O texto abaixo é o primeiro capítulo do livro Gog Magog (Rocco), de Patrícia Melo (foto), que será lançado na segunda semana de novembro. É o 11º livro da escritora, conhecida por seus romances policiais.
O título aqui posto (O ruído, essa eficiente arma branca) é uma atribuição do Pernambuco: normas internas de design determinam que textos desse tamanho tenham título próprio.
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Não tenho ouvido absoluto como certos músicos, nem sensível como o dos cachorros, mas jamais entendi por que o ruído não é considerado um tipo eficiente de arma branca.
Uma gargalhada como a que vem do andar de cima, em rajadas histéricas, pontiagudas, no meio da madrugada, também tem o poder de ferir, pensei, ao despertar. Não como a pistola, a faca, ou a corda. Seu efeito é mais parecido com o de certos venenos que não chegam a matar, mas estragam a nossa saúde. Apodrecem nosso fígado. Desorganizam nossa mente.
Mais uma noite de sono interrompida. Agora era assim. Em certas madrugadas, obrigavam-me a escutar músicas blasfemas. Ou gemidos de cópulas. Vozes. Estrépidos. Muitas vezes, aparelhos elétricos zunzunavam lá em cima. Televisão. Se não zumbiam, matracavam. A altas horas, estalavam. E os pés do diabo, esses só vendo. Não me davam paz em momento algum. Tek tetek, tek, tetek, cruzando o corredor, daqui pra lá, de lá pra cá, madrugada adentro.
Onde está aquele pacato professor de biologia?, eu me perguntava, surpreso com as ideias violentas que surgiam em minha mente, cada vez que era incomodado pelo novo vizinho. Ygor era seu nome. Assim mesmo, com ípsilon. O ípsilon devia ser importante na economia de seus – talvez – falecidos pais, e por isso eu o chamava de senhor Ípsilon.
Nome da criança?, perguntara o escrivão. Eu bem podia imaginar a cena ocorrida na família Silva, havia mais de duas décadas. Ygor com ípsilon, responderam os Silva, acreditando que o ípsilon daria ao moleque um futuro mais promissor, quem sabe um jogador de futebol?
Era a mesma lógica dos pais de muitos de meus alunos que anualmente enchiam minha lista com uma chusma de nomes esdrúxulos, cheios de duplas consoantes e letras inexistentes no nosso alfabeto, antes da nossa reforma ortográfica.
No caso do senhor Ípsilon, é verdade, a mandinga parecia funcionar. O carro dele, ao menos, era melhor que o meu. Suas roupas também. Isso contribuía para aumentar minha antipatia.
Ao comprar o apartamento, no início da minha vida no magistério, eu sabia que poderia enfrentar todo tipo de problema, desemprego, dificuldade de pagar o financiamento; considerava até mesmo a possibilidade de estar condenado a passar o resto dos meus dias lá, enfurnado naquele espaço exíguo, num bairro feio da cidade. Jamais supus, no entanto, que teria um gerador de ruídos daquela natureza a menos de três metros acima da minha cabeça.
Seria fácil subir o único lance de escadas que me separava do senhor Ípsilon sem ser visto. Não havia câmeras no nosso prédio. Se ele estivesse sozinho, falando ao telefone, como parecia, eu nem soaria a campainha. Dois toques discretos na porta. E quando ele aparecesse na minha frente, com seu olhar de suíno, eu simplesmente meteria um tiro no meio da sua testa. Assunto resolvido. Em dois segundos eu já estaria de volta, embaixo dos lençóis. Como me pegariam?
O síndico relataria aos policiais minhas frequentes queixas, descreveria a troca de insultos entre mim e o senhor Ípsilon. Viviam às turras, diriam os outros moradores. Mas, e daí? Por que razão afinal o Novo Testamento transformou o “ame seus vizinhos” do Velho Testamento em “ame seus inimigos”? Desde os tempos bíblicos, vizinho é sinônimo de inimigo.
A questão mais complicada, pensei, sem forças para me levantar, seria a logística. Onde eu conseguiria uma arma? Na escola? Com os mesmos galalaus que me ameaçavam cada vez que recebiam um zero?
Eder, por exemplo. Um latagão de quase dois metros, cheio de erva na cabeça. Eu poderia pagá-lo para fazer o serviço. Não duvido que fosse experiente nesse assunto. De um jeito ou de outro, todos aqueles meninos pobres, que saíam do Ensino Fundamental vagamente alfabetizados, acabavam no crime. Tenho certeza de que Eder ficaria feliz por não ter que comparecer às minhas aulas. Presença garantida e nota alta até o final do ano, eu diria, se você me fizer um pequeno favor. Quer que eu troque o pneu do seu carro, professor? Que carregue seu material? Nada disso, Eder. Quero que você mate meu vizinho. O plano é simples. Só precisamos da moto que você usa para trabalhar como office-boy e da arma com a qual você assalta, nos fins de semana.
Odair, professor de matemática, havia me contado recentemente que muitos de nossos alunos participavam de assaltos aos sábados e domingos, para completar a renda advinda do trabalho como office-boy ou carregador de supermercado.
Vá de moto, eu diria ao Eder, e aguarde até que meu vizinho saia da garagem. É fácil reconhecê-lo: um tipo bexigoso, com carro do ano. Não há dois no mesmo pré dio. Siga-o por duas quadras até que surja a oportunidade, você sabe, um sinal mais deserto nesse nosso bairro desolado. Não é fácil?
No início, ninguém suspeitaria. Mesmo que houvesse testemunhas, quem se atreveria? Há regras por aqui. Nada vemos, nada ouvimos, nada falamos, como na lenda dos três macacos. Temos medo dos bandidos e pavor da polícia. De um, somos alvo, pelo outro, somos achacados. O problema, concluí desanimado, seria o próprio matador. E se mais tarde, ele passasse a me chantagear? Eu seria então obrigado a criar uma ciranda homicida no colégio? Jocelen que mata Wesley que matou Sueliton que matou Eder? Mesmo que o assassino não me extorquisse, haveria ainda o risco de que ele fosse preso, num futuro não muito distante, por outro crime, e que acabasse denunciando meu envolvimento na morte do senhor Ípsilon. Como eu deitaria a cabeça no travesseiro com tranquilidade para dormir? Não, pensei, se for para matar, melhor que seja eu a apertar o gatilho. E nesse caso, me perguntei, será que eu poderia contar comigo? Seria eu mais confiável do que um bandido qualquer? Dominar a si mesmo é uma arte mais complexa do que a arte de cometer um crime. E se eu falhasse? E se errasse o alvo? E se em vez de assassinar, eu aleijasse? Ou se, bem-sucedido, o remorso me comesse vivo? Não sou assassino, repeti em voz alta, saltando sobre o corpo de minha esposa. Marta nem sequer se mexeu na cama. Ela vinha tomando soníferos que trazia do hospital onde trabalhava, psicotrópicos tão potentes que iam muito além da indução ao sono, provocando uma espécie de coma noturno, um suicídio reversível pelas manhãs. Por que eu não fazia o mesmo? Talvez resolvesse o estresse, é verdade. Mas o magistério me criava problemas suficientes para que eu ainda tivesse que me preocupar com sangramentos no duodeno ou coisas piores descritas nas bulas. Hepáticas. Cancerígenas.
Esqueça essa rixa, dizia Marta, com razão. Vá corrigir provas. Vá preparar suas aulas. É antiproducente responder com a bile, ela supunha. Na teoria, eu concordava. Na prática, estava cagando para a teoria, sobretudo porque já havíamos tocado a campainha do homem, com uma garrafa de vinho, que depois encontrei jogada na lixeira do prédio, ainda fechada.
Gala, nossa velha gata, me seguiu sonolenta pela casa e se escondeu sob o armário ao me ver pegar a vassoura na cozinha.
Puxei um banquinho de fórmica para o centro do ambiente e me empoleirei ali, segurando a vassoura como quem empunha uma espada. Esperei até ouvir o HahaHAHAHAHAHAHAhahahaha diabólico, e então golpeei o teto energicamente como se furasse o ventre de um dragão.
A tática doméstica não resolvia, mas controlava o problema, além de funcionar como uma espécie de válvula de escape para o ódio que eu vinha cultivando desde que começamos aquela rixa, havia mais de seis meses. Gala é que não gostava. Tive que retirá-la de baixo do armário da pia, e esfregar meu nariz no seu focinho, como sempre fazia para acalmá-la.
Já estava rumo ao quarto novamente, com a gata nos ombros, quando algo inédito aconteceu. Uma espécie de eco tardio das minhas estocadas reverberou na sala. E de repente, silêncio. Um silêncio ruim, artificial, cheio de ameaças. Paralisado de raiva, só o que eu ouvia era a minha respiração de caçador. Retornei à cozinha, peguei a vassoura. Gala correu para trás da geladeira. Espetei o teto com menos vigor, só para testar se havia ali uma torpeza. Não demorou nem um minuto para que viesse a resposta lá de cima: toc toc toc. E então uma nova carga do riso blasfemo atravessou a laje e se cravou em meu cérebro como uma faca afiada.
Senti um espasmo interno, uma fisgada no umbigo que fez tremer todo o meu corpo, até as pontas dos dedos. Então era aquilo mesmo? Além de nos estorvar, agora o miserável fazia piadas?
Numa explosão de fúria, estoqueei o plafond uma, 10, 20 vezes, como se eu fosse um Jonas, tentando escapar das entranhas de um monstro marítimo. Como se eu fosse Ismael lutando contra a sua baleia branca. Não era apenas o desejo de matar o meu vizinho que me consumia. Eu também queria destroçar suas vísceras e empalar seu corpo com meu arpão improvisado.
Só parei ao notar o piso coberto de estilhaços de gesso. Meus braços ardiam. Exausto, larguei a vassoura, com uma sensação ruim, como se eu estivesse reduzido a um punhado de nervos e sangue.
Sentei-me no chão sujo de despojos do reboco, fechei os olhos, pensando que, se soubesse chorar, talvez fosse bom para a saúde. Sentia-me estuprado. Abatido. Intoxicado. Aquele homem sugava minhas energias. Surrupiava minha noite, meu domingo, minha paz.
Deve ser assim que um sujeito acaba tomando coragem, pensei. Numa hora dessas, um revólver ao alcance das mãos é tudo o que um homem pacato e honesto como eu necessita para se transformar num assassino de verdade.