Alexander inedito jan17

 

O excerto abaixo pertence ao livro A nova segregação: racismo e encarceramento em massa, a ser lançado pela Boitempo neste mês. Optamos por suprimir as notas de rodapé que mostram a origem dos dados citados. Na obra, entretanto, todas as informações estão referenciadas.

 

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Imagine que você é Emma Faye Stewart, uma afro-americana de 30 anos, mãe solteira de duas crianças, que foi presa em uma varredura de drogas em Hearne, no Texas. Todas as pessoas presas, exceto uma, eram afro-americanas. Você é inocente. Após uma semana na cadeia, não tem ninguém para cuidar de seus dois filhos pequenos e está impaciente para ir para casa. Seu advogado, nomeado pelo juízo, apressa-a a se declarar culpada da acusação de distribuição de drogas, dizendo que o promotor lhe ofereceu liberdade assistida. Você recusa, proclamando firmemente sua inocência. Finalmente, depois de quase um mês na cadeia, você decide se declarar culpada para poder voltar para seus filhos. Não querendo se arriscar a um julgamento que a leve a anos de prisão, você é condenada a 10 anos de liberdade assistida e obrigada a pagar mil dólares de multa, bem como as custas processuais. Agora, você também está marcada como uma delinquente de drogas. Não tem mais direito a vale-alimentação; pode ser discriminada em empregos; não pode votar por no mínimo 12 anos; e está prestes a ser despejada da habitação pública em que vive. Uma vez que você se torne uma sem-teto, seus filhos serão tirados de você e postos para adoção.

Um juiz finalmente julga improcedentes todas as acusações contra os réus que não se declararam culpados. No julgamento, considera que toda a varredura foi baseada no testemunho de um único informante, que mentiu à promotoria. Você, no entanto, ainda é uma delinquente condenada por um crime de drogas, sem-teto e desesperada para conseguir de volta a guarda de seus filhos.

Agora se ponha no lugar de Clifford Runoalds, outro afro-americano vítima da operação de apreensão de drogas em Hearne. Você voltou à sua casa em Bryan, no Texas, para ir ao funeral da sua filha de 18 meses. Antes de o funeral começar, a polícia aparece e algema você. Você implora aos policiais que o deixem olhar sua filha pela última vez antes de ela ser cremada. A polícia recusa. Os promotores lhe dizem que você precisa testemunhar contra um dos detidos em uma operação de apreensão de drogas recente. Você nega ter testemunhado qualquer transação de drogas; você não sabe do que eles estão falando. Como consequência de sua recusa em cooperar, é indiciado e acusado por crimes. Depois de um mês na cadeia, as acusações contra você são retiradas. Você está tecnicamente livre, mas, como resultado da sua detenção e o período na cadeia, perdeu trabalho, apartamento, mobília e carro. Sem mencionar a chance de dizer adeus a seu bebê.

Isso é a Guerra às Drogas. As histórias brutais descritas acima não são incidentes tão isolados, nem as identidades raciais de Emma Faye Stewart e Clifford Runoalds são aleatórias ou acidentais. Em cada estado da nação, os afro-americanos – especialmente nos bairros mais pobres – estão sujeitos a táticas e práticas que resultariam em indignação pública e escândalo, se fossem usadas em bairros de brancos de classe média. Na Guerra às Drogas, o inimigo é definido racialmente. (…) Os soldados da Guerra às Drogas nos dizem que o inimigo nessa guerra é uma coisa – as drogas – e não um grupo de pessoas, mas os fatos provam o contrário.

A Human Rights Watch (Observatório de Direitos Humanos) relatou em 2000 que, em sete estados, afro-americanos constituem entre 80% e 90% de todos os criminosos de drogas mandados à prisão. Em pelo menos 15 estados, negros dão entrada na prisão por acusações de drogas em uma taxa que é entre 20 e 57 vezes maior do que a de homens brancos. Na verdade, a taxa nacional de encarceramento de afro-americanos por crimes de drogas faz a quantidade de brancos presos parecer pequena. Quando a Guerra às Drogas ganhou força total no meio da década de 1980, a entrada de afro-americanos na prisão disparou, praticamente quadruplicando em três anos e depois crescendo obstinadamente até atingir em 2000 um nível mais de 26 vezes maior que o de 1983. O número de prisões de latinos por crimes de drogas em 2000 foi 22 vezes o número de prisões de 1983. Os brancos também têm sido presos por crimes de drogas em taxas elevadas – o número de brancos presos por crimes de drogas em 2000 era oito vezes o número de 1983 –, mas seus números relativos são pequenos, quando comparados aos de negros e latinos. Embora os usuários traficantes de drogas ilegais pelo país sejam, em sua maioria, brancos, três quartos de todas as pessoas presas por crimes de drogas são negras ou latinas. Recentemente, as taxas de aprisionamento de negros por crimes de drogas têm diminuído de algum modo – caindo aproximadamente 25% em relação ao seu auge em meados da década de 1990 –, mas o fato de que os afro-americanos são encarcerados em taxas obscenamente desproporcionais pelo país continua válido.

Há, é claro, uma explicação oficial para tudo isso: as taxas de criminalidade. Essa explicação tem um apelo tremendo – antes que você conheça os fatos – porque ela é coerente com as narrativas raciais dominantes desde a época da escravidão sobre o crime e a criminalidade − e as reforça. A verdade, contudo, é que as taxas e padrões de crimes de drogas não explicam as flagrantes disparidades raciais em nosso sistema de justiça criminal. Pessoas de todas as raças usam e vendem drogas ilegais em taxas notadamente similares. Se há diferenças significativas a serem encontradas nas pesquisas, elas frequentemente sugerem que os brancos, particularmente os jovens brancos, são mais propensos a se envolver em venda de drogas ilegais do que pessoas não brancas. Um estudo publicado em 2000 pelo National Institute on Drug Abuse (Instituto Nacional de Uso Abusivo de Drogas), por exemplo, revelou que, em relação aos estudantes negros, estudantes brancos usam cocaína em taxas sete vezes maiores, crack em taxas oito vezes maiores e heroína em taxas sete vezes maiores. O mesmo estudo revelou que percentuais praticamente idênticos de alunos brancos e negros de Ensino Médio usam maconha. A National Household Survey on Drug Abuse (Pesquisa Nacional Domiciliar sobre Abuso de Drogas) relatou em 2000 que jovens brancos entre 12 e 17 anos têm um terço a mais de chances de vender drogas do que jovens afro-americanos. No mesmo ano, a Human Rights Watch relatava que afro-americanos estavam sendo apreendidos e encarcerados em taxas sem precedentes, e dados do governo revelavam que negros não estavam mais predispostos a serem culpados de crimes de droga do que brancos e que jovens brancos, na verdade, estavam mais suscetíveis do que qualquer outro grupo étnico ou racial a serem culpados de posse e venda de drogas ilegais. Qualquer noção de que o uso de drogas entre negros é mais severo ou perigoso é desmentida pelos dados; jovens brancos contabilizam em torno de três vezes mais internações de emergência em hospitais do que os afro-americanos.

A ideia de que são os brancos que compõem a vasta maioria dos usuários e traficantes de drogas – e podem estar bem mais suscetíveis do que outros grupos a cometer crimes de drogas – pode parecer pouco plausível para alguns, dadas as imagens midiáticas com que somos alimentados diariamente e a composição racial de nossas cadeias. Após alguma reflexão, no entanto, a prevalência do cometimento de crimes de drogas por brancos – incluindo tráfico – não deveria ser surpreendente. Afinal de contas, onde os brancos conseguem suas drogas ilegais? Será que todos eles dirigem até os guetos para comprá-las de alguém parado na esquina? Não. Estudos indicam de maneira consistente que os mercados de drogas, como a sociedade estadunidense em geral, refletem as fronteiras raciais e socioeconômicas da nação. Os brancos tendem a vender aos brancos; e os negros aos negros. Estudantes universitários tendem a vender uns aos outros. Brancos da zona rural, por sua vez, não fazem uma viagem especial até o centro da cidade para comprar maconha. Eles a compram de alguém logo ali, na estrada. Estudantes de Ensino Médio brancos normalmente compram drogas de colegas, amigos ou parentes mais velhos brancos. Até mesmo Barry McCaffrey, ex-diretor do Departamento de Política Nacional de Controle de Drogas da Casa Branca, uma vez observou que, se seus filhos comprassem drogas, “provavelmente seria de um estudante da sua própria raça”. A ideia de que o uso e as vendas de drogas acontecem majoritariamente no gueto é pura ficção. O tráfico de drogas ocorre lá, mas ocorre também em todos os outros lugares dos Estados Unidos. Não obstante, a taxa de homens negros que têm dado entrada em prisões estaduais sob acusações relacionadas a crimes de drogas é mais de 13 vezes maior que a de homens brancos. O racismo inerente à Guerra às Drogas é uma das principais razões por que 1 em cada 14 homens negros estava atrás das grades em 2006, em comparação com 1 em cada 106 homens brancos. Para os jovens homens negros, as estatísticas são ainda piores: 1 em cada 9 homens negros entre 20 e 35 anos estava atrás das grades em 2006, e tantos mais estavam sob alguma forma de controle penal – como liberdade assistida ou condicional. Essas disparidades raciais gritantes, simplesmente, não podem ser explicadas pelos índices de criminalidade relacionados a drogas ilícitas entre afro-americanos.

O que, então, explica as extraordinárias disparidades raciais em nosso sistema de justiça criminal? (…) Como numerosos pesquisadores têm mostrado, as taxas de crimes violentos flutuaram ao longo dos anos e têm pouca relação com as de encarceramento – que subiram durante as últimas três décadas independentemente de os crimes violentos estarem aumentando ou diminuindo. Hoje, as taxas de crimes violentos estão em níveis historicamente baixos, e mesmo assim as de encarceramento continuam subindo.

Condenações por assassinato tendem a receber uma tremenda atenção da mídia, que alimenta o senso comum de que os crimes violentos estão desenfreados e aumentando continuamente. Porém, as taxas de assassinatos, como as de crimes em geral, não podem explicar o crescimento do aparato penal. Condenações por homicídio respondem por uma pequena fração do crescimento da população prisional. No sistema federal, por exemplo, pessoas condenadas por homicídio são responsáveis por 0,4% do aumento da população das prisões federais na última década, enquanto pessoas condenadas por crimes relacionados a drogas são responsáveis por quase 61% dessa expansão. No sistema estadual, menos de 3% das novas entradas em prisões estaduais envolvem pessoas condenadas por homicídio. Metade dos prisioneiros estaduais está condenada por crimes violentos, mas essa estatística pode ser facilmente mal-interpretada. Pessoas que cometeram crimes violentos tendem a ser condenadas a penas mais longas do que aquelas que cometeram crimes não violentos e, por essa razão, compõem uma parcela muito maior da população prisional do que comporiam se fossem libertadas mais cedo. Além disso, os dados das prisões estaduais excluem prisioneiros federais, que são em sua esmagadora maioria encarcerados por crimes não violentos. Em setembro de 2009, apenas 7,9% dos prisioneiros federais tinham sido condenados por crimes violentos.

Contudo, o fato mais importante a ter em mente é este: os debates sobre estatísticas prisionais ignoram o fato de que a maioria da população que está sob controle correcional hoje não está na prisão. Conforme dito anteriormente, dos 7,3 milhões de pessoas atualmente sob controle correcional, apenas 1,6 milhão está nas prisões. Esse sistema de castas se estende muito além dos muros das prisões e governa milhões de pessoas que estão em liberdade assistida ou condicional, sobretudo por crimes não violentos. Eles foram varridos para dentro do sistema, rotulados como criminosos e relegados permanentemente a uma condição de segunda classe – obtendo registros de antecedentes criminais que os acompanharão pelo resto de suas vidas. Pessoas em liberdade assistida são claramente a maioria entre as que estão sob supervisão da comunidade (84%), e apenas 19% delas foram condenadas por um crime violento. Os crimes mais comuns pelos quais as pessoas em liberdade assistida estão sob supervisão são os ligados a drogas. Mesmo quando se limita a análise a quem foi condenado por crimes graves – excluindo-se assim crimes de baixíssimo potencial ofensivo e contravenções –, os crimes não violentos ainda predominam. Apenas cerca de 1/4 dos réus por crimes considerados graves nas grandes regiões urbanas foi acusado de crimes violentos em 2006. Em cidades como Chicago, as varas criminais estão obstruídas por crimes de drogas de baixo potencial ofensivo. Um estudo revelou que 72% dos casos criminais no condado de Cook (Chicago) envolviam alguma acusação de crime de drogas e 70% deles tinham acusação de posse qualificada de quarta classe (a acusação por crime grave mais leve).