Cortazar reproducao

 

Mais adiante você lê um trecho de Vivos na memória (Companhia das Letras), livro em que a crítica literária Leyla Perrone-Moisés, professora emérita da USP, revisita algumas relações que travou com críticos escritores, filósofos, antropólogos, em uma aventura que revela, a partir de vivências cotidianas ou esparsas, a força sensível de figuras como Saramago, Haroldo de Campos, Antonio Candido, Osman Lins, Waly Salomão e outros.

No trecho a seguir, Leyla fala sobre as vezes em que encontrou o escritor argentino Julio Cortázar.

 

***

Em minha viagem a Paris, em dezembro de 1968, eu levava um pacote de livros enviados por Haroldo de Campos para seu amigo Julio Cortázar (1914-1984). O escritor residia na cidade desde 1957. Tendo partido voluntariamente por discordar do peronismo, acabou ficando por lá, até ser definitivamente impedido de voltar à Argentina por ser um dos inimigos mais notórios da ditadura militar subsequente.

Depois de marcado o encontro por telefone, dirigi-me à Rue de l’Éperon, uma ruazinha que liga o Boulevard Saint-Germain à Rue Saint-André-des-Arts. Era (e ainda é) um prédio charmoso, com um portão antigo dando para um pequeno pátio cercado de plantas. Subi as escadas, toquei a campainha do apartamento e a porta se abriu.

Diante de mim estava um homem muito alto. Vestia calça jeans e um pulôver rústico de marinheiro português, bordado com âncoras e barquinhos negros. O rosto pálido de traços regulares era dominado por olhos claros muito separados e espessas sobrancelhas, que, aliados a um vinco profundo entre elas, lhe davam uma expressão de espanto. Os cabelos negros, um pouco longos, eram revoltos. Não usava barba, na ocasião. Era um homem estranhamente bonito, de idade indefinida. Até o fim de sua vida, ele manteria essa aparência de jovem velho ou de velho jovem, que intrigava os que conheciam sua idade.

Muito caloroso, convidou-me a entrar. A primeira coisa que vi na casa foi um pôster na antecâmara. Neste figurava o cãozinho Snoopy datilografando, em sua minúscula máquina de escrever, o seguinte texto: “Era una noche oscura y tormentosa...”. O pôster anunciava a casa de um escritor que, embora já famoso, não se levava tão a sério.

O escritor conduziu-me até a sala, onde nos sentamos à beira de uma lareira ou algo parecido. Apresentei-me, entreguei os livros, dei notícias de Haroldo e continuamos conversando. Ele me perguntou o que eu fazia em Paris e entusiasmou-se quando soube que eu trabalhava sobre Lautréamont. Cortázar era um leitor apaixonado do poeta franco-uruguaio. Conversamos sobre Os cantos de Maldoror, e de repente Julio disse esta frase: “Vejo frequentemente Isidore Ducasse na Rue Richelieu”. Ora, Isidore Ducasse, nome verdadeiro de Lautréamont, morrera em 1870. A rua em questão é uma viela sombria ao lado da antiga Bibliothèque Nationale. Por algum tempo, Isidore viveu bem perto dela, na Rue Vivienne, e nos Cantos de Maldoror ela é referida no trecho em que o mal-intencionado Maldoror persegue o adolescente Falmer.

Achando que devia interpretar a declaração de Julio como metafórica, sorri. Ele me disse: “Não ria, eu o vejo de fato”. Foi a primeira vez que uma estranha observação de Julio me desconcertava. Haveria muitas outras, nos anos futuros. Aos poucos, eu compreenderia que Julio vivia em nosso mundo real, mas também num mundo suprarreal cuja fronteira ele atravessava facilmente. E esse seu modo de ser nos levava a vê-lo, ao mesmo tem po, como um homem real e um ser de outro mundo. No conto “El otro cielo”, publicado dois anos antes desse nosso primeiro encontro, Cortázar tratava justamente dessas “passagens” entre dois mundos, e punha como personagem um jovem sul-americano da Paris do Segundo Império, cuja identidade as epígrafes do conto, tiradas dos Cantos de Maldoror, anunciavam.

O relato de seus encontros com Isidore Ducasse me fascinou tanto que ficou como a única lembrança deste primeiro encontro. No dia seguinte, quando fui, como de hábito, à Bibliothèque Nationale, atravessei a Rue Richelieu e tive um pouco de medo de andar em suas estreitas calçadas e de olhar para suas altas paredes, escuras e sem janelas.

Meu segundo encontro com Cortázar se deu no ano seguinte, num jantar na casa de Ugné Karvelis (1935-2002), com quem Julio estava então casado. Ugné, nascida na Lituânia, trabalhava na Unesco e na editora Gallimard. Era uma mulher grande, impositiva e um pouco intimidante. Além das afinidades intelectuais, os dois tinham posições políticas semelhantes. Conheceram-se em Havana, e eram ambos entusiastas da revolução cubana. Mas, naquele momento, a relação deles já estava estremecida.

Depois disso, encontrei Cortázar numerosas vezes, na casa de Alice e Georges Raillard. Nessas ocasiões, lembro-me dele sempre sozinho e muito discreto. Um perfeito caballero, sério e um pouco solene. Apesar de décadas de vida em Paris, ele não aderia àquele esprit parisiense que Georges encarnava tão bem: observações rápidas, irônicas, cutucadas nos ausentes e provocações dirigidas aos presentes, que faziam rir à roda da mesa. Julio não ria dessas fofocas. Numa ocasião, ele mesmo disse que não era suficientemente rápido para entender aquelas piadinhas de Georges. Sabemos que humor não lhe faltava, mas era de outro tipo.

Os anos foram passando, continuei encontrando ocasionalmente Cortázar em Paris. Até que, em 1975, Haroldo me comunicou que ele viria incógnito a São Paulo para encontrar a mãe e a irmã, que chegariam de Buenos Aires. Cortázar era membro do Tribunal Russell. Esse tribunal, que se dispunha inicialmente a julgar os crimes de guerra cometidos pelos Estados Unidos no Vietnã, em 1974 se transformara em Tribunal Russell ii, focado nas ditaduras sul-americanas.

Não podendo voltar à Argentina, o escritor marcara aquele encontro familiar em São Paulo, já que, no Brasil, embora também estivéssemos sob uma ditadura, o risco de ser preso era um pouco menor. A viagem devia, entretanto, ser cercada do maior segredo. Haroldo e eu fomos buscá-lo no aeroporto de Congonhas em meu carro. Cortázar desembarcou um pouco nervoso porque, no Rio, tivera de trocar de avião, o que era normal naquele tempo. Mas ele reclamou, porque considerava essa mudança de mau agouro. Levamos sua bagagem para um hotel modesto da avenida São João, onde os hóspedes deveriam ser menos visados do que num grande, achava ele.

Cortázar precisava resolver um problema de passagem na agência da Air France, na avenida São Luís. Decidi deixar o carro num estacionamento da rua da Consolação. O estacionamento era subterrâneo e, no momento em que chegamos à garagem escura, Cortázar entrou em pânico: “Leyla! Aonde me levas?”. Esta e outras reações do escritor mostravam seu estado de espírito, dividido entre a alegria dos reencontros e o temor, bem fundado, das polícias brasileira e argentina. Tratamos de tranquilizá-lo e fomos a pé pela avenida.

Ao passarmos por uma agência de viagens, Julio pegou-me pelo braço e me mostrou, na vitrine, uma miniatura de transatlântico. E me disse: “Imagine que lindo seria espalhar açúcar nesses tombadilhos e soltar neles um bando de formigas. Elas se agitariam para todo lado, como passageiros malucos”. Ideia típica de Julio, que sempre adorou os navios e via tudo com os olhos da imaginação.

Nos dias seguintes, ele esteve em Campos do Jordão, onde se encontrou com a mãe e a irmã. Em São Paulo, Haroldo de Campos, o grande tradutor Boris Schnaiderman (1917-2016) e eu passamos muitos bons momentos com ele. Num desses encontros, fomos tomar um aperitivo no Pingão do largo do Arouche e sentamo-nos numa mesa da calçada. A estátua do imperador Augusto, com o dedo em riste, parecia apontar para a nossa mesa, como a indicar que ali estava alguém especial. Já tínhamos comentado, entre nós, que nosso “cadáver” era difícil de esconder, porque, além de muito grande, era uma figura conhecida de todos pelas fotos em jornais e revistas.

Num outro dia, almoçamos no restaurante Mexilhão, da rua Treze de Maio. Fui buscar Julio no hotel, Haroldo e Boris nos esperavam no restaurante. Quando passávamos, já a pé, na esquina da Treze de Maio com a praça Dom Orione, notei uma mala velha jogada na calçada e disse a Julio: “É a valise do Cronópio!”. (Valise de Cronópio é o título de uma antologia de ensaios de Cortázar, publicada por Haroldo de Campos e Davi Arrigucci em 1974 pela editora Perspectiva.) Ele gostou da ideia e resolveu levar a mala para mostrá-la aos amigos. Foi assim que os garçons e clientes do Mexilhão viram, espantados, um senhor elegantíssimo, de terno e gravata, carregando uma mala despedaçada. A mala ficou ao lado de nossa mesa e combinamos que mais tarde Cortázar a autografaria. Na hora de encomendar os pratos, ele chamou o garçom e lhe disse: “Cuide para que não tenha nenhum traço de alho! Acontecem-me coisas horríveis quando como alho!”. O garçom partiu assustado, pois o cliente podia ser um vampiro.

No dia de sua partida, Julio devia almoçar em minha casa. Preparei um vatapá sem nenhum traço de alho e limpei um pouco a valise do Cronópio, para que ela recebesse o autógrafo que a tornaria um precioso ready‐made. Mas o telefone tocou, e era Haroldo. Contou-me que nosso amigo tinha saído um pouco, de manhã, e ao voltar o gerente do hotel lhe disse que, em sua ausência, tinham estado lá uns policiais que revistaram seu quarto. Em vista disso, Cortázar se dirigira imediatamente para o aeroporto, com o intuito de tomar o primeiro voo para Paris. O vatapá não seria comido e a valise não seria autografada, contratempos insignificantes diante do risco que o escritor corria.

O jornalista Marcos Faerman viu Cortázar no aeroporto, antes de o escritor tomar seu avião e voltar para Paris. Duas fotos dele, sentado lendo um livro, foram então tiradas pelo fotógrafo Antônio Lúcio. Faerman assim o retratou:

Ali estava um dos maiores escritores da América Latina, sozinho, muito alto (mais de dois metros), óculos escuros. Ele me parecia tranquilo, lendo um livro de Octavio Paz, o grande poeta e ensaísta mexicano — distraído, como se não estivesse num aeroporto. Num momento em que fechou as páginas do livro e começou a passear, não podia deixar de achar que ele estava um pouco triste, mas as pessoas que viajam sozinhas sempre parecem um pouco tristes. Era o homem mais alto do aeroporto, a cara oculta por óculos escuros, as mesmas sobrancelhas grossas, muito suas, um estilo de barba que parece ter a marca exclusiva do senhor Julio Cortázar. Caminhava com elegância, mas ao mesmo tempo com a força de um pugilista. Ele tem as mãos de um bom peso-pesado [...]. [nota]

Na noite anterior, Julio assistira ao show de Maria Bethânia no Tuca, e depois do espetáculo, tomando uma batidinha de limão no Cristal, além de outros assuntos, havia exposto a Marcos Faerman sua teoria de que Bethânia e Caetano eram a mesma pessoa. Curiosamente, parece que a Mãe Menininha do Gantois também os considerava unidos.

Nos anos seguintes, revi Julio algumas vezes em Paris. Ele se separara de Ugné Karvelis e encontrara o último amor de sua vida, a escritora e fotógrafa canadense Carol Dunlop. Os dois se casaram em 1979 e escreveram juntos o livro de viagem Los autonautas de la cosmopista. Ela era linda e 32 anos mais jovem do que ele. Foram talvez os anos mais felizes do escritor, até que, em 1982, Carol morreu de câncer. A partir dessa data, Julio mergulhou em profunda melancolia.

Em fevereiro de 1984, eu estava de volta a Paris e Alice Raillard me disse que Julio estava hospitalizado. Havia muitos anos o escritor sofria de uma forma de leucemia que piorava lentamente. Combinamos, Alice e eu, de visitá-lo no hospital, onde tomaríamos um chá com ele. Segundo Alice, ele estava melhor e se alegrava com a ideia de nossa visita.

No dia marcado, decidi voltar para casa depois do almoço, animada com a perspectiva da tarde. Chovia, entrei correndo num ônibus lotado. À minha frente, de pé como eu, um passageiro lia o jornal Le Monde. A primeira página do jornal estava diante de meus olhos, e nela li: “L’écrivain Julio Cortázar est mort”. Engoli a notícia em seco, mas logo as lágrimas começaram a correr por meu rosto, para espanto dos outros passageiros.

Telefonei a Alice, para ver confirmada a notícia. Alice convidou-me a acompanhá-la ao velório, mas eu não quis ir. Não me sentia tão íntima do escritor para me juntar aos próximos nessa cerimônia, e não queria ver Julio morto. No dia seguinte, fui ao enterro, no cemitério de Montparnasse. O séquito era relativamente pequeno, muito pequeno em comparação à grandeza do morto. “Poucos franceses”, comentou Georges Raillard. E ele acrescentou que a França não havia assimilado Cortázar, o que a manchete do Monde revelava. Se ele fosse realmente conhecido, como merecia, não teria sido necessário dizer “l’écrivain Julio Cortázar”.

A maioria dos presentes era latino-americana, alguns muitos jovens. Mas havia também um grupo de espanhóis, entre os quais se distinguia o pintor Antonio Saura, irmão do cineasta. Notei que os espanhóis eram os mais dignos, vestidos com sobretudos negros e caminhando compassadamente. Com sua seriedade e altivez, eram perfeitos para a ocasião. Foi muito comovente ver o esquife de Julio descer para junto do de sua amada Carol que, contra todas as leis da natureza e por descuido dos deuses, o precedera naquele túmulo.

Hoje, na Argentina, Cortázar é festejado por muitos de seus conterrâneos como um dos maiores escritores do país. Há grandes fotos dele nas livrarias e seu nome foi dado a uma bela praça. Entretanto, em vida, falavam muito mal dele. Não lhe perdoavam o longo exílio e o afrancesamento. Surpreendentemente (ou não), eram os marxistas que mais o criticavam, apontando incoerência entre seu apoio incondicional a Cuba e a literatura sofisticada que praticava. Esses marxistas achavam que ele devia escrever sobre e para o povo, e o consideravam um burguês esnobe. Por mais e melhor que ele se defendesse, em cartas e artigos, essas críticas o faziam sofrer.

Na conversa com Marcos Faerman, que o interrogou a esse respeito, ele respondeu: “Muita gente confunde política com literatura e literatura com inveja”. Fórmula perfeita. Talvez por inveja, Hector Bianciotti (1930-2012), argentino que também vivia em Paris, me disse um dia que o espanhol portenho de Cortázar era “velho”, devido aos anos de ausência. Anos mais tarde, Bianciotti se tornou um escritor francês, membro da Académie. Destinos muito diferentes, os desses dois argentinos escritores. Bianciotti, este sim, tinha trocado de país e de língua. Cortázar escreveu em espanhol até a morte.

Só consegui homenagear o grande Julio em 2004, por ocasião do nonagésimo aniversário de seu nascimento, quando publiquei na revista francesa Littérature um ensaio (“Passages: Isidore Ducasse, Benjamin et Julio Cortázar”) sobre seu conto “El otro cielo”, do livro Todos los fuegos el fuego (1966). Nesse conto, Cortázar efetua uma viagem no tempo, entre a Passagem Güemes da Buenos Aires do século xx e a Galerie Vivienne da Paris do século xix, frequentada por um misterioso sudamericano, cuja expressão era “formosa e ausente e lunática”. A epígrafe do conto o identifica: o uruguaio Isidore Ducasse, conde de Lautréamont. As passagens entre o real e o imaginário eram o habitat desses dois grandes escritores sul-americanos.

Em janeiro de 2012, estive em Buenos Aires e andei pela praça Julio Cortázar, lembrando-me dele com carinho. Em Paris, desde 2007, também há uma pracinha com o mesmo nome, na ponta da Île Saint-Louis, onde ele situou o conto “Las babas del diablo”, adaptado por Antonioni no filme Blow Up. Quem sabe um dia revejo Julio em Paris, caminhando em companhia de Isidore Ducasse na Rue Richelieu, vindos da Galerie Vivienne e dirigindo-se à Passagem Güemes de Buenos Aires? Se isso acontecesse, eu não teria medo; pelo contrário, ficaria maravilhada.

 

[nota] O Estado de S. Paulo, 26 maio 1975.