Ineditos Brecht 5 Hana Luzia e Filipe Aca

 

 

1
A gente fuma. Suja-se. Bebe até se entortar.
A gente dorme. Tira sarro de uma cara nua.
Meu caro, o tempo morde e arranca nacos devagar!
A gente fuma. Caga. E um poema efetua.

2
Fizemos voto de pobreza e incastidade.
A incastidade adoça às vezes a inocência.
O que se faz embaixo do sol do Senhor se há de
Purgar na Terra do Senhor, segundo a crença.

3
As delícias da carne o espírito dissipa
Desde que as garras amputou da mão peluda.
As sensações do sol não chegam mais à tripa
A pele é um pergaminho opaco e não ajuda.

4
Ó ilhas verdes dessas zonas tropicais:
De manhã, sem maquiagem, que feição decrépita!
O inferno das visões, branco demais
É um barracão de zinco em que a chuva penetra.

5
Das nossas noivas, como conquistar o amor?
Carne de zibelina? Não, melhor com gim!
E o coquetel lilás de um ardente licor
Com moscas afogadas e amargas ao fim.

6
Beberam tudo, até alguns desodorantes.
Birita é com café bem preto que se serve.
Isso de nada adianta, ó Maria, antes
Crestarmos essas peles gostosas na neve!

7
Com a cínica pobreza dos poemas rasos
E, ao gelo, um amargor com gosto de laranja!
Um cabelo pichado à moda dos malásios
No olho!, ó fumo de ópio que se arranja

8
Nas vento-alucinadas choças de papel
De Nanjing, ó amargalegria do mundo
Quando a lua, animal branco e dócil, do céu
Tão mais frio, despenca e se perde no fundo!

9
Ó fruta celestial da maculada conceição!
O que avistou, irmão? Tudo ok pra depois?
Festejam com licor de cereja o próprio caixão
Levando lanterninhas de papel de arroz.

10
De manhã, acordando, flor que não se cheira
Um sorriso de escárnio o fumo azedo esbanja.
E a língua esboça, entre bocejos de canseira
Por vezes um sabor amargo de laranja.

ESTROFE ELIMINADA NA VERSÃO FINAL:

Pileque leve (põe-se o etílico pra fora
Como aguardente) não é perigo ou atropelo:
Nós só geramos mundos. Cresce-nos agora
No crânio ébrio um bárbaro cabelo.


Ineditos Brecht 2 Hana Luzia e Filipe Aca

Dezembro de 1923, algumas semanas após a malograda tentativa de golpe de Estado contra o governo da Baviera, perpetrada pelo partido nazista, que redundou na prisão de Hitler e vários de seu correligionários. Bertolt Brecht estava com 25 anos de idade quando sua Balada sobre a canseira foi publicada na prestigiosa revista literária berlinense Die neue Rundschau (Novo Panorama), fundada em 1890 pelo crítico teatral Otto Brahm e o editor Samuel Fischer, que continua — pasme o leitor — em atividade até hoje.

O poeta, dramaturgo, escritor, crítico e diretor teatral já despontava no meio cultural, mas ainda não havia conseguido fincar os pés em Berlim. Suas diversas incursões à capital renderam bons contatos, três semanas de internação hospitalar devido à inanição e uma infecção renal, mas nenhuma fonte de subsistência. Continuava dependente da ajuda paterna, pendulando entre Augsburgo, sua cidade natal, e Munique, onde granjeara a amizade e admiração de seus dois principais incentivadores: o escritor Lion Feuchtwanger e o crítico teatral Herbert Ihering.

A este último, deveu a mais importante distinção literária da República de Weimar — o prêmio Kleist —, recebido em novembro de 1922. Uma proeza em se tratando de um jovem autor que só havia finalizado duas peças, Baal e Tambores da noite, ambas escritas em 1918, das quais apenas a segunda havia sido encenada. Mas já causara furor no meio literário com a publicação na revista Der neue Merkur, em setembro de 1921, do conto Bargan deixa pra lá — Uma história de filibusteiros, carregado de alusões bíblicas, cenas de violência (“foi tão desgraçadamente abrupto que Deus desviou a sua face para longe, a fim de ver a colheita no Brasil”) e uma ousada relação homoerótica entre piratas.

A Balada sobre a canseira, escrita para a atriz Gerda Müller em 1920, entraria — com o título abreviado, sem a penúltima estrofe e a dedicatória — na primeira e mais programática coletânea de poemas de Brecht, o Breviário doméstico, de 1927.

Parodiando o manual devocional de Martinho Lutero, mas também com referências à liturgia católica, o livro está dividido em cinco “lições”, um “capítulo final” e um apêndice. Inicia-se com uma “instrução de uso”: “Este breviário doméstico destina-se ao uso do leitor. Não deve ser devorado sem propósito. (…)”

O poema Sobre a canseira foi incluído na segunda lição: “A segunda lição (Exercícios espirituais)” — explica o autor — “dirige-se mais ao entendimento. É vantajoso proceder a sua leitura devagar e repetidamente, nunca sem ingenuidade. Através dos ditos ali ocultos e das dicas explícitas, uma pessoa pode ser capaz de obter esclarecimento sobre a vida”.

Há nele reverberações das invectivas saint-simonistas de Heine, no século anterior, contra a excessiva espiritualização do ser humano na cultura ocidental. O clima de fim de festa — com “sabor amargo de laranja” (alusão profética a alguma republiqueta “dessas zonas tropicais”?) — reflete a situação de uma cidade que estava prestes a ser asfixiada pela extrema-direita. Munique, que até a Primeira Guerra Mundial fora um dos principais centros artísticos da Europa Central, tornou-se rapidamente o soturno epicentro de um cataclisma político que forçaria a debandada de seus artistas e intelectuais progressistas. Nos anos seguintes, Berlim irá brilhar radiante como a metrópole mais arrojada do continente, ainda que inflada pelo crescimento vertiginoso e marcada pela miséria e os conflitos sociais.

Brecht, que se muda para lá em 1924, alcançaria o sucesso retumbante quatro anos mais tarde com A ópera dos três vinténs, em parceria com o compositor Kurt Weill e Elisabeth Hauptmann. Os anos efervescentes da “Berlim Babilônia” terminariam abruptamente com a ascensão ao poder de Hitler, em 1933.

Sobre a canseira é um dos 300 poemas que selecionei e traduzi para a mais abrangente e primeira antologia bilíngue da poesia de Brecht em língua portuguesa. Sairá pela editora Perspectiva, na coleção Signos, dirigida por Augusto de Campos, no segundo semestre de 2019.



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