da rua: uma repórter em busca da literatura da vida real (Arquipélago Editorial) em edição revista e ampliada. Para o novo livro, ela fez uma reflexão sobre o ofício jornalístico em um posfácio inédita. De como aprendeu a exercer a alteridade no ofício de jornalista a partir da escuta de povos indígenas. É um trecho desta reflexão que consta abaixo. A obra será lançada na próxima sexta-feira (5 de maio). 

 

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Reportagem não se faz apenas sujando os sapatos, como tantos já disseram. Reportagem exige um primeiro movimento radical: atravessar a larga rua de si mesmo. Este talvez seja o ato mais profundo e também o mais difícil. Não exige apenas suor, exige alteridade.

O movimento da reportagem implica desabitar-se de si para habitar o outro, o mundo que é o outro. Só nos tornamos capazes de completá-lo pela escuta, esta que se faz com todos os sentidos, que apalpa tanto o dito como o não dito, tanto o que soa e ressoa quanto o silêncio. Tanto a textura dos móveis como a escolha dos quadros nas paredes. Os cheiros e as ausências. As negações, os sobressaltos e as hesitações. As incompletudes das unhas roídas, o esmalte escolhido ou esquecido. As frestas. E as sobras.

Pela escuta não apenas ouvimos, mas vestimos. A reportagem é um despir-se de si para vestir um outro. E então empreender o largo caminho de volta e fazer o parto das palavras, que é a história contada atravessada pelo corpo de quem voltou para dar notícias de lá. De um lá que no movimento da reportagem virou lá e aqui.

É neste gesto que alcanço também aqueles para os quais a palavra não é escrita. Já contei que muitas vezes estive, como repórter, diante de analfabetos que faziam literatura pela boca. E que estes me tornaram o que sou, tanto quanto os escritores consagrados que encontrei nas estantes de bibliotecas e livrarias. Homens e mulheres que descansam a enxada na pedra ou pousam a vara de pescar na canoa para contar sua vida numa prosa poética que nasceu de uma experiência singular de mundo. Contam generosamente, às vezes sem perceber que criam universos no seu contar.

Nos últimos anos aprofundei minhas andanças amazônicas, com mais persistência nas regiões de Altamira e Terra do Meio, no rio Xingu e seus afluentes, mas também em outras águas e outras matas e outras devastações. Busco alcançar as populações ribeirinhas, aqueles homens e mulheres que definem seu corpo, seu contorno e sua linguagem na relação com o rio.

A transmissão do conhecimento, do seu ser e estar no mundo, é predominantemente oral. A mim, como repórter, cabia escutá-los com todos os sentidos e buscar traduzi-los em palavra escrita – sem traí-los. Para isso, uso dois gravadores, transcrevo cada palavra pronunciada e assinalo hesitações e silêncios, cubro os bloquinhos de observações sobre o que não é palavra dita. Mas na trajetória destes homens e mulheres da floresta, tanto quanto nas periferias e favelas das grandes cidades brasileiras, a escrita aparece como aquilo que foi e ainda é: um instrumento de dominação dos opressores.

No caso das populações ribeirinhas, tantas e tantas vezes comunidades inteiras perderam seu lugar de pertencimento porque a palavra oral não tinha valor para o Estado e para aqueles que tinham poder sobre o seu destino. Títulos de propriedade forjados em conluio com os cartórios prevaleciam porque escritos, mesmo que falsos. Muitas vezes gerações da mesma família viviam sobre o território há mais de um século, mas, ainda assim, eram expulsas ou por pistoleiros a soldo ou pela palavra escrita e igualmente fatal que perfurava os papéis da lei que não faz justiça. Seguidamente por ambos. Descobri então, repetidamente, que a palavra escrita matava tanto quanto bala.

A palavra escrita, aquela que me constitui e que me permitiu ter uma vida viva, passou a me constranger nos últimos anos. Ao transformar a palavra oral em palavra escrita, eu sentia que me tornava também uma reprodutora de opressões. Contar a história daquelas populações era uma denúncia da violência que sofriam, mas esta denúncia usava o mesmo instrumento do violador.

Ainda que a reportagem ampliasse o alcance das vozes e às vezes colaborasse para promover justiça, ela ao mesmo tempo reforçava a violência maior: a de que a palavra escrita era a única com valor.

A verdade dessas populações, seu testemunho, só era escutado quando convertido em letra. Era a palavra escrita que conferia veracidade à verdade. E isso era não só inversão, mas também violência. E, mais do que isso, uma reafirmação da violência. Quando minha reportagem contribuía para promover uma pequena justiça, ela ao mesmo tempo reforçava a injustiça de fundo, a de que aquela transmissão de memória, de experiência e de conhecimento não tinha valor. Esta é também a violência inaugural do Brasil fundado pela carta de Pero Vaz de Caminha.

Acumulo algumas dezenas de arquivos, literalmente centenas de milhares de caracteres, com transcrições de entrevistas e observações sobre ribeirinhos no Tapajós e no Xingu e seus afluentes, porque nos últimos anos não conseguia me autorizar a completar a reportagem. Não me autorizava a completar o ato de tradução do oral para o escrito. Não tinha convicção de que era ético converter em letra a palavra oral que pertencia a um outro – e a um outro que persistentemente era violado pela palavra escrita. Temia que o que eu nomeava como encontro pudesse ser violência. E o que eu chamava de reportagem fosse grilagem de almas.

Quem começou a desatar esse nó dentro de mim foi Otávio das Chagas. Eu conheci a ele e a sua família no final de 2014, na periferia de Altamira. Ele havia sido expulso da ilha a qual pertencia pela Usina Hidrelétrica de Belo Monte. É importante sublinhar que ribeirinhos não possuem, mas pertencem. Isso fica claro para quem os escuta. Usei o espaço da minha coluna no jornal El País para contar sua história em dois momentos diferentes: “O pescador sem rio e sem letras” e “Casa é onde não tem fome”.

Neste primeiro texto, conto que Otávio das Chagas foi um dos tantos que “assinou com o dedo” papéis que não era capaz de ler, avalizou com o corpo a palavra escrita que tudo lhe tirava. Naquele momento, percebi que Otávio era o que eu chamaria depois de “refugiado de seu próprio país”. Quando as pessoas são obrigadas a deixar a pátria (ou mátria) em que nasceram e gestaram sua história, pela força de guerras, epidemias, secas ou fomes, deixam para trás uma materialidade. Ainda que nunca retornem, há algo na terra de origem que prova que tiveram uma vida. Ainda que sejam ruínas, ainda que sejam os ossos de seus mortos. Mas, quando alguém perde uma ilha, como Otávio e tantos, a memória vira água. Tudo aquilo que provava que Otávio ali viveu, amou Maria e teve nove filhos, se fez líquido.

Jamais esquecerei a cena em que eu finalmente entendi. Otávio, Maria e Francisco, um dos filhos, apontavam em desespero para as cicatrizes do próprio corpo. “Esta cicatriz aqui foi quando eu tinha dois anos e um machado caiu…”. Percebi então que era esta a perversão maior de Belo Monte, a perversão consumada pelas letras do papel em que botaram o dedo ou desenharam o nome. Os dedos agora apontavam para a topografia do próprio corpo, para os “acidentes” geográficos produzidos pelo viver da vida na ilha afogada. Otávio das Chagas e os seus haviam sido reduzidos ao território do próprio corpo.

Percebi aos poucos que aquelas cicatrizes, aquilo que fazia marca literal de uma vida, eram também palavras escritas. Otávio das Chagas era também livro, e era como livro que eu podia lê-lo. Entre os dedos dele que apontavam a escrita do corpo, as palavras encarnadas que dele diziam, e os meus dedos, que as traduziam em alfabeto diverso, havia um possível. Se eu a ele emprestasse o meu corpo, haveria encontro e não violência. Passei então a compreender minha escrita como uma linha que costura feridas. Não para apagá-las, o que eu tanto temia. Mas para eternizá-las em letras-cicatrizes neste outro corpo que nos une, o da experiência coletiva – ou a trama que atravessa a própria linguagem para fazer o diálogo dos mundos. E também a resistência.