1. O cheiro

Pelo menos uma vez por dia aquele cheiro se espalhava pelo meu apartamento. Vinha do nada. Eu estava aqui, sozinho, sentado ao computador no meio da tarde, lendo ou escrevendo em minha biblioteca, exatamente como faço agora, quando ele surgia, pontual e agressivo. Primeiro era um susto, um estorvo à concentração, e depois um desafio à lógica. Se alguém acendesse um cigarro atrás de mim, juro, e soprasse a fumaça diretamente contra a minha nuca, a sensação não seria mais real. E aquilo levava uns três minutos em média, cinco no máximo, um fenômeno duradouro, sendo que às vezes era possível identificar até um certo aroma de fósforo queimado na penumbra do escritório. Eu me levantava e abria tudo, a velha vidraça vagabunda, três milímetros de espessura, as persianas de madeira, e que entrassem logo o barulho e a ventania do centro de Curitiba. Botava a cabeça para fora e inalava o mundo exterior, ah, os eflúvios da Ébano Pereira — alguém estaria fumando no andar de baixo? Não, nada a ver, o oitavo estava limpo, cheiro vinha daqui de dentro mesmo, só podia.

Antes de concluir qualquer coisa, no entanto, era necessário investigar bem os demais cômodos da casa, e por isso eu seguia escancarando janela após janela, numa diligência inútil, a farejar o vento que lambia meus quartos, minha sala, minha área de serviço. Pelos basculantes do banheiro e da cozinha, subiam — e ainda sobem — emanações comuns, o bafo de lixo e fritura que se desprende dos fundos do prédio e, dependendo da época do ano, o perfume das flores da Pracinha do Amor. Mas de cigarro, fumaça e tabaco, nem sinal. Lá fora, nada de notável; aqui dentro, uma fedentina macabra.

Encerrada essa verificação rápida e frustrada das minhas dependências, eu passava à área comum do condomínio, o amplo corredor do nono andar, quase um salão, e me aproximava em silêncio das seis portas de seus outros três apartamentos, averiguava o fosso dos elevadores, a escadaria, alguém fumando escondido aí, alô, ei, um moleque talvez, oi? Ninguém, nem gente nem catinga, o cheiro não estava ali, não adiantava procurá-lo fora de casa. Ele vinha, eu sabia, da minha biblioteca.

A verdade, contudo, é que fui me cansando daquela rotina de sabujo, até desistir definitivamente de buscar a origem de tal prodígio olfativo. Azar, era só um miasma, uma nuvem, sobrenatural ou não, tanto fazia. E assim, mesmo tendo parado de fumar havia já algum tempo, convivi tranquilamente com aquele mistério por cerca de dois meses.

Até que numa tarde, mais uma vez sozinho, eu checava meus e-mails quando ouvi um ruído estridente, muito alto, vindo de algum ponto do meu apartamento. Algo tinha caído, ou sido atirado, contra meu velho chão de tacos, e certamente se partira com o choque. Corri para ver o que era, assustado, e sob o largo batente que separa minhas duas salas encontrei três cacos de vidro transparente de tamanho médio, perigosos, curvos, um deles apresentando uma borda levemente arredondada. Não compreendi o que poderiam ser, nem visualizei o todo de que fariam parte. Não eram fragmentos de um copo ou de uma garrafa, nem haviam se libertado, por golpes de mágica, de alguma vidraça, ou da mesa de centro. Ao meu redor, as portas e janelas fechadas só aumentavam minha confusão. Por via das dúvidas, envelopei os caquinhos e os guardei numa gaveta.

Curioso, comentei o caso com meu porteiro, falei sobre o vidro quebrado em minha sala, e sobre o cheiro intermitente de cigarro que me assombrava. Foi aí que ele, há décadas trabalhando no edifício, me resumiu a história do antigo morador de meus domínios, seu Belmiro, funcionário público aposentado, septuagenário, um viúvo sem parentes que, a meio caminho do fim da vida, perdera o único filho num acidente de trânsito. Desde a mocidade fumava três, quatro carteiras por dia; em troca, ganhara um enfisema pulmonar e uma doença cardíaca qualquer, sem nunca haver cogitado, nem nos piores momentos, abandonar o tabagismo. Sofrendo de graves restrições respiratórias, morreu de repente, na cama, no mesmo quarto onde, oito meses depois, eu estaria montando a minha biblioteca.

Ok, pensei. Boa ficção, o porteiro era realmente um craque do improviso, um ótimo humorista. Ri na cara dele, e subi ao meu apartamento ainda sorrindo - para mim mesmo, no espelho do elevador.

Entrei em casa pela porta de serviço e, por sorte, vi que a torneira do tanque vazava. Fechei o registro e fui à despensa, apanhar minha caixa de ferramentas. Ao lado dela, numa prateleira cheia de potes de pregos, parafusos, porcas e ruelas, encontrei o objeto. Um cinzeiro de vidro barato, que usei durante muitos anos, parcialmente quebrado, escondido atrás do material de limpeza.

Meti tudo numa sacola plástica, o cinzeiro e os cacos que eu preservara no envelope, e joguei aquilo fora, xô, passa, sai. Quer pitar? Pois vá baixar em outro terreiro, velho sem-vergonha.

 

2. A viúva

Dona Bonita morava com a irmã, de quem eu nunca soube o nome, ambas octogenárias, no apartamento aqui embaixo. Um dia, o Alzheimer acordou enfezado e obrigou Dona Bonita, que não se achava em condições de cuidar sozinha da companheira doente, a internar a outra, já desmemoriada, num asilo qualquer da região metropolitana. Desde então, viúva de um capitão morto ainda moço, pensionista vitalícia da Aeronáutica, a velha, que também não tinha filhos, passou a viver somente com Richelieu, seu pinscher miniatura banguela.

As coisas, porém, não demoraram a se complicar para Dona Bonita. Não sei exatamente como tudo começou, foi questão de dois ou três meses de solidão e inverno, muito pouco tempo,só sei que se tornou comum ouvi-la, no meio da madrugada, a arrastar seus móveis pra lá e pra cá, sob os protestos compungidos do assoalho. Oratórios, guarda-roupas, estantes, balcões, camas, mesas, baús, tudo aquela mulher amontoava diante das janelas de seu apartamento no oitavo andar. Só depois é que ficamos sabendo que ela construía barricadas; ao zelador, explicou que precisava impedir a invasão de sua casa por um fétido enxame de espíritos noturnos voadores.

De nada adiantou tanta precaução, que dúvida. Os fantasmas não tomavam conhecimento de Dona Bonita, e se instalavam ali em número cada vez maior, cada vez mais festivos, ruidosos e irreverentes e, a cada noite, não importando o quanto a velha chorasse ou gritasse por socorro, um novo bailão de espectros se promovia no 801, bem debaixo da minha cama.

Não, também não foram poucas as horas que Dona Bonita gastou na portaria, em companhia do porteiro da madrugada, o cobertor rescendendo a naftalina sobre as perninhas tortas e, lá em cima, sua tevê falando às paredes, uma gralha eletrônica, sintonizada em programas evangélicos de exorcismo expresso e demais picaretagens, o zurro dos pastores rivalizando apenas com o uivo desesperado do infeliz Richelieu.

Pobre Dona Bonita. Eu a encontrava no elevador, ainda vaidosa da carcaça que lhe restava, a peruquinha loura assim, meio de lado, pendendo à direita, o casacão de pele de tigre-dentes-de-sabre, o cheiro de inseticida, os perigosos tamanquinhos de salto fino, seus calcanhares rachados sob a meia-calça grossa, a maquiagem tosca de boneco de ventríloquo. Nas mãos, quase sempre, um embrulho fedendo a carniça.

— É pro meu pinche — esclarecia ela, meio sem jeito.

Mentira, não era, eram oferendas para os espíritos. É que a velha, querendo agradá-los, passou a espalhar pratinhos de papelão pela casa toda, alguns com carne crua, vísceras e miolos comprados no açougue ali, da Cândido Lopes, outros com doces da Mercearia Viana, em geral pães de mel recheados, ou sonhos de nata, ou fatias de cuque de banana. A comida, misturada aos montes de cocô de cachorro largados por todos os cômodos do imóvel, agradava não só aos fantasmas, mas principalmente às moscas, às formigas e às baratas de toda a região da Cracolândia, e também apodrecia muito depressa, quando não era, antes, devorada — e logo regurgitada — pelo próprio Richelieu.

Resolvemos intervir quando Dona Bonita decidiu se pendurar na janela todo amanhecer, meio corpinho para fora, a barriga na soleira, o teto do extinto Cine Condor lá embaixo, e berrar pelo auxílio de um anjo específico, um tal de Ituriel, que ela jurava residir no núcleo do Sol. Chamamos o serviço social e a Aeronáutica, que enviou uma junta médica para avaliá-la. Em cerca de seis meses a levaram, e para o mesmo asilo onde a irmã estava internada. Dona Bonita, entretanto, não aguentou o baque: uma semana após a mudança de ares, morreu, alegando saudades de Richelieu — entregue, dizem, aos cuidados do canil municipal.

Tive, portanto, sete madrugadas tranquilas. Porque, morta Dona Bonita, é claro, você já sabe, ela voltou imediatamente para casa. Está aqui, agora, debaixo da minha cama, a arrastar seus móveis de lá pra cá e de cá pra lá, tentando bloquear, um a um, os seis janelões de seu apartamento e impedir que a baderna tome conta de seu lar. Como ainda não ouvi os uivos de Richelieu, imagino que ele ainda deva estar vivo, o pulguentinho do inferno.

 

3. O palácio

Éramos quatro a pé na Emiliano Perneta, quatro caras a caminho do Dromedário, quase onze da noite duma quarta, um miolo de semana chato e chuvoso, a rua vazia e nenhum de nós bêbado. Entre a Visconde de Nácar e a Visconde do Rio Branco topamos com o palácio, um negócio de maluco, uma parada hindu — Sumantra, era o que dizia o letreiro gigante, dourado tipo as gravatas dos dois seguranças de preto, impecáveis, à porta do imóvel. Era uma época em que, como nossos filhos, hoje, tínhamos tempo a perder em excesso, e por isso paramos um pouquinho, mesmo na garoa, e mesmo sem muito interesse, só para perguntar à duplinha forçuda que negócio era aquele de Sumantra, e desde quando havia ali, em nossa rota costumeira, um puteiro de tamanha magnitude — seria por acaso coisa nova, amigo? Novíssima, respondeu-nos o primeiro, superlativamente, no que foi logo secundado pelo segundo, novíssima mesmo, o cara cravou, acabamos de abrir, vamos chegando, vamos chegando, as moças estão estalando de novas.

Hesitamos os quatro, bons moços que éramos, cinco ou seis minutos na base do será-que-sim-será-que-não, consultando carteiras e consciências, e vimos que o troço andava fraco, minguado em ambas as instâncias, pouco dinheiro e pouco juízo. Mas os camaradas de preto, que massa, nos garantiram que valia a pena conhecer a casa, ao menos isso, e sem compromisso, olha a rima aí, bom sinal, meu poeta, podem entrar e dar uma olhada, disseram, vão por mim, o primeiro falou, dinheiro não compra felicidade, a vida é curta, e às vezes dura uma noite, acaba daqui a cinco horas, e o segundo emendou que aquele é que era, sim, um bom conselho a seguir, e que, aliás, Sumantra, na gíria lá dos indianos, aquela gente sábia que se amarra numa putaria, significava exatamente aquilo, “bom conselho”, rapaziada.

Ok, vamos nessa, pensamos, nós entramos aí, damos uma banda e caímos fora, com sorte até pegamos um strip-tease, uma gata nua sobre o queijo, uma dancinha do poste, da garrafa ou mesmo do passarinho, sei lá, qualquer coisa assim, na louca e na faixa, vamos nessa.

E fomos mesmo, os quatro Sumantra adentro, quatro bobalhões através duma sala acarpetada, cinzenta e inóspita, desabitada de tudo, menos de ácaros, pulgas e aranhas, iluminada feito set de cinema, cheia de espelhos suspeitos e ligeiramente deformantes. Fomos e paramos aos pés duma porta corta-som pesada, que empurramos em grupo e nos cedeu passagem à boate propriamente dita, escura como toda boa boate tem que ser, mas varada, em sua treva fumê, por um e outro raio laser esverdeado, além dessa e daquela lampadinha piscante colorida.

Era ali que o bicho pegava. No centro duma minipista circular ferviam quatro moças de vermelho-fogo, uma para cada um de nós, o mais perfeito arranjo matemático, vejam só que maravilha, eram elas e mais ninguém e mais nada, nem sombra de garçom ou DJ ou cliente, nada, eram elas e éramos nós, quatro mais quatro, e é claro que isso seria muito legal, seria lindo — se as moças fossem lindas, por exemplo, ou se fossem apenas e meramente feias —, mas, é preciso que se revele logo, sem rodeios poéticos ou pudores racionais: eram diabas, e diabas legítimas, não o digo no sentido figurado mas sim literalmente, diabonas de rabo, chifre, catinga e demais acessórios correlatos, e nos receberam aos gritos e safanões, às gargalhadas, os peitos já de fora e chacoalhantes, cada aréola uma espiral pendular hipnótica.

Nem precisamos combinar nada, silêncio completo, boca de muçarela. Naturalmente vimos inverter-se o sinal daquela equação que, de início, nos pareceu tão favorável e quase mística, e o quatro-mais-quatro de há pouco agora já era um quatro-menos-quatro bem miserável, um zero redondo, operação inversa total, miou tudo, o sonho acabou, quem furunfou furunfou, vamos nessa, pra já, e fomos, as moças atrás de nós, suplicantes e seminuas.

Os dois seguranças ainda tentaram nos deter à porta, com abraços amigáveis e palavras de incentivo, mas nos defendemos bem de suas investidas, com sorrisos francos e calorosos apertos de mão, fica pra outra vez, pruma próxima, companheiro, falou? Falou, e tudo certo.

Ufa, escapamos. Mas de quê? Sei lá.

Na noite seguinte, quinta-feira, passamos por ali naquele mesmo horário, quatro bobos a pé na garoa da Emiliano, nenhum de nós bêbado e tal, mas — cadê o Sumantra? Que fim levou? Sem a guarda real e a placa suntuosa, o palácio era só um barracão abandonado, credo, à sombra da velha igrejinha de Santo Estanislau.

 

SOBRE O AUTOR
Luís Henrique Pellanda é autor do Macaco ornamental e subeditor do jornal literário Rascunho

 

Outros inéditos da edição:

Quem?, por Alvaro Filho