Xanadu

 

I

 

E se ela aparecesse agora, andar sinuoso, cabelos finos, encaracolados, rindo com todos os dentes à mostra, o que eu faria? Fingiria uma indi-ferença blasé, ou correria para a abraçar? Sinceramente, não sei qual seria a minha reação.A primeira vez que a vi reagi identicamente a todos que se encon-travam na festa. Ao entrar, Isa atraiu sobre si olhares concupiscentes dos homens e invejosos das mulheres. Inevitável, provocava ambos os sentimentos. Comigo não aconteceu diferente: ela me despertou admiração e desejo.Isa era um animal belíssimo, perfeito: olhos castanhos claros, nariz afilado, boca bem delineada, traços levemente amestiçados, denun-ciados pela tez amorenada, ma non troppo.  Nádegas protuberantes e sensuais. “Tenho bunda de negrona de Angola’’, jactava-se. Esbelta, alta, aparentemente magra, ao desnudar-se, no entanto, revelava uma exuberância inesperada: busto cheio e firme, coxas surpreendente-mente grossas, de carne dura, paradoxalmente macias, ancas largas, a pele coberta por excitante camada aveludada de penugem, dourada pelo sol e mar.

Fomos apresentados. Ela se chamava Anallise, com dois ls, porém considerava o nome pedante e até se assinava como Isa. Isa Monteiro. Nome de batismo: Anallise Katz Rauchemberg. A família era judaica. Mas diferente, fez questão de ressaltar. Nem eram milionários, nem ortodoxos praticantes dos preceitos e normas da religião. O Monteiro foi herdado do ex-marido. Não sabia explicar bem a razão de continuar usando-o. Talvez porque precisasse explicar menos como se escrevia. Aprovei a escolha, os sobrenomes Katz Rauchemberg, soavam muito duro, não condiziam com a feminilidade de quem os portava.Não nos largamos durante a festa inteira. Simpatia mútua. O que românticos provavelmente definiriam como amor à primeira vista.

Isa tinha 31 anos, desfizera o casamento há pouco mais de seis meses. Recusara a pensão do ex. Sustentava-se com o salário ganho como ad-vogada em uma multinacional. A entonação da voz, grave e ao mesmo tempo feminina, dava a impressão de alguém muito senhora de si, mas se confessou tímida e insegura. Mantinha a sanidade apoiada em duas sessões semanais de ortodoxa análise freudiana e, quando eram necessários, comprimidos.

– Não fosse o divã eu enlouqueceria, confidenciou.

Isa contou ter decidido-se pela análise quando alcançou aquele estágio do absurdo definido por Camus nos ensaios de O mito de Sísifo: sua beleza deteriorava-se, logo chegaria ao climatério, daí viriam a aposentadoria e a morte. A vida não passava de uma armadilha do qual o único atalho era o suicídio. Ela não apreciava atalhos. Tratava, pois, de viver o me-lhor possível, e descarregava as neuras no consultório do seu analista.

– Já que o estupro existencial é inevitável, relax, baby, relax, disse rindo.Trocamos telefones e começamos a sair juntos na semana seguinte. Sem compromissos, como ela fez questão de ressaltar na primeira vez que fomos para a cama.

Dei-me conta do quanto precisava de Isa uma noite em que não consegui conciliar o sono, apesar de ter sido condignamente ninado por uma amiga prestativa e sorvido, depois da amiga ter ido embora, o conteúdo inteiro de um bordeaux tinto, no gargalo.Em meio a uma happy hour, numa uisqueria lotada por executivos modernosos, convidei Isa para morar comigo. Disse-lhe que a amava. Mentia, claro, pois não acreditava em amor. Isa era uma necessidade física. Lembro que, ironicamente, naquele instante o toca-fitas do bar tocava So what?, de Miles Davis. Isa ficou de pensar na proposta.

Dois meses mais tarde estávamos sob o mesmo teto, dividindo leito, mesa, despesas e as inevitáveis aporrinhações cotidianas.Não demorou muito para ela se cansar da vidinha conjugal. Esqui-vava-se quando a convidava para sair comigo, voltava tarde para casa, alegando ter estado com amigas. Eu disfarçava o ciúme que me afligia. Afligia só, não, corroía-me a alma. “I don’t love you/ but I need you”, uma musiquinha dos Miracles, que os Beatles gravaram. Tudo a ver com Isa. Numa de nossas discussões perguntei por quê ela não me deixava. Respondeu que não sabia a razão, talvez gostasse mesmo de mim, ou talvez insegura de enfrentar novamente o mundo sozinha.

Na primeira vez em que Isa dormiu fora passei a noite em claro, atormentado. Em que braços estaria? Vários caras que conhecíamos não escondiam o tesão que sentiam por ela. Fábio, um agente de viagens, a comia com os olhos, indiferente à minha presença. Os dois tiveram um namorico antes de eu a conhecer. Isa garantiu que nunca treparam. Nem sabia o porquê , comentou cínica, já que o considerava bonito e sexy. O número de Fábio na sua agenda telefônica estava grifado com tinta vermelha.

O ciúme fez-me bisbilhoteiro. Vasculhava-lhe constantemente a bolsa, cautelosamente para não que não notasse. Ela ficava profun-damente irritada quando me apanhava mexendo nos seus pertences. Idiossincrasia que queria, se não compreendida, ao menos respeitada, ralhava. Cheirava suas roupas, na ânsia de detectar fragrâncias diferentes. Conhecia bem o aroma dos perfumes que ela usava. Examinava-lhe as calcinhas usadas em busca de manchas comprometedoras...

Desci  tanto que as vezes suspeito que o que sinto por Isa seja mesmo amor.

Cheguei ao ridículo de contratar um detetive particular para segui-la. Um bom filho da mãe, por sinal. Ao acertar com o sujeito, por telefone, o imaginei dotado do físico e cinismo de Jack Nicholson em Chinatown. Que decepção!

Vou ao seu escritório e deparo-me com um paspalho baixo, de bigodes aparados fininhos, maus dentes e péssimo hálito. Sua indumentária era compatível e complementava-lhe o aspecto: fatiota de tecido grosso, melhor apropriada para o outono europeu, que não combinava nem um pouco com sua calça jeans surrada. Os sapatos já haviam conhecido tempos melhores. Pela aparência do detetive, seria mais sensato eu mesmo vigiar Isa, porém, por conta de uma destas decisões absurdas que vez por outra tomamos, preferi continuar com o idiota. Talvez seu talento estivesse exatamente naquele seu jeito desleixado, ponderei.

Contratei-o.

Oscar, o tal detetive, passou um mês torrando meu dinheiro e não revelou nada que eu já não soubesse, ou desconfiasse. Seus relatórios diários descreviam, com deploráveis agravos ao idioma, visitas de Isa a butiques, bares com amigas, e eventuais idas ao condomínio onde vivia a mãe viúva. O cretino enganava-me. Tive a certeza disto numa tarde em que, ia passando por acaso, e flagrei Isa entrando no prédio em que ficava a agência de turismo de Fábio. No seu relatório Oscar omitiu esta ocorrência.

Perto de terminar nosso contrato, menti a Oscar, dizendo que pretendia continuar com ele. Combinamos que eu o apanharia no começo da noite para acertarmos detalhes sobre a investigação.

Ele entrou no carro, cumprimentou-me com um boa-noite recheado de seu bafo de cadáver em putrefação. Não retribui ao cumprimento, estava ocupado em evitar o vômito provocado pelo seu mau hálito, provavelmente oriundo do estômago. E haja estômago pra se suportar tal traste!

Rumei para fora do perímetro urbano.

Oscar quis saber aonde íamos. Não respondi. Estacionei no acostamento da BR 232. Próximo a um matagal. Estava muito escuro. O energúmeno quase chora ao ver a arma na minha mão. Suavemente, praticamente sussurrando, indaguei o que ele estava ganhando ao escamotear tanto a verdade nos seus relatórios. O canalha revelou ter sido desmascarado logo na primeira semana de investigação e que Isa e o cara que andava com ela (interrompi o cretino. O “cara’’ chamava-se Fábio, disse-lhe) pagaram para que suavizasse os relatórios.

Só não meti um tiro na testa do imbecil porque o haviam visto entrar no meu carro. Quem nos viu foi o porteiro do prédio onde Oscar mantinha a agência de investigação (Agência de Investigação Detetive Oscar Siqueira, para ser mais completo, conforme o cartão de apresentação do débil mental). Este porteiro já trabalhara no edifício de uma ex-namorada minha. Tratava-me sempre por “doutor Carlos’’. Não sei onde foi buscar o “Carlos’’, nem o “doutor’’, tratamento que abomino.

Voltei à cidade sem Oscar. Não sei como ele se virou, nem me interessa

sabê-lo.

 

 

II

 

Passei eu mesmo a seguir Isa.

 

Vi os dois entrando várias vezes em motéis. Tinham preferência por um chamado Xanadu. Uma quinta, depois do expediente, Fábio apanhou Isa no trabalho. Foram para um barzinho cubano nas Graças, cujo nome nunca consigo lembrar, apesar de ser bem vulgar e previsível. Beberam, riram, afagaram-se, ao som de rumbas e boleros. Tu me

acostumbrastes, a ser maravilhosa. Ah, quão lindo, o amor!

Segui-os até o motel. Xanadu!, como no poema de Coleridge, Kublai Khan: “In Xanadu did Kublai Khan/ A stately pleasure-dome decree...’’

Poesia inglesa é o meu forte. Coleridge, um dos meus bardos prediletos.

Aguardei pacientemente no carro, oculto por trás de um casebre abandonado, a uns 200 metros do motel. Entreteve-me a espera um programa de rock em uma FM, cujo locutor ria tal um lobotomizado e falava com um chatérrimo e caricato sotaque carioca.

Quase três horas mais tarde, o jipe japonês de Fábio surgiu no portão do motel. Menos de um quilômetro à frente, fechei-o. O carro dele quase capotou ao rodopiar na pista.

Uma meia de nylon (de Isa) ocultava-me o rosto. Uma espingarda calibre 12 fortalecia-me o ódio. Descarreguei a carga da arma nos dois.

Para simular um assalto, levei todos os objetos de valor que encontrei com o casal. Desfiz-me deles, atirando-os nas águas turvas e imundas de um canal em Boa Viagem.

Isa não morreu logo, emitia gemidos roucos e arrastava-se pelo acostamento em busca de um abrigo inexistente. Saquei o 38, desferi-lhe o tiro de misericórdia, na nuca. Fábio também não morreu de imediato: arquejava e me olhava com seus belos olhos verdes arregalados, querendo falar, mas sem capacidade para a palavra. Acho que me reconheceu, espero que sim. Atirei nele, na cabeça. As pernas do filho-da-puta levantaram, como se ele pretendesse dar uma cambalhota, mas foi seu último movimento. O casal partiu para “ beber o leite do paraíso’’,  conforme os versos finais de Kublai Khan. Ah, Xanadu! Não poderiam ter escolhido motel com nome mais apropriado.

 

III

 

A vingança foi tomada por mais um latrocínio, “rotineiros, nesta cidade tão violenta’’, me falou um delegado. A polícia aborreceu-me por três vezes com interrogatórios imbecis e maçantes. Os policiais trataram-me com a maior deferência, certamente impressionados com meus ternos bem cortados e minha boa aparência. Eu procurava alargar ao máximo a distância social que me separava deles. O debilóide que presidiu o inquérito, me tratava por “doutor” e só faltou pedir-me perdão por estar tomando meu tempo.

Livrei-me das, permitam-me o termo, garras da lei, graças, sobretudo, à reputação de Isa. Mesmo que me responsabilizassem pelo duplo assassinato, o currículo de Isa, que ostentava uma invejável plêiade de amantes, abrandaria minha pena: eu não passava de mais um coitado na atribulada carreira sexual da vítima. Esta era a concepção da polícia, dos amigos comuns e do populacho, que acompanhou o caso pela imprensa, com a morbidez que lhe é aracterística. Minha belíssima amada chegou a ser definida como uma “devoradora de homens’’ por um desses equívocos da natureza que assinam as páginas policiais dos matutinos.

Sinto saudades de Isa, do seu corpo, seu calor, seu sorriso graciosamente infantil, da maneira despojada com que enlaçava as pernas em torno de mim enquanto, depois do amor, repousando na cama, renovávamos as forças vendo TV ou escutando jazz. Compenso em parte sua ausência com memórias (seletivas, óbvio) e sonhos. Sonho todas as noite com Isa. Feito no poema Song, de Esther Mathews, “A amo mesmo enquanto durmo’’.

E se ela surgisse agora, aqui neste bar, onde tomo um uísque 12 anos, duplo, com uma única pedra de gelo, como ela gostava. Qual seria a minha reação?