“A opção pela luta armada não é a primeira escolha de Marighella, nem sua escolha mais natural. Ela é a consequência necessária da experiência histórica de explicitação do esgotamento das outras vias disponíveis, do sufocamento dos horizontes.”, explica Vladimir Safatle (USP) na introdução a Chamamento ao povo brasileiro (Ubu Editora), reunião de textos de Carlos Marighella (1911-1969).
Foi político, poeta, escritor, guerrilheiro e cofundador da Aliança Libertadora Nacional, um dos principais grupos de resistência armada à ditadura. Neste dia 4 completam-se 50 anos do assassinato de Marighella pelo regime, em uma emboscada na cidade de São Paulo.
Abaixo, um trecho do texto Frente a frente com a polícia, texto de 1966 que integra Chamamento ao povo brasileiro, no qual o autor instrui cidadãos a como agir caso tenham que lidar com a polícia. Organizado por Safatle, o livro será lançado no próximo dia 12, às 19h30, na Ocupação 9 de Julho (Rua Álvaro de Carvalho, 427; Bela Vista, São Paulo-SP).
***
FRENTE A FRENTE COM A POLÍCIA
Para a juventude e para os milhares de brasileiros, vítimas da ditadura, que passaram ou estão sujeitos a passar pelos interrogatórios da polícia e dos IPMS, como se estivéssemos em plena Idade Média.
O que se vai ler em seguida não são conselhos nem regras gerais para a atitude a ser adotada pelo militante político revolucionário, particularmente o comunista, que se encontra preso e tem que enfrentar a reação. É difícil estabelecer normas, de antemão, e fazer uma generalização sobre o assunto, aliás, de natureza demasiado complexa. O mais que se pode fazer – como referência para o militante preso – é recomendar um ponto de partida para a sua atitude face à polícia e aos IPMS (Inquéritos Policiais Militares) [nota da edição], e deixar o resto a cargo da consciência revolucionária.
O ponto de partida, a base inabalável para o revolucionário preso, é jamais revelar à polícia suas atividades e as de seus companheiros, jamais denunciar nomes ou fornecer endereços. Em seu trabalho A defesa acusa, Marcel Willard afirma a propósito: “Não informar o inimigo sobre o que ele não deve conhecer”, eis ainda um axioma que nossos grandes mestres de estratégia autodefensiva, Lênin e Dimitrov, formulam com força e insistência.
O ideal seria que o militante preso se recusasse a falar, e algumas vezes isto é absolutamente necessário. Marcel Willard, na obra citada, acrescenta: “Recusar responder a qualquer pergunta que vise à organização a qual pertencemos, sua vida e sua atividade interna, abster-se, a qualquer preço,
de pronunciar uma palavra que possa fornecer ao inimigo as armas que lhe faltam, e ele procura, eis o abc do combatente que caiu cativo”.
O procedimento de um militante ante a reação tem amplas possibilidades de ser correto, sempre que o preso toma uma atitude firme e não se intimida frente aos policiais e aos IPMS.
Um militante tudo deve fazer para não ser preso. Cabe-lhe, nesse sentido, tomar todas as medidas de segurança, medidas que não devem ser confundidas com atitudes misteriosas. Nenhum revolucionário, porém, está inteiramente livre da possibilidade de vir a ser preso. Prevendo tal possibilidade, um dos seus deveres é só tomar conhecimento daquilo que diz respeito a seu trabalho ilegal e não querer saber nada que tenha a ver com o trabalho dos outros.
***
Não deve guardar consigo papéis que contenham segredos da organização, nem nomes, endereços, telefones ou quaisquer outras indicações que possam servir de pista à polícia. Um bom exemplo dessa precavida maneira de agir é o dos carbonários franceses, que contaram com numerosos adeptos no período da Restauração, na França. Eis o que uma obra recente nos diz a respeito dos carbonários daquela época:
As admissões se faziam com a maior simplicidade. Tinham lugar nas lojas particulares, sob a indicação de um ou de vários membros e após juramento feito pelo iniciado de guardar segredo sobre a existência da sociedade e de seus atos, de não deixar dela qualquer pista escrita, de não tomar nenhuma nota, de não fazer nenhuma lista, de não copiar um só artigo do regulamento etc.
É fácil ver que para aqueles revolucionários o pensamento fundamental era a garantia do segredo da organização. O Partido Comunista alemão – agindo dentro do mesmo sentido – deu outro grande exemplo, no momento em que os nazistas estavam prestes a tomar o poder, nos anos que antecederam a Segunda Guerra Mundial. Os comunistas alemães preparam-se cuidadosamente para a passagem à ilegalidade. Ao chegarem ao poder, os nazistas armaram a provocação do incêndio do Reichstag, na vã tentativa de atirar a opinião pública contra os comunistas. Mesmo assim, passaram pelo dissabor de uma estrondosa derrota política, que lhes foi imposta pela atitude revolucionária de Dimitrov perante os tribunais nazistas. A posição de Dimitrov perante a reação é o mais completo exemplo que um militante comunista tem o dever de estudar.
A atitude do militante comunista em face da polícia e dos IPMS será facilitada, desde que o militante tenha tido o cuidado de não se deixar apanhar com nomes, endereços etc. Seja como for, porém, o militante preso não deve fazer transações de consciência, para justificar fraquezas ou capitular diante da reação.
O militante preso, sobretudo o militante novato, deve ter sempre em vista que a polícia não adivinha, e que tudo o que ela sabe é resultante de uma denúncia ou de uma pista qualquer. A polícia nunca sabe tudo completamente. Seu interesse reside, assim, em obrigar o preso a falar, seja por meio de truques, seja por meio da violência, seja pelos dois métodos empregados simultaneamente.
Contra as torturas e os espancamentos, o recurso é resistir. Falar alguma coisa é abrir o caminho para novos interrogatórios, originados das mais insignificantes confissões, num momento de fraqueza.
Um dos métodos usados na polícia e nos IPMS é levar o militante preso a travar discussões políticas com o delegado ou com os encarregados do inquérito. Por esse meio, os policiais e os coronéis fascistas dos IPMS procuram pôr em dia os seus conhecimentos políticos, conhecer, em detalhes e
globalmente, o que a organização revolucionária pensa e o que pretende fazer.
Entre os truques utilizados pelos policiais e encarregados de IPMS há um que chama a atenção desde logo: uns policiais fazem-se passar por bons e delicados, enquanto outros são violentos, grosseiros e espancadores. O coronel encarregado do IPM do PC, por exemplo, faz-se passar por um oficial delicado, culto, não grosseiro, contrário aos espancamentos. Seus companheiros, no mesmo ipm ou em outros IPMS, agem, entretanto, violentamente e não fazem questão de serem tomados pelo preso como “bonzinhos”. Este aparente contraste é um velho jogo para deixar o militante impressionado e levá-lo a fazer confissões aos policiais “cultos” e “delicados”. Os policiais “bonzinhos” oferecem-se ao preso para deixá-lo telefonar à família. Prometem-lhe visitas, melhores condições no cárcere. Afirmam que o preso será solto no dia seguinte. Pedem que, ao sair da cadeia, o preso não vá aos jornais, não fale a ninguém o que sucedeu com ele nem revele o depoimento que prestou.
Os militantes que aceitam essas normas dos policiais e dos encarregados de IPMS, em geral, estão perdidos. O mínimo que lhes pode suceder, depois, é serem novamente intimados para “esclarecer alguns pontos de seu depoimento anterior”.
Mais grave é quando o militante é solto e concorda em manter contato telefônico com os policiais e encarregados de IPMS ou permite que eles visitem sua residência. Pode-se dar até o caso de um militante, após sair da prisão, ser surpreendido ao visitar um ou outro desses policiais ou encarregados de IPMS. Um militante que procede assim não merece mais confiança. Constitui também prática errônea a daqueles militantes que saem da prisão elogiando tais e quais inquisidores do Dops ou dos IPMS. Para um revolucionário, os inquisidores da polícia e dos IPMS são inimigos de classe. Difundir elogios a essa gente é contribuir para afrouxar a vigilância e propagar ilusões, desarmando os que continuam sendo vítimas de prisões e dos interrogatórios dos coronéis fascistas da ditadura.
[nota da edição]: O Inquérito Policial Militar (IPM) era um instrumento da ditadura para perseguir e legitimar a repressão a dissidentes – ou seja, garantir o controle e eliminar "o inimigo interno". Era empregado em conluio com Ministério Público, que recebia o processo e o encaminhava de acordo com a orientação do regime.