BONITA DEMAIS
Paulinha sabia ser simples e elegante ao mesmo tempo. Tinha uma simpatia espontânea, mas vinha dela uma força natural, que lhe dava certa formalidade. Tratava todo mundo bem, com consideração, mas sem derramamentos ou intimidades. Quem a via, enxergava uma mulher plena, de bem com a vida, radiante. Naquela sexta-feira ela estava especialmente feliz: iria viajar no final de semana prolongado com os dois filhos, ainda crianças. Preferiu não ir de carro, uma vez que a viagem duraria pelo menos cinco horas e ela não queria se arriscar na direção pela rodovia movimentada. Despediu-se dos colegas de trabalho, sorridente, dizendo graças a Deus, uma folga, ficarei com meus filhos esses três dias. Eu ainda tive vontade de lhe dizer o quanto ela estava bonita, com uma energia leve, contagiante. Mas, por timidez ou por limitação espiritual, não o disse. Tenho dificuldades de elogiar, acho que posso ser confundido, ou tenho insegurança talvez, medo de parecer idiota, fraco. Hoje, diante dessa notícia tão trágica, jogo sobre os ombros a sensação de um prejuízo irreparável. Eu poderia apenas ter dito simplesmente: você é bonita demais
A BIOGRAFIA
Às sete horas e quarenta e cinco minutos, após a leitura dos jornais, naquela manhã de 23 de janeiro de 1992, o escritor e jornalista pernambucano Nilo Pereira morreu. Ele tinha 82 anos e foi encontrado numa cadeira confortável, em sua biblioteca, onde sentava-se para leitura na rotina das manhãs.
No momento do ataque cardíaco, estava sozinho. As palavras do jornal amortalharam-lhe o peito, leve cobertor. E os livros, formatando as paredes, foram as testemunhas dos últimos momentos, no alto das estantes. O escritor e jornalista emudeceu em meio às letras, em sua casa, no bairro da Boa Vista.
A morte repercutiu nos jornais do dia seguinte. Nenhum obituário foi correto, por mais que as informações estivessem exatas. Era preciso deixar que os livros falassem por si: citar título por título daqueles volumes que permaneceriam empilhados e silenciosos. Os livros lidos são a única biografia de um escritor.
DONA CÉLIA
As dores passavam somente quando aplicavam morfina e era então que lhe vinha uma serenidade de quem estava sorrindo. Dona Célia fora poeta nas horas vagas de sua juventude, em fins dos anos 70. Mas parou de escrever poemas, por falta de tempo. Era sua desculpa. Ninguém a alertou que poesia é joia lapidada e pequena, que pode se perder nas tramas palhentas do cotidiano. E agora era tarde.
As dores, cada vez mais frequentes: é que não havia mais alternativa. Restava ministrar morfina e esperar os dias. As aplicações eram seguidas de aliviadas sonolências. Dona Célia dizia: “Antes de dormir, quero ouvir os poemas de Cecília”. E a filha lia aquelas canções até ela cerrar os olhos, em sutil aprazer.
Ou, então, dona Célia dizia: “Hoje, prefiro ouvir Quintana”. E ouvia a delicadeza do que ele dissera, misturando ternura e ironia. E dona Célia agasalhava-se na dor do outro poeta. Os dias eram assim. Até ela dormir. Profundamente
A PAIXÃO SEGUNDO CLARICE
As escritoras Clarice Lispector e Nélida Piñon eram amigas como nos velhos tempos da amizade. Algumas coisas Clarice não revelava nem para Deus. Nélida era a primeira a descobrir que a amiga, na verdade, mostrava-se ao mundo despudoradamente na estranheza dos personagens que escrevia.
O que havia em Clarice que Nélida se sentia íntima era o aprendizado dos labirintos e das sombras. O que havia em Nélida, que a outra admirava, era a capacidade sutil de compartilhar as sombras.
Para Nélida, um dia Clarice confessou o que não disse sequer a Deus: tenho uma paixão por alguém, que guardo com muito cuidado e reserva. Nélida era tão íntima que aconselhou: ser escritor é não se negar a nada, ter coragem de viver.
Assim eram as amigas: ouviam-se, eram confidentes, prestavam atenção aos sentimentos mais verdadeiros, com a intensidade que eles exigiam. Misturavam com mão firme a manteiga, o açúcar, o leite e a massa, desse pão que a vida oferece para a gente comer até se fartar.
Clarice morreu. Anos depois, um repórter quis saber de Nélida, quem afinal era o grande amor inconfessável de Clarice. E Nélida respondeu: eu sei quem é, mas se um dia eu confessar, as pessoas ficarão sabendo de que massa é feito o poder oculto dos mistérios.
SOBRE O AUTOR
Cícero Belmar é escritor e jornalista, autor de, entre outros, Tudo na primeira pessoa (contos) e A flor e o sol (teatro)