Sou um especialista em coleções, mas doei os meus selos há mais de dez anos. Tenho apenas um relógio, e dos meus avós herdei uma pequena quantidade de dinheiro e mais nada. Não guardo moedas estrangeiras, não tenho caixas de sapato cheias de cartões-postais e não catalogo canecas, maços de cigarro ou chaveiros. Tenho um aviãozinho da Pan Am, mas uma coleção exigiria, no mínimo, uma pequena frota.
A decisão de deixar as coleções de lado para ser um especialista não foi consciente. Quando entrei na faculdade, já tinha me desfeito das tampinhas de garrafa e da maior parte dos selos que juntara por alguns anos. Passei o curso de graduação inteiro sem pensar em coleções. De vez em quando, um professor dizia que os historiadores adoram o pó dos documentos e que ele mesmo já tinha passado muitas horas da vida debruçado sobre coleções de todo tipo. Nos cursos de história da arte, alguns colecionadores sempre eram citados. Mas, além disso, as coleções naquela época não me interessavam.
Nem sempre foi assim: durante a infância e a adolescência, cheguei a ter quase duas mil tampinhas de garrafa. Quanto aos selos, obrigatórios para quase todo mundo que sofre com a obsessão pelo colecionismo, cheguei a organizar belos conjuntos. Também reuni tudo o que encontrei sobre o time de futebol que me encantava aos doze anos. Mas, nesse caso, havia apenas paixão, o que jamais pode ser o elemento central da atividade de um colecionador sério.
Hoje, sequer assisto aos jogos do Brasil na Copa do Mundo.
Quando era adolescente, adorava mexer nas minhas tampinhas de garrafa. Todas estavam separadas segundo o país de origem e, depois, em grupos menores, a partir da bebida de onde tinham saído. Basicamente, distinguia entre os refrigerantes, mais numerosos, as bebidas alcoólicas e água.
Meu orgulho era uma série de tampinhas com caracteres árabes que tinha arranjado com um parente distante. Tentei entender o que estava escrito em algumas, mas, como não consegui, fui obrigado a abrir uma exceção no catálogo e não pude sequer separá-las por país. No caso de três tampinhas japonesas, também, até hoje não sei dizer se eram de água ou de refrigerante. Nunca achei que fossem de cerveja: ganhei o conjunto de um abstêmio.
Chamavam atenção, ainda, vinte e três tampinhas da Índia. Elas tinham sido presente de uma tia que, apesar de mal ter saído dos vinte anos, não suportara uma desilusão amorosa e, depois de passar algumas semanas chorando e gritando palavras sem sentido, resolvera procurar a própria história em uma pequena cidade a três horas de Nova Déli.
Eu devia ter por volta de quatorze anos quando ela viajou pela primeira vez. Meu avô tentou manter uma espécie de compostura compreensiva e só conseguia repetir que ela se arrependeria e logo voltaria para concluir a faculdade de Direito. O fato de ele ter pago as passagens da filha desiludida é um ponto de conflito entre o velho e minha avó até hoje. Fazendo as contas agora, acho que a última vez que minha tia esteve no Brasil foi há uns dez anos. Até onde sei, atualmente ela mal telefona no Natal.
Há uns dois anos, tive coragem de perguntar por onde minha tia desiludida andava. Minha avó começou a chorar, minha mãe pegou outra colher de arroz, fazendo um gesto de reprovação com o braço esquerdo, e meu tio, sempre competindo com a irmã caçula, disse cheio de desdém que em algum ponto entre o sul da Rússia, a Mongólia e o Cazaquistão.
Ela passa o tempo vagando com um grupo liderado por um monge que se diz a reencarnação do espírito que controla o lado afetivo dos seres vivos. Não apenas os humanos. Nesse momento, minha irmã quase cuspiu o que estava mastigando, engasgada com a piada. Eu tinha acabado de estragar o almoço de Páscoa.
Não acho a história engraçada. Não acredito no tal monge, claro, mas sempre gostei da minha tia. O irmão dela, o engraçadinho, incomoda-me um pouco. Quando ela voltou pela primeira vez, creio que em 1990 (não posso dizer a data exata, pois, desde que comecei a sentir saudades de tudo, perdi um pouco a noção do tempo), fiquei marcado pelo jeito com que me entregou as tampinhas que tinha trazido.
Para a sua coleção, Ricardo. Eu não consigo esquecer essa frase: para a sua coleção, Ricardo. Ela me passou o pacotinho com o olhar distante. Estávamos todos esperando no aeroporto. Quando a porta se abriu, logo nos avistou, acenou e veio caminhando bem devagar. Minha avó começou a chorar. Ela abraçou um por um. Depois, se eu estiver certo, fui o primeiro a ganhar um presente. Para a sua coleção, Ricardo.
Para quem adorava andar de bicicleta, e sempre tivera os afetos muito intensos, os gestos dela pareciam vagarosos demais. Fiquei olhando as tampinhas no caminho do aeroporto até a casa do meu avô, onde iríamos comemorar a visita.
Se eu estiver certo, minha tia desiludida voltou ao Brasil depois de oito anos. Já estávamos no finalzinho do século. Não conseguimos nos ver: a visita coincidiu com uma prova bastante importante dos exames para a pós-graduação. Eu estava concentrado e, quando finalmente voltei para São Paulo, ela já tinha ido embora.
Jamais esqueci o olhar de desolação da minha mãe ao me contar que a irmã, naquele momento ela própria uma monja, tinha avisado que o mundo sofreria uma grande catástrofe, e talvez acabasse na entrada do século XXI.
Ela nunca mais voltou ao Brasil. Afetuosa, deixou-me nessa segunda visita três outras tampinhas. Mas eu já estava começando os estudos para me tornar um especialista e, com a soberba que herdei do meu tio, joguei-as fora. Estudar a origem delas, como faria todo bom colecionador, sequer passou pela minha cabeça.
Desde que tudo isso começou, tenho percebido que sentir saudades significa, em alguma parcela, arrepender-se. Fico tentando relembrar uma série de coisas. Se não tivesse jogado as tampinhas fora, por exemplo, a frase da minha tia talvez hoje fizesse algum sentido para mim. Para a sua coleção, Ricardo.
Não tenho mais nenhuma coleção.
Semana passada voltei à lata de lixo onde joguei uma parte das tampinhas fora, justamente os exemplares mais nobres. A outra parte, deixei para o lixeiro na manhã seguinte. Eu não tinha esperança de encontrá-las: afinal já se passaram quase vinte anos. Acho que é isso mesmo: vinte anos. Apenas olhei as pessoas, a estação de metrô e os arredores. E infelizmente não encontrei nada que me dissesse respeito.
Confira a nossa segunda matéria de Inéditos aqui