Angela Davis inedito jul17

 

Abaixo, um trecho inédito de Uma autobiografia, relato em primeira pessoa da filósofa e ativista Angela Davis que traz sua visão dos conflitos sociais nos Estados Unidos dos anos 1960 e 1970, além de sua experiência no cárcere e engajamento na luta abolicionista. A autora narra sua trajetória da infância à carreira universitária, até chegar na vivência dentro do sistema prisional e na sua experiência individual como reflexo de um sistema que visava criminalizar a luta antirracista no país. Era uma das mais procuradas pelo FBI e ícone dos movimentos negro e feminista de seu país. Na entrada abaixo, de fins de 1971, Davis conta como foi sua resolução em lutar contra o encarceramento. 

Uma autobiografia será lançado em abril pela Boitempo Editorial, com tradução de Heci Regina Candiani. 

 

***

 

2 de dezembro de 1971

A viagem a San Jose foi muito mais longa do que eu esperava. Embora eu não conhecesse muito sobre a geografia do norte da Califórnia, eu era capaz de dizer que estavam dando voltas em razão do que chamaram de “motivos de segurança”. Eu tinha esperanças de ver São Francisco, Berkeley ou algum lugar com cenas normais (mas, para mim, extraordinárias) de atividade humana. Quando cheguei à prisão em Palo Alto, porém, não trazia comigo boas lembranças. O trajeto tinha sido todo pela autoestrada, com a caravana viajando muito acima do limite de velocidade. E até começarmos a nos aproximar de Palo Alto, tudo estava escuro.

Um homem delgado e pálido estava no carro comigo. Na época, eu não sabia que ele era o vice-xerife do condado de Santa Clara. Ele não tinha a postura costumeira de um agente da lei. Parecia inseguro de si. Tentou me consolar, assegurar-me de que minha permanência na prisão seria muito mais tolerável do que o ano de horrores que eu acabara de deixar no condado de Marin. Mas prisão era prisão. A menos que você estivesse resignada ao fato de estar trancafiada, não havia graus de melhor ou pior.

Assim como no FBI, na Casa de Detenção de Nova York, na prisão do condado de Marin, agora na prisão de Santa Clara, o ritual: Nome... Endereço... Idade... Local de nascimento... Prisões anteriores... Etc., etc., etc. Fotografia para a ficha criminal... Impressões digitais... Será que chegaria o momento em que eu finalmente registraria minha saída?

Eu descobrira que, cada vez que uma prisioneira é registrada, tem direito a dois telefonemas. Primeiro, liguei para minha equipe jurídica, avisando que eu tinha chegado, e, depois, para minha mãe e meu pai. Quase nunca tinha a chance de falar com minha família ao telefone, exceto quando estava sendo registrada em uma nova prisão. Ficaram muito felizes em ouvir minha voz, mas ao mesmo tempo havia frustração e tensão com o que esse novo cenário poderia trazer. Minha mãe disse que viria antes do Natal. Meu irmão mais novo, Reggie, em licença da faculdade, também viria para a costa Oeste. Minha mãe tentava se concentrar em coisas que permitiriam a ela escapar da realidade da minha situação. Embora ela tenha se mantido forte até o fim, acho que toda a provação foi mais difícil para ela do que para qualquer outra pessoa. Perguntei se ela tinha voltado a comer regularmente e recuperado um pouco do peso que tinha perdido. Cada vez que nos víamos ou conversávamos, acabávamos chamando a atenção uma da outra pelos mesmos motivos. Dessa vez, ela me lembrou de me alimentar melhor e tentar recobrar meu próprio peso. Pedi-lhe que não se preocupasse tanto e, com relutância, disse adeus.

Assim que desliguei o telefone, uma porta encoberta à esquerda da área de admissão foi destrancada. Entramos em um corredor curto e estreito e, quando olhei para a direita, vi a cela mais assustadora que já tinha visto até então. A área estava isolada por um vidro. Do outro lado do vidro, havia um corredor de quatro metros por um, no qual havia duas celas. Cada cela tinha cerca de dois metros por dois e meio. Uma delas tinha a cama de plataforma metálica, um colchão fino, vaso sanitário e pia; a outra era uma cela estofada, completamente revestida de um pesado tecido acolchoado pintado de cinza prateado. O estofamento era interrompido por um único orifício no chão, que servia de banheiro.

“Você precisa tirar suas roupas”, disse a inspetora.

Ela me entregou um vestido, pijamas, um suéter, uma calcinha, um sutiã, algumas meias e chinelos de borracha. Eu disse a ela que colocaria as roupas, mas não as peças íntimas. Ela insistiu que eu tinha de abrir mão da minha própria roupa de baixo e colocar a do condado. Eu estava falando sério sobre não vestir roupas íntimas da prisão. Em Nova York, usando peças não esterilizadas, contraí um terrível fungo que se espalhou por todo o meu corpo e levou meses para ser finalmente curado. Disse à inspetora que ela poderia ficar com minha calcinha, mas nada do que ela dissesse ou fizesse me faria vestir aquela calcinha da prisão.

As carcereiras devem ter algo de voyeuse – mesmo aquelas que não são homossexuais inevitavelmente se levantam e assistem com profundo interesse enquanto você se despe. Aquela inspetora não devia ter consciência da intensidade com que me olhava, porque, quando perguntei o que ela via de tão interessante, pareceu terrivelmente envergonhada e saiu de forma abrupta.

O vestido desbotado que parecia um jaleco era apertado e curto demais. O suéter cinza e sem graça não chegava à minha cintura, e suas mangas iam até metade dos meus braços. Eu não conseguia puxar as meias brancas infantis para que cobrissem os calcanhares nem me encaixar nos chinelos de borracha. Joguei os chinelos e as meias pela porta que se abria para o corredor.

Então, percebi como estava frio naquela cela. Não só isso, o banheiro estava vazando e a água escorria pelo chão. Fui até o corredor para gritar uma reclamação, mas não havia ninguém à vista e a porta do corredor maior estava trancada. Disse a mim mesma que em breve Margaret e Howard estariam lá, então poderíamos começar a lutar contra aquelas condições subumanas. Com o jaleco infantil e apertado, sem calcinha e descalça, eu estava congelando, então coloquei a calça do pijama por baixo do vestido, o minúsculo suéter e a blusa do pijama por cima dele. Imagino que tinha uma aparência absurda.

Como não havia onde sentar, subi na cama, puxei o cobertor do Exército sobre os ombros e tentei me concentrar no livro que tinha levado. Mal tinha passado de uma página quando uma inspetora de cabelos ruivos longos e reluzentes entrou pelo corredor externo. Ela abriu a porta e, parecendo gentil, pensei, perguntou se eu queria o café da manhã. Eu disse que sim. Cinco minutos depois, ela voltou, dizendo que eu não estava “qualificada” para a refeição. Ela tinha verificado com o pessoal do condado de Marin e lhe foi dito que eu tinha tomado chá – chá! – antes da minha viagem. Sendo assim, não recebi nada até a hora do almoço.

“Vocês simplesmente não sabem o que significa se comportar como seres humanos, não é?”, deixei escapar.

Em silêncio, ela saiu da cela como uma flecha. Eu me repreendi por ter dito sim à sua simpática oferta e tentei voltar ao meu livro.

Mais tarde, quando Margaret chegou e me viu encolhida no cobertor, congelando, acima de um chão encharcado, ficou de boca aberta. “Devem estar brincando!”, ela disse. “Já estive em muitas prisões, mas isso supera todas elas.”

Sua indignação fez com que eu me sentisse um pouco melhor. Por algum tempo, fiquei me perguntando se estava reagindo de forma exagerada. Pensei nas descrições feitas por George das muitas masmorras em que o jogaram durante a última década. Aquele lugar não podia ser tão ruim quanto a ala O de Soledad, ou o Centro Correcional de San Quentin, ou as solitárias de Folsom, ou qualquer uma das outras celas onde tentaram arrancar sua força de vontade e determinação.

“Isto nem sequer é uma prisão”, eu disse a Margaret. “É o que chamam de ‘recinto de detenção’ – um lugar para manter prisioneiras por algumas horas ou talvez da noite para o dia. Mas querem me manter aqui por meses. Não posso acreditar”, prossegui, “não há espaço suficiente para fazer exercícios físicos, nem aqueles em que você fica no mesmo lugar”.

Decidimos fazer um desenho em escala da cela, acompanhado de uma descrição. Queríamos que o Comitê o usasse em seu comunicado à imprensa e na divulgação sobre as condições do meu confinamento.

Margaret foi embora para entregar o desenho ao Comitê. “Pode esperar”, ela disse, “haverá grandes mudanças por aqui muito em breve!”.

Sorri para ela. “Margaret, você sabe que eu ficarei bem.”

Pouco mais tarde, a inspetora passou por minha cela levando uma jovem branca que parecia desolada. Ouvi um portão sendo destrancado ao lado. Ela devia estar ali por causa de uma apreensão de drogas, imaginei. Sem ter vontade de conversar com alguém que eu não podia ver, não disse nada a ela, retornei à cela, voltei para a cama de cima do beliche e continuei a ler A mulher eunuco [nota 1] até Margaret e Howard chegarem.

Eles trouxeram notícias de que o Comitê já estava colocando as coisas em marcha. Nos Estados Unidos e até mesmo em outros países, as pessoas estavam recebendo comunicados sobre as condições em que eu estava sendo mantida. Em questão de horas, telegramas e telefonemas começaram a chegar ao escritório do xerife. James Geary, que se considerava um homem de convicção liberal, reagiu àquele protesto em massa e ordenou algumas mudanças. Em uma entrevista publicada no Mercury, de San Jose, ele lamentou que em todo o país achassem que ele havia me empurrado para a mais miserável das masmorras. Uma mulher, ele disse, protestou contra eu ser mantida em um “buraco sem aquecimento, descalça, caminhando com água até os tornozelos”.

Não houve apenas transformações físicas, como aquecimento, roupas e sapatos, mas a postura das carcereiras mudou. Algumas delas se tornaram quase gentis. “Srta. Davis, há algo de que precise?” “Você tem certeza de que está tudo bem?” “Como foi seu jantar?” “Você tem alguma reclamação?” “Gostaria de algo em particular amanhã?”

Antes da chuva de protestos, as refeições eram pratos prontos sem gosto, o que era justificado pelas carcereiras com o fato de as prisioneiras raramente ficarem ali por mais de um ou dois dias. Depois dos protestos, trouxeram uma pessoa para cozinhar, e as carcereiras sugeriram à equipe jurídica que eu tivesse uma televisão em minha cela e mantivesse o rádio e a máquina de escrever elétrica que consegui em Marin.

Com essas novidades, a cela ficou entulhada. De forma magnânima, as carcereiras abriram a porta da cela acolchoada para meu uso. Assim, vim a ter o que na propaganda da promotoria pública se tornou uma “suíte de dois cômodos”. Uma suíte de dois cômodos formada por uma cela de dois por dois e meio e outra ainda menor, acolchoada, cujo orifício sanitário um dia teve um retorno, cobrindo meus livros e o chão com excrementos líquidos.

Assim como a “suíte de dois cômodos”, “minha televisão particular”, sobre a qual o promotor falava constantemente, também era uma farsa. O aparelho era “particular” apenas porque insistiam em me manter em confinamento solitário. O promotor nunca mencionou que na prisão feminina regular havia televisão a cores para as prisioneiras. Nem que, quando recebi a minha, pressionei para que a prisioneira vizinha ganhasse a sua e que, quando as carcereiras recusaram, o Comitê comprou um aparelho para ela.

Durante aqueles dias, à medida que as condições de meu aprisionamento melhoravam, sentia uma profunda tristeza crescer dentro de mim. O que havia sido feito a meu favor havia sido feito, até então, apenas a meu favor. Mas eu era assombrada pelos espectros das irmãs e irmãos cujas vidas estavam sendo corroídas em outras prisões. Ruchell, Fleeta, John, Luis, Johnny Spain, David Johnson, Hugo Pinell, Willie Tate, Earl Gibson, Larry Justice, Lee Otis Johnson, Martin Sostre, Marie Hill, os irmãos Attica… Os nomes ficavam soando em meus ouvidos. Minha cabeça explodia com imagens confusas de suas masmorras e seus guardas – imagens aterrorizantes que tornavam a melhoria de minhas próprias condições físicas extremamente dolorosa para mim. A imensa energia do movimento que transformou minha situação na prisão tão depressa era uma energia a que meus irmãos e irmãs tinham mais do que igual direito. Tentei amenizar um pouco minha dor estabelecendo contato com irmãs e irmãos em prisões pelo país. De maneira quase compulsiva, por horas a fio, respondi a carta atrás de carta de prisioneiros e prisioneiras – cartas que se acumularam durante os meses em Marin, quando as carcereiras se recusaram a me entregar toda a minha correspondência. Mais do que nunca, sentia necessidade de consolidar meus vínculos com todas as outras pessoas presas. Parecia que minha própria existência dependia de minha capacidade de chegar até elas. Decidi então que, se fosse libertada, usaria minha vida para defender a causa de minhas irmãs e irmãos atrás dos muros.


NOTAS

[nota 1] Germaine Greer, A mulher eunuco (trad. Eglê Malheiros, São Paulo, Círculo do Livro, 1975). (N. E.)