Este texto faz parte do livro Narrativas impuras, reunião de ensaios de Eneida Maria de Souza (UFMG) publicado pelo Selo Pernambuco/ Cepe Editora. O ensaio está na seção intitulada Modernismo Centenário; nele, a autora disserta sobre a correspondência entre Mário de Andrade e Câmara Cascudo. O livro está disponível no site da editora.
Esse homem dos sete instrumentos, aparentemente desorganizado, é o mais técnico, cauto, disciplinado dos brasileiros. Amigo de dossiê, de livro de nota, de apontamento em caderno próprio, com índice remissivo, catalogando o que lê para achar quando quiser.
Câmara Cascudo
A correspondência de Mário de Andrade e Câmara Cascudo, organizada por Marcos Antonio de Moraes, distingue-se de outras, por não se caracterizar como discussão de ordem literária, mas se impor no âmbito da pesquisa folclórica e popular. A diferença reside no fato de não serem cartas trocadas entre poetas ou escritores, como Bandeira, Drummond, Henriqueta Lisboa, entre outros, em que assuntos diversos eram discutidos, com especial destaque para a poética modernista, a vida literária e a criação artística. Raras são as passagens nas quais o poeta procede à leitura de poemas enviados por Cascudo, não se esquivando em criticá-los, fornecendo sugestões de mudanças, atitude por sinal muito comum na troca de cartas de Mário com amigos. Nos vinte anos de convivência epistolar (1924-1944), 65 cartas de Mário e 94 de Cascudo compõem este documento de extrema importância para a pesquisa sobre cultura popular, na qual são anunciadas reflexões sobre o tema e sobre o então incipiente panorama dos estudos no Brasil. A cuidadosa edição das cartas, realizada em 2010 por Marcos Antonio de Moraes, foi de crucial importância para as discussões que serão aqui esboçadas. Em 1924, Mário já se posicionava em defesa dos ideais modernistas, concentrando-se na pauta nacionalista e na construção de uma escrita dotada de traços brasileiros, por se afastar do português canônico e na linguagem oral pautada pelo rompimento com a herança europeia. Ressalte-se ainda o interesse pela construção da imagem do Brasil como nação, entendida na sua integridade, sem desvios regionalistas, por serem estes um dos empecilhos à construção do ideal de síntese do país: “E tenho consciência de que fugindo ao regionalismo (um perigo) não escrevo mais português. Estou escrevendo brasileiro. Deus me ajude!”1 Condena igualmente o exotismo aliado ao regionalismo, por acreditar na urgência da visão aglutinadora de nação e na desconfiança quanto à interpretação colonizadora do exótico. “Escrever brasileiro” colocaria a cultura nacional em situação de resposta à arte estrangeira, uma das mais bem sucedidas conquistas do modernismo. O ideal de nação, aliado à escrita brasileira constituiu, sem margem de dúvida, a proposta ousada do modernismo, na construção não só de uma literatura nacional, mas de uma cultura que se impunha na sua dimensão política e definitivamente como expressão original.
Cascudo, com sua experiência de província, já se notabilizava pela extrema atenção ao folclore nordestino, embora se mostrasse ainda vinculado aos estudos das influências ibéricas da monarquia católica na constituição do Brasil Imperial. Refletia preocupação distinta daquela esboçada por Mário em carta, pelo convite a pensar mais sobre as manifestações populares nacionais, como resposta à hegemonia das estrangeiras. O que na realidade reúne os pesquisadores é a vocação etnográfica, pelo destaque à associação entre arte e etnologia, tendência vigente nessa época em vários países. Desde a experiência da revista Documents, editada por Georges Bataille a partir de 19292, instalou-se a dissidência surrealista com o interesse dos franceses pela arte africana, gesto descolonizador em busca do exótico e da alteridade, no intuito de rever os valores da arte dita erudita. Mário de Andrade não havia publicado Macunaíma, mas já se desvinculava da proposta vanguardista do modernismo, associando a tradição ao novo, o popular ao erudito, seja pelo apelo ao barroco como signo de primitivismo e nacionalismo, seja pela cultura popular como índice de expressão nacional e do povo. A cultura negra é substituída, a princípio, pela interiorana e arcaica, uma vez que se distinguia daquela cultivada nas cidades, reduto do processo de modernização que começava a se instalar na periferia da nação. Não seria correto afirmar que o impulso inicial em Mário tenha se revelado nos moldes conservadores, com o objetivo de preservar a pureza dessa cultura. O propósito do escritor se desvinculava da defesa de um nacionalismo estreito e verde-amarelo, como era praticado por outros movimentos da época. O impulso restaurador da memória esquecida dos povos e da valorização de produções artísticas prevalecia como saída para o reconhecimento de culturas marcadas pelo apelo ao popular.
Cascudo inscreve-se nas cartas como possível encarnação da fala do povo, parceiro de Mário na aceitação da concepção heterogênea do popular com o erudito. Em consonância à afirmação de que sua experiência etnográfica distinguia-se da prática exercida pelo amigo paulista — arquivo construído pela consulta bibliográfica e pela pesquisa de campo — a dicção de Cascudo era para Mário motivo de admiração e prova viva de linguagem com rastro popular. O conteúdo das cartas era aromatizado pelo modo peculiar e sensorial do missivista, promovendo o prazer de estar sentindo o Nordeste como alimento para suas reflexões pessoais. A leitura das cartas converte-se em contato quase físico, por evocar a diluição aparente do aspecto simbólico da escrita e a revelação do teor sensorial das palavras: “Mande coisas e cartas. A fala serelepe de você dá na gente, espeta, pinga, chuça, faz cócega, é engraçada e sagui. Me diverte e é verdadeira, por isso, além de divertir comove.” 3(MORAES, 2010, p. 76). A exuberância da fala contrastava com o eruditismo do vocabulário de escritório e se expandia no campo aberto da região.
O texto solto e descontraído de Cascudo coincidia com o programa poético do modernismo, defensor da oralidade, da liberdade de criação e do empenho ao cultivo de uma língua adequada ao espírito nacional. Some-se a isso a utilização de expressões de origem popular, condizente com a região e inserida no imaginário das cantigas e rituais. São exemplos os vários comentários de Cascudo, resumidos em frases feitas e dicções próprias da convivência com o vocabulário retirado do repertório folclórico. O universo dos cantadores, os desafios e a magia saída dos contos transformam Cascudo em personagem de Mário, que em Macunaíma registrou muito bem esse clima mágico: “estou balançando a cabeça feito lagartixa entre estes dois nomes — Vaqueiros e cantadores e Sertão de inverno.”; “Festão de violeiros, cocos, emboladas. Maracás e saúdes à lei seca. Um dia que se estirou comendo a noite até depois da madrugada. E na praia. Faltava você para ficar tudo no ponto de subir para o céu. Jorge, eu e o Antônio gastamos seu nome como sabão em unha de lavadeira do Oitizeiro”. 4Curiosa ainda a denominação de Cascudo como Cabeça de Capei, e a de Mário como Macunaíma. Personagens da rapsódia a povoar a troca epistolar, numa conversa amigável e matizada pelo humor e a alegria.
Em carta de 22 de julho de 1926, Mário reitera o estilo “vivaz e eficiente” de Cascudo, comparando sua palavra à presença física da “guampa de marruá danado”, pelo poder de tocá-lo e impressioná-lo com sua força verbal beirando a realidade. A imagem do boi já sugere a referência às cantigas tradicionais do boi marruá, pela inserção do folclorista no arquivo oral do sertão. A aproximação virtual da linguagem de Cascudo se evidencia, no entender de Mário, como representação quase palpável desse universo: “Aquela síntese histórica de Natal está simplesmente estupenda como estilo vivaz e eficiente. A palavra na mão de você é feito guampa de marruá danado, chuça a gente direito mesmo. Se tem uma impressão até física, puxa!”5 Na convivência entre eles, os cheiros, as vozes, as imagens das manifestações artísticas incentivavam declarações de Mário sobre o país, utilizando-se o código alimentar e a proposta antropofágica. Os sentidos concentram-se na proposta nacionalista do escritor, traduzida pela imagem do país como motivo de esperança e idealismo. Receber e usufruir uma linguagem próxima às ideias poéticas do escritor resumiria o ideal aventureiro de tornar a experiência da viagem lição para se entender mais o Brasil:
Se lembre sempre de mim quando vir fotografias da nossa terra aí dos seus lados. Meu deus! Tem momentos que eu tenho fome, mas positivamente fome física, fome estomacal de Brasil agora. Até que enfim sinto que é dele que me alimento! Ah, se eu pudesse nem carecia você me convidar, já faz muito tempo que tinha ido por essas bandas do Norte visitar vocês e o Norte. Por enquanto é uma pressa tal de sentimentos em mim que não separo e nem seleciono. Queria ver tudo, coisas e homens bons e rúins, excepcionais e vulgares. Queria ver, sentir, cheirar. Amar já amo. Porém você compreende demais, este Brasil monstruoso tão esfacelado, tão diferente, sem nada nem sequer ainda uma língua que ligue tudo, como é que a gente o pode sentir íntegro, caracterizado, realisticamente? Fisicamente?6
Permanece o desejo de ir ao encontro total com novas experiências, no sentido atávico e naturalista do termo, em busca da integração tanto sonhada entre regiões e culturas brasileiras. A futura viagem da descoberta da região assume feição amorosa e sensorial, à feição da linguagem de Cascudo que lhe permitia viver intensamente um Brasil ainda povoado de cheiros e visões. A possibilidade de integração residiria igualmente na defesa de uma língua que pudesse reunir o que se mostrava esfacelado e monstruoso, resolução esta pautada pela naturalização do conceito de integração nacional. Devorar o Brasil como alimento para o projeto nacionalista incluía a entrega apaixonada e o apetite renovado pela conquista de novos adeptos da missão a que se dispunha abraçar. O espírito aglutinador dessa missão modernista se alimentava dos contatos epistolares, veículo de expansão da missão de transformar a cultura brasileira numa possível atualização dos ideais de modernidade.
A intenção de penetrar fisicamente na pesquisa corresponde à saída do ambiente fechado dos livros e da ida ao campo, estratégia eficaz para efetuar o cruzamento entre duas propostas etnográficas. Inicialmente, a atividade de Mário se iguala à prática de Cascudo quanto ao desenvolvimento de um método próprio de pesquisa, nas palavras de Neves (2000), “Cascudo não seguiu à risca as sugestões metodológicas dos ‘estudos de cartografia folclórica’ propostos por Mário, preferindo recorrer a um método próprio, elaborado a partir da familiaridade com seus sujeitos de pesquisa — geralmente não citados —, fundada na introspecção, na ‘convivência’ e nas relações tecidas no cotidiano.”7 Essa posição analítica deve ser entendida como distinta do aparato considerado científico, por desconhecer a rigidez e a objetividade aí exigidas. A advertência de Mário ao amigo quanto à necessidade de tornar-se conhecedor dos métodos novos de investigação etnográfica justifica-se durante a década de 1930, quando se inicia o diálogo de Mário com Dina e Lévi-Strauss, casal de professores convidados juntamente com a missão francesa a se integrar ao corpo docente da recém-fundada USP. Como Dina Strauss não chegou a ser incorporada à Faculdade de Filosofia, foi acolhida pelo Departamento de Cultura para a realização de estudos etnográficos, ministrando cursos, e tendo criado, em 1936, com o então diretor, em São Paulo, a Sociedade de Etnografia e Folclore.8 Entre as diferenças apontadas pela prática etnográfica recente, incluía a pesquisa de campo e em arquivo, com vistas à sistematização do conhecimento, uma vez que Mário já se entregava, desde os anos 1920 a esse trabalho de registro folclórico. Mas as preocupações do modernista se aguçaram na década de 1930, pelo incentivo dos cursos ministrados tanto na USP quanto no Departamento de Cultura, em que se iniciava o ensino universitário com ênfase no conhecimento científico das disciplinas, incluindo a este a crítica literária e a antropologia, o que viria a abalar tanto o exercício autodidata como o empirismo analítico.
Como pesquisador incansável, Mário se empenhava em registrar suas leituras, valorizando o saber coletado nas fichas, nas anotações minuciosas que ia fazendo ao longo dos estudos. No prefácio de Namoros com a medicina, de 1937, discorre sobre o exercício obsessivo do gesto de fichamento, reconhecendo, nesta empresa, como em outros momentos, a obrigação de tudo catalogar, em virtude de ter memória fraca. Prevalece, contudo, nesse prefácio a confissão do escritor quanto à ausência de método na leitura, ocasionando a obrigatoriedade do registro das pesquisas. Nesse sentido, o que chama de “deserto de fichas” corresponde à sensação de domínio do assunto pela quantidade de anotações, mas logo é posto à prova, ao atribuir ao deserto visões perigosas e sedutoras trazidas pela miragem. Reflete sobre o limite a ser considerado na produção do conhecimento com base na coleta de dados, por acreditar na seleção e filtragem do material recolhido como contrapartida ao acúmulo e ao desperdício. A quantidade de fichas não corresponde ao grau de eruditismo de seu autor, muito ao contrário, pode pecar pelo excesso e falta de método:
Minha maneira de trabalhar é assim. Vou lendo, desgraçadamente sem muito método, aquilo que pelo seu autor ou seu assunto me dá gosto, ou responde às perguntas do meu ser muito alastrado. Como desde muito cedo tive memória pouca mas estimo ter resposta pronta às minhas perguntinhas, tomei o hábito virtuoso de fichar. Os anos, não eu, reuniram assim um regular deserto de fichas. Apelidei “deserto” aos meus fichários, não vaidoso do número das minhas fichas, incomparavelmente menos numerosas que os grãos de areia de qualquer prainha, quanto mais deserto. Disse “deserto” mas foi por causa das miragens. Há os que me chamam de culto apenas porque tenho alguma paciente leitura. Há momentos em que me acredito seguro de um assunto, porque sobre ele tenho cento e vinte fichas. Perigosas miragens...9
Ao lado da importância atribuída às regras de coleta in loco dos dados, é que Cascudo vai ser alertado pelo amigo, em carta bastante rígida quanto ao seu método de trabalho, motivado pela experiência e pelo convívio com lendas e rituais no seu contato quase diário. O trabalho de leitura e armazenamento do material livresco, exercido igualmente por Mário, seria incompleto, em virtude da ausência do cotejo com as fontes. O comportamento, muitas vezes ambivalente do escritor em relação às suas opiniões, contribui para a abertura de novas perspectivas de trabalho, o que dependerá, sem dúvida, de momentos diferentes de sua trajetória crítica. Em carta de 9 de junho de 1937 a Cascudo, Mário coloca em discussão o método crítico do historiador, ocasião propícia para, além de alertá-lo sobre a riqueza do mundo folclórico ao seu redor, reforça a utilidade da pesquisa de campo, do corpo-a-corpo com o material fornecido pelos informantes. Sair da rede e ir ao encontro do convívio com as manifestações populares seria o modo correto de atualização do ofício de pesquisador, ao reunir o campo ao escritório. Mário adverte ao amigo, dando-lhe um puxão de orelha:
Você precisa um bocado mais descer dessa rede em que passa o tempo inteiro lendo até dormir. Não faça escritos ao vai-vem da rede, faça escritos caídos das bocas e dos hábitos que você foi buscar na casa, no mocambo, no antro, na festança, na plantação, no cais, no boteco do povo. Abandone esse ânimo aristocrático que você tem e enfim jogue todas as cartas na mesa, as cartas de seu valor pessoal que conheço e afianço, em estudo mais necessários e profundos.10
A pesquisa de campo, o contato com os “escritos caídos das bocas e dos hábitos” do imaginário popular, iria arrefecer o gosto pela erudição, pela abertura livresca em direção à vivência direta com as manifestações ao seu redor. A rede, instrumento de lazer e de trabalho, deveria ser substituída pela entrega às realizações anônimas do povo das ruas, do barulho alegre e contagiante das danças e festanças. O “ânimo aristocrático” a que Mário faz referência estaria vinculado à preferência de Cascudo pelos estudos de personagens e autores estrangeiros sem muita importância, como é o caso de Conde d´Eu, ou Stradelli, aquele, personagem do Império, este, etnólogo italiano, expedicionário na Amazônia.11 Aconselha a escolha de outros nomes da história brasileira, como Nísia Floresta, esquecida escritora rio-grandense-do norte, de muito valor para a cultura nacional. No entender de Mário, o contato com textos e expressões culturais a serem recuperados pela pesquisa deveria passar, nas palavras de Marcos Antonio de Moraes, “por um processo de conhecimento” da identidade brasileira”, com vistas à singularidade nacional.12 A dimensão universalista de Cascudo, ainda registrada por Moraes, consistia na captação, em outros continentes e momentos da história, dos registros regionais. A proposta de Mário, contudo, se inseria na imposição da singularidade do lugar da cultura brasileira no concerto das nações. Em carta anteriormente mencionada, o escritor paulista cobrará igualmente de Cascudo rigor e paciência no estudo dos temas analisados, exigência que respondia ao estágio em que se encontravam os trabalhos etnográficos do momento, segundo os parâmetros da ciência etnográfica. Semelhante postura será assumida por Mário quanto à crítica literária da época, opinião demonstrada em artigo de 1941, “Elegia de Abril”, sobre os novos nomes que surgiam no âmbito do meio universitário.13 É preciso assinalar que a ambivalência em Mário quanto aos limites entre arte e ciência irá depender da posição igualmente dupla no seu papel de ficcionista e pesquisador. Com Macunaíma, embaralha as fontes e empréstimos populares, ao contrário da precisão almejada no trabalho de coleta da arte popular, quando obedece a critérios de método. No entanto, a dicção ensaística que o caracteriza como crítico e pesquisador permite considerá-lo numa situação a meio caminho da razão e da intuição, da arte e da ciência. Por circunstâncias do momento, sente-se obrigado a se inteirar das novas regras de trabalho e tentar abandonar a posição de autodidata. A mescla da intuição e da razão sempre acompanhou o pensamento crítico e poético do escritor na composição de sua obra. Na época de criação da rapsódia, Mário comunica a Cascudo a montagem literária do livro, ao denunciar seu aspecto anacrônico e desregionalista, confundindo e ironizando a ideia de um país cujas regiões estariam plenamente diferenciadas. A mistura e o embaralhar das fontes e das denominações canônicas formariam a imagem não exótica do Brasil:
Um dos meus cuidados foi tirar a geografia do livro. Misturei completamente o Brasil inteirinho como tem sido minha preocupação desde que intentei me abrasileirar e trabalhar o material brasileiro. Tenho muito medo de ficar regionalista e me exotizar pro resto do Brasil. Assim lendas do Norte botei no Sul, misturo palavras gaúchas com modismos nordestinos ponho plantas do Sul no Norte e animais do Norte no Sul etc etc. Enfim é um livro bem tendenciosamente brasileiro.14
Povo e nação
A aventura epistolar de dois grandes divulgadores do arquivo de cultura popular no Brasil ressurge num momento em que muito se discute a questão, de modo a desmerecê-la como agenda plenamente voltada para a esquerda. Na caracterização dessa cultura, é prudente enfatizar a produção de imagens de povo e de pessoas marginalizadas pelo cânone oficial, de personagens pertencentes a classes excluídas, como proletários, cantadores, os sem-nomes, os quais se inscrevem na história literária e política como desprovidos de fala e de lugar. A constituição do conceito de povo — no plural — necessita ser devidamente explorada, tendo em vista que o avanço da discussão se baseie em reflexões mais recentes sobre o tema. O debate sobre o popular em Mário, por exemplo, residia na defesa da cultura nacional, à medida que pretendia valorizar o aspecto coletivo em oposição à dimensão particularizada da arte erudita. Nesse sentido, o desejo de integração do ideal comunitário do país, a valorização do homem comum e de vivências do cotidiano estampados nas suas cartas traduzem o que entende pelo conceito de popular. Com ênfase na valorização da cultura nacional, o escritor tem como proposta a união do país por meio das manifestações primitivas na arte, o que definiria o conceito de nacional em termos políticos. Em Cascudo, o folclore se resumia em “ciência do povo”, posição igualmente defendida pelo intelectual paulista, com ênfase no aspecto ainda pouco idealista da noção. Em pleno período modernizador, o escritor rio-grandense-do norte investe-se contra o avanço do progresso que começava a chegar na região, provocando a perda da autenticidade dos valores arcaicos da cultura. Consiste aí um dos pontos de discordância entre os missivistas, embora suas opiniões poderiam ser analisadas de forma semelhante: tanto o cuidado com a vitalidade da arte em vias de desaparecimento, como a crítica de Mário aos nordestinos, imigrantes povoando São Paulo à procura de melhores condições de vida. Segundo raciocínio que se estrutura de modo semelhante e invertido, a cultura popular não poderia ser afetada pela degeneração causada pelo progresso, da mesma forma que a “pureza” da vida urbana e “civilizada” poderia prescindir da presença dos trabalhadores e imigrantes. Preconceitos inversamente simétricos, em ambos autores. Conclui-se que estavam fora de cogitação agendas multiculturais no âmbito das ciências humanas e da literatura, as quais iriam irromper nas décadas de 1960 e 70. Ganham destaque os postulados relativos às identidades diferenciais, às emergências étnicas e às recomposições socioculturais, como a imigração, tendo em vista a proliferação de causas relativas às minorias. Cito duas passagens esclarecedoras que ressoam na correspondência entre os compadres:
Se o Sr. Gui quisesse reconstruir devia conhecer uma raça que inda não está cantada e sim fixada — o sertanejo. E era pra vir dentro duns trinta meses porque o sertão está morrendo engolido pelos açudes, pisado pelo Ford, cego pela lâmpada elétrica. (...) A casa grande derribou-se. Agora inaugura-se o estilo bolo de noiva com requififes e penduricalhos nas paredes. Vaqueiros? Sumiram-se. Estamos comprando zebu, caracu, hereford etc. Bicho de comer em cocho e beber parado. Não sabe ouvir aboio nem corre no fechado da caatinga. Morre a vaquejada e com ela duzentos anos de alegria despreocupada e afoita.15
Nessa carta de 26 de junho de 1926 de Cascudo, evidencia-se a tendência ao desaparecimento do labor rural, pelo advento do progresso e com ele a morte do sertão e o inevitável fim das cantorias, aboios e demais cantos de trabalho. A paisagem sertaneja começava a se modificar, com prejuízo enorme para a preservação de uma cultura artística e de um povo a ela ligado. O conceito de povo estava ainda submetido à revitalização de uma comunidade que se pretendesse coesa e íntegra, e a aristocracia da casa-grande encontrava-se na iminência de sofrer grandes perdas. O espírito nostálgico do pesquisador se valia da ausência progressiva dos sons dos aboios, substituídos agora pelo barulho motorizado dos automóveis, posição que tenta resguardar a paisagem nativa da região. A figura do sertanejo carecia ser reconhecida e cantada em versos e letras.
Mário, em carta de 27 de abril de 1931, posiciona-se em plena resistência e defesa de São Paulo, diante dos problemas trazidos pela Revolução de 1930 — e a proximidade da revolução Constitucionalista de 1932 — em relação à invasão da cidade pelos nordestinos, o que já havia sido demonstrada em outras ocasiões e textos diversos. Do ponto de vista econômico, a situação traria desvantagens para a cidade que se industrializava com a presença de “estrangeiros”, incluindo aqueles vindos das regiões do Norte e Nordeste. Constata-se aí a contrapartida da opinião do escritor com a de Cascudo, pois seria a cultura citadina que se encontrava contaminada pela presença de valores estrangeiros, o contato com o elemento estranho e heterogêneo a ameaçar sua independência. Do ponto de vista das composições socioculturais, a população estaria se modificando em virtude da produção do amálgama étnico e migratório. O desabafo e a agressividade do escritor paulista devem ser considerados em virtude da situação política do momento, de grande turbulência democrática no país. O bom nordestino, no entender de Mário, seria quem conseguisse vencer as intempéries da região e não se afastasse de sua terra. Contrariando a frase de Euclides da Cunha, “o nordestino é antes de tudo um forte”:
Você se refere a um artigo meu, do tempo em que eu caçoava bem-humorado da avança indecentérrima que os brasileiros, especialmente nordestinos estavam fazendo em S. Paulo. E conclui a carta, embora brincando, dizendo que agora perdeu a esperança que eu volte pra aí. É bom encontrar um homem como você, que soube ser eficaz na sua própria terra e aí ficou vivendo, pra comentar essa coisa horrorosa que está se passando por aqui.16
Guardadas as limitações de época, ao serem considerados os conceitos de popular e de comunidade em Mário como equivalentes do nacional, nessa passagem irá se contradizer quanto à proposta de integração do país pelo “concerto das nações” e pela diminuição de conflitos regionais. Defender o estado de origem e considerá-lo superior às demais regiões, pelo seu nível de progresso e de alta civilização, rompe com o desejo de integração nacional, provocado pela revolução de 1930. Afirmações distintas, pronunciadas em outras ocasiões e mesmo nessas cartas, confirmam o extremo cuidado do escritor com a abertura para a concepção da nacionalidade como construção literária, cultural e política.
Como extensão desta pesquisa em curso, pretendo discutir o termo populismo de modo a afastá-lo da concepção politicamente equivocada nos dias atuais, caracterizada pelo emprego estereotipado e conservador de cultura popular. As vertentes opostas do populismo — de direita e de esquerda — guardam diferenças na sua concepção, uma vez que as respostas ao problema se apresentam de modo completamente diverso. Na tentativa de colocar algumas questões ao desenvolvimento do tema, aproprio-me do pensamento de Jacques Rancière, ao discorrer sobre o populismo na França. No seu entender, o conceito não serve para caracterizar uma força política definida nem uma ideologia ou estilo político coerente, servindo para desenhar a imagem de certo povo. Ao contrário, ele não designa uma ideologia, nem um estilo político coerente.17 Nesse sentido, o emprego indiscriminado do termo contribui para torná-lo cada vez mais inócuo. Ernesto Laclau, intelectual argentino, na obra La razón populista, afirma ter o conceito posição marginal no discurso das ciências sociais pela sua constituição vaga e imprecisa. Mas essa imprecisão seria, no entender do teórico, igualável à própria indeterminação da mesma realidade social e determinante para construir sentidos políticos. A noção de povo seria concebida como “categoria política” e não como um dado da estrutura social, por não designar um grupo, e sim um ato de instituição “que cria um novo ator a partir de uma pluralidade de elementos heterogêneos.”18 “Povo” e “populismo” serão vistos como produto de uma força, de uma ação em torno de certos significantes vazios — equidade, justiça social, entre outros, como assim se expressa Laclau:
Así, podemos afirmar que para progresar en la comprensión del populismo, es una condición sine qua non rescatarlo de su posición marginal en el discurso de las ciencias sociales, las cuales lo han confinado al dominio de aquello que excede al concepto, a ser el simple opuesto de formas políticas dignificadas con el estatus de una verdadera racionalidad. (...) El populismo no sólo ha sido degradado, también ha sido denigrado. Su rechazo ha formado parte de una construcción discursiva de certa normalidad, de un universo político ascético del cual debía excluirse su peligrosa lógica.19
Outros momentos deste tema serão retomados em textos variados, com o objetivo de ampliar a discussão sobre cultura e arte popular, não só no modernismo mas também relativa aos tempos atuais. A articulação torna-se, por vezes, empregada de modo equivocado, necessitando que se realize a distinção entre os conceitos de populismo de esquerda e populismo de direita. O esclarecimento desses equívocos poderá ser equacionado em tempo oportuno e a partir de reflexões que ultrapassem situações tratadas neste ensaio. Por enquanto, entendo ter sido a breve apresentação do diálogo entre os compadres a oportunidade de discutir o imbricado perfil de intelectuais do século 20, portadores de um pensamento tão instigante e que até hoje tem suscitado o debate sobre os tortuosos rumos da cultura popular.
1 MORAES, Marcos Antonio. (Org. pesquisa documental/iconográfica, estabelecimento de texto e notas). Câmara Cascudo e Mário de Andrade: cartas 1924-1944.São Paulo: Global, 2010. p. 38.
2 Cf. artigo presente neste livro intitulado “Um turista nem tão aprendiz.”
3 MORAES, Marcos Antonio. (Org. pesquisa documental/iconográfica, estabelecimento de texto e notas). Câmara Cascudo e Mário de Andrade: cartas 1924-1944. Op. cit., p. 76.
4 MORAES, Marcos Antonio. (Org. pesquisa documental/iconográfica, estabelecimento de texto e notas). Câmara Cascudo e Mário de Andrade: cartas 1924-1944. Op. cit., p. 82-140.
5 MORAES, Marcos Antonio. (Org. pesquisa documental/iconográfica, estabelecimento de texto e notas). Câmara Cascudo e Mário de Andrade: cartas 1924-1944. p. 113.
6 MORAES, Marcos Antonio. (Org. pesquisa documental/iconográfica, estabelecimento de texto e notas). Câmara Cascudo e Mário de Andrade: cartas 1924-1944. p. 47.
7 CAVIGNAC, J.A; OLIVEIRA, L.A; BEZERRA, N.X. Antropologia nativa de um provinciano incurável: Câmara Cascudo e os estudos da cultura no Rio Grande do Norte. REUNIÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA, 26, 2008. Porto Seguro, Bahia, Brasil. Disponível em: https: //docplayer.com.br/8509942. Acesso em 06 nov. 2019. p. 12.
8 Cf. VALENTINI, Luisa. Um laboratório de antropologia: o encontro entre Mário de Andrade, Dina Lévi-Strauss e Claude Lévi-Strauss (1935-1938). Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. São Paulo, 2010.
9 ANDRADE, Mário de. Namoros com a medicina. São Paulo: Martins; Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1980. p. 6.
10 MORAES, Marcos Antonio. (Org. pesquisa documental/iconográfica, estabelecimento de texto e notas). Câmara Cascudo e Mário de Andrade: cartas 1924-1944. p. 296.
11 CASCUDO, Câmara. Em memória de Stradelli. O conde d´Eu.
12 MORAES, Marcos Antonio. (Org. pesquisa documental/iconográfica, estabelecimento de texto e notas). Câmara Cascudo e Mário de Andrade: cartas 1924-1944. p. 381.
13 “A equivocada discussão entre intuição e razão no âmbito da crítica literária motivou a mudança de comportamento de Mário quanto à sua atuação como autodidata e a necessidade de acompanhar os rumos de um pensamento originado de scholars e intelectuais de outra geração.” Cf. o artigo deste livro, “Mário, empalhador de passarinho. Inédito.
14 MORAES, Marcos Antonio. (Org. pesquisa documental/iconográfica, estabelecimento de texto e notas). Câmara Cascudo e Mário de Andrade: cartas 1924-1944. p. 123.
15 MORAES, Marcos Antonio. (Org. pesquisa documental/iconográfica, estabelecimento de texto e notas). Câmara Cascudo e Mário de Andrade: cartas 1924-1944. p. 111.
16 MORAES, Marcos Antonio. (Org. pesquisa documental/iconográfica, estabelecimento de texto e notas). Câmara Cascudo e Mário de Andrade: cartas 1924-1944. p. 200-201.
17 Cf. RANCIÈRE, Jacques. L´introuvable populisme. In: BADIOU, A.; BOURDIEU, P.; BUTLER, J.; DIDI-HUBERMANN, G.; S.KHIARI. Qu´est-ce qu´un peuple? Paris: La Fabrique -Éditions, 2013. p. 138.
18 LACLAU, Ernesto. La razón populista. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica de Argentina, 2005. p. 278.
19 LACLAU, Ernesto. La razón populista. Op. cit., p.34.