Graciliano Diadorim out19

 

Abaixo, um breve trecho de Os olhos de Diadorim, de Wander Melo Miranda. É o mais recente livro do selo Suplemento Pernambuco. Nele, Wander investiga vários objetos em reinvenção, tanto na crítica literária quanto na própria literatura. Um deles é Graciliano Ramos (foto), autor do qual Wander é biógrafo. Você pode adquirir seu exemplar de "Os olhos de Diadorim" clicando aqui

Leia outro trecho do livro, desta vez sobre literatura contemporânea, clicando aqui

 

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CODA

“Fim de mundo” – é o que Fabiano vê ao seu redor, quando a seca reaparece e é obrigado a partir novamente com a família, outra vez em busca de sobrevivência. Fim de mundo, como expressão de um lugar inóspito e de uma situação estendida até o limite do humano, um movimento em círculo, um regime instável e precário, intensificado pelo uso do condicional: “Alcançariam uma terra desconhecida. Fabiano estava contente e acreditava nessa terra, porque não sabia como ela era e nem onde era”. [nota 1]

A impossível “mudança” ou “fuga” – início e fim de Vidas secas (1938) – é um modo de não conhecimento, vivido como promessa de felicidade ou libertação que se apresenta como se fosse o último desejo de um condenado à morte, no instante em que nada lhe resta senão o desejo de formulá-lo. Por ser assim, o desamparo se delineia no livro com traços tão fortes e ao mesmo tempo tão delicados. É necessário aproximar-se das personagens – Fabiano, sinhá Vitória, os meninos, a cachorrinha Baleia – com o cuidado exigido pelo que está na iminência de desaparecer para sempre no “mundo coberto de penas”.

Mundo à revelia da lei que torna os homens iguais e lhes garante uma vida justa. No episódio do soldado amarelo, Fabiano depara-se com a falta – kafkiana – de se ver aquém da lei no momento paradoxal em que sofre sua mão pesada: “Apanhar do governo não é desfeita”.[nota 2] Estar aquém da lei: situar-se num limiar impreciso ou muito nítido, onde a barbárie mostra-se tão natural quanto os riachos secos, o sol forte, os animais mortos de fome e sede.

Trazer esse mundo à cena literária brasileira, torná-lo visível em seus contornos ainda hoje tão nítidos, foi a tarefa que Graciliano Ramos se impôs como cidadão e artista. Teve que se desvencilhar de toda certeza autoral no devir outro que está no cerne da criação ficcional, como o episódio da morte de Baleia sugere de forma magnífica e terrível. Para falar da experiência extrema da dor teve também de manter a escrita sob rigoroso controle, fazendo a linguagem ir além do que lhe escapa – o real – para abrir novas vias de representação literária.

Décadas após a publicação de Vidas secas, tudo mudou e nada mudou de verdade. O compromisso assumido pelo escritor de ir contra a corrente da história para melhor apreendê-la permanece intacto nas múltiplas leituras que o texto engendra, na firme posição que mantém ao lado dos condenados da terra. Por muito tempo ainda – não sei se alegria ou danação – essa pequena obra-prima continuará a ser nossa face mais luminosa e sombria.

NOTAS

[nota 1] Graciliano Ramos. Vidas secas. Rio de Janeiro, Record, 2003, p. 127.

[nota 2]
Ibidem, p. 33.