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O trecho abaixo pertence ao livro A loucura da razão econômica: Marx e o capital no século XXI, de David Harvey. A obra foi lançada neste mês pela Boitempo e se propõe a atualizar a obra de Karl Marx à luz das novas transformações da globalização capitalista no século XXI. O excerto é do prólogo da obra e as perguntas no seu final são as que motivaram o livro. 

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Ao longo da vida, Marx fez um esforço prodigioso para compreender como funciona o capital. Sua obsessão era tentar descobrir como aquilo que chamou de “as leis de movimento do capital” afetavam o cotidiano das pessoas comuns. Ele expôs de maneira implacável as condições de desigualdade e exploração enterradas no atoleiro das teorias autocongratulatórias apresentadas pelas classes dominantes. Estava particularmente interessado em descobrir por que o capitalismo parecia ser tão propenso a crises. Será que essas crises, como as que ele testemunhou em 1848 e 1857, se deviam a choques externos, como guerras, colheitas ruins e escassez natural, ou havia algo no modo de funcionamento do próprio capital que tornava inevitáveis tais abalos destrutivos? Até hoje essa questão atormenta as investigações econômicas. Dado o estado lamentável e a trajetória confusa do capitalismo global desde a crise de 2007-2008 – e seus impactos deletérios na vida de milhões de pessoas –, parece que este é um bom momento para rever o que Marx descobriu. Talvez encontremos insights úteis para nos ajudar a esclarecer a natureza dos problemas com os quais nos deparamos agora.

Infelizmente, não é tarefa fácil resumir as descobertas de Marx e acompanhar seus intricados argumentos e suas detalhadas reconstruções. Em parte porque ele deixou sua obra incompleta. Apenas uma pequena fração dela veio à luz em uma forma que Marx considerou adequada para publicação. O resto é uma massa intrigante e volumosa de notas e rascunhos, comentários de autoesclarecimento, experiências mentais do tipo “e se funcionasse assim” e uma série de refutações a objeções e críticas reais e imaginadas. Na medida em que o próprio Marx se apoiou em grande parte em uma interrogação crítica sobre a forma como a economia política clássica (dominada por figuras como Adam Smith, David Ricardo, Thomas Malthus, James Steuart, John Stuart Mill, Jeremy Bentham e uma série de outros pensadores e pesquisadores) respondia a esse tipo de pergunta, a leitura que faremos de suas descobertas também requererá certo conhecimento de quem ele critica. O mesmo vale para a dependência de Marx em relação à filosofia clássica alemã no que diz respeito a seu método crítico, na qual domina a imponente figura de Hegel, amparado por Spinoza, Kant e uma série de pensadores que remonta aos gregos (a tese de doutorado de Marx é sobre os filósofos gregos Demócrito e Epicuro). Acrescente à mistura os pensadores socialistas franceses, como Saint-Simon, Fourier, Proudhon e Cabet, e a ampla tela sobre a qual Marx buscou construir sua obra se torna de uma clareza intimidante.

Além disso, Marx era um analista incansável, mais do que um pensador estático. Quanto mais aprendia com suas volumosas leituras (não apenas dos economistas políticos, antropólogos e filósofos mas da imprensa comercial e financeira, de debates parlamentares e relatórios oficiais), mais evoluíam suas visões (ou, diriam alguns, mais ele mudava de ideia). Foi um leitor voraz de literatura clássica – Shakespeare, Cervantes, Goethe, Balzac, Dante, Shelley e outros. Não apenas temperou seus escritos (sobretudo o Livro I de O capital, uma obra-prima literária) com referências ao pensamento desses escritores mas valorizou suas ideias sobre o funcionamento do mundo e inspirou-se em seus métodos e estilos de exposição. E, como se não bastasse, há a volumosa correspondência com companheiros de viagem em diversas línguas, além de conferências e discursos a sindicalistas ingleses ou comunicações para e sobre a Associação Internacional dos Trabalhadores, criada em 1864 com suas aspirações pan-europeias para a classe trabalhadora. Marx foi um ativista e polemista, além de teórico, acadêmico e pensador de primeira linha. O mais próximo que chegou de uma renda estável foi como correspondente do New York Tribune, um dos jornais de maior circulação nos Estados Unidos na época. As colunas que escrevia tanto afirmavam suas visões particulares como traziam análises de eventos contemporâneos.

Em tempos recentes, houve uma enxurrada de estudos abrangentes sobre Marx em seu contexto pessoal, político, intelectual e econômico. As destacadas obras de Jonathan Sperber e Gareth Stedman Jones são valiosas, ao menos em alguns aspectos [nota 1]. Infelizmente, também parecem querer enterrar o pensamento e a obra monumental de Marx com seu corpo no Cemitério de Highgate, como um produto datado e falho do pensamento do século XIX. Para eles, Marx foi uma figura histórica interessante, mas seu aparato conceitual tem pouca relevância teórica hoje, se é que a teve algum dia. Ambos esquecem que o objeto do estudo de Marx em O capital era o próprio capital, não a vida oitocentista (sobre a qual ele certamente tinha muitas opiniões). E o capital continua conosco, vivo e bem em alguns aspectos, mas evidentemente doente em outros, para não dizer em uma espiral de descontrole [nota 2], inebriado pelos próprios sucessos e excessos. Marx considerava o conceito de capital basilar para a economia moderna, assim como para a compreensão crítica da sociedade burguesa. Entretanto, é possível chegar ao fim da leitura dos livros de Stedman Jones e Sperber sem a mais remota ideia do que seja o conceito de capital de Marx e de como ele poderia ser aplicado nos dias de hoje. Na minha avaliação, as análises de Marx, embora evidentemente datadas em alguns aspectos, são mais relevantes hoje do que na época em que foram escritas. Aquilo que, nos tempos de Marx, era um sistema econômico dominante em apenas uma pequena parcela do mundo, hoje, recobre a superfície terrestre com implicações e resultados espantosos. Na época de Marx, a economia política era um terreno de debate muito mais aberto do que é agora. Desde então, um campo de estudos supostamente científico, altamente matematizado e movido a dados, chamado “ciência econômica”, atingiu um estatuto de ortodoxia, um corpo fechado de conhecimento supostamente racional – uma verdadeira ciência – ao qual ninguém tem acesso, exceto em negócios empresariais ou estatais. Esse campo é alimentado por uma crença cada vez maior nos poderes da capacidade computacional (que dobra a cada dois anos) de construir, dissecar e analisar enormes conjuntos de dados sobre quase tudo. Para alguns analistas influentes, patrocinados por grandes corporações, isso supostamente abre caminho para uma tecnoutopia de gestão racional (por exemplo, cidades inteligentes) governada pela inteligência artificial. Essa fantasia se baseia na suposição de que, se algo não pode ser mensurado e condensado em planilhas de dados, esse algo é irrelevante ou simplesmente inexistente. Não há dúvida de que grandes conjuntos de dados podem ser extremamente úteis, mas eles não esgotam o terreno daquilo que precisa ser conhecido. E certamente não ajudam a resolver os problemas de alienação ou deterioração das relações sociais.

Os comentários prescientes de Marx sobre as leis de movimento do capital e suas contradições internas, suas irracionalidades fundamentais e subjacentes, são muito mais incisivos e penetrantes do que as teorias macroeconômicas unidimensionais da ciência econômica contemporânea, que se provaram insuficientes quando foram confrontadas com a crise de 2007-2009 e seu longo rescaldo. As análises de Marx, aliadas ao seu método distintivo de investigação e à sua forma de teorizar, têm um valor inestimável para os nossos esforços intelectuais de compreender o capitalismo de agora. Seus insights merecem ser reconhecidos e estudados criticamente, com a devida seriedade.

Como, então, devemos compreender o conceito marxiano de capital e suas supostas leis de movimento? De que forma isso nos ajudará a compreender nossos impasses atuais?

 

NOTAS

[nota 1] Jonathan Sperber, Karl Marx: A nineteenth century life (Nova York, Liveright, 2013) [ed. bras.: Karl Marx: Uma vida do século XIX, trad. Lúcia Helena de Seixas, Barueri, Amarilys, 2014]; Gareth Stedman Jones, Karl Marx: Greatness and illusion (Cambridge, Belknap, 2016) [ed. bras.: Karl Marx: Grandeza e ilusão, trad. Berilo Vargas, São Paulo, Companhia das Letras, 2017].


[nota 2] Harvey usa aqui a expressão de língua inglesa “spiralling out of control ”, que pode ser traduzida, ao pé da letra, por “espiralando fora de controle”. A escolha da expressão para descrever o caráter descontrolado do capital é relevante, pois ecoa o movimento espiralado do processo de acumulação exponencial infindável do capital, o qual constitui um dos argumentos que atravessam o livro e que hoje se encontra em um patamar historicamente sem precedentes. (Nota do tradutor.)