A hora errada
Um homem, tantos e poucos anos, caminhava pela cidade entoando uma fala estranha. Um dialeto, diziam. Um antropólogo e documentarista fez um vídeo sobre “a personagem real”. O andejo ganhou alguns prêmios em festivais, e o diretor uma bolsa de estudos do governo holandês. A fala subjetiva de um cidadão à deriva, dizia a voz em off. Os olhos vagando. A câmera em lento movimento. O homem em seu tempo. Intocável. Ninguém conseguia descobrir o que ele dizia. Off. Apenas uma mulher conseguiu tomar notas. Andarilha preguiçosa que escolhera apenas um bairro para morrer. Foi num domingo, quando ele entrou no meu território. Ex-letrada, hippie e prostituta; disse que era um poema. De um sofrimento! Concordei. Anotei. Está aqui:
— O desejo era ser sábio. Controlar a respiração na hora do susto. Sofrer como sempre e, ainda assim, sorrir, na hora do grito. O desejo era ser eu, mesmo que fosse na hora do lanche. Olhar o do lado e dizer num relance: na hora exata, não corro. O desejo era ser Deus e conhecer suas preces na hora do choro. E não pesar demais no colo de um parente, assim de repente. O desejo é agora. E na hora em que digo: sou sim o desejo. O desejo diz e parece mentir: não é a hora —
Horas e horas dizendo esse texto. Um mantra melancólico que mandei para uma revista literária. Publicaram, mas o compararam a Arthur Bispo do Rosário. Questionei. Um cineasta estreante, ex-diretor de videoclipe, encomendou um roteiro e filmou um longa-metragem. Errâncias ganhou menção honrosa na quinzena dos realizadores em Cannes, e o cineasta uma boa quantia em dinheiro para o seu próximo projeto.
VHS
1)
Tudo pronto. Todo dia. Obrigada, querida. Quê isso... Pode ir. Vou dormir. Ainda não. Esqueci de pedir. Sim. Não sei, está quente hoje. Vou trazer. Adivinhou? Limonada? Não querida, coca gelada. Claro. Cubos. Coisas pra acompanhar? Sim, sempre. Vou. Você é um anjo. Sou? Tão bom tê-la em casa. E nem adianta correr, a novela acabou. Vaca. O quê? Nada. Obrigada, querida. Vou tomar lá dentro, deitada na cama. Depois... (faz o singelo gesto do sono). Vá também. Vou. Até amanhã. Até.
2)
A novela terminou. É tarde para ligarem. O porteiro noturno não gosta de mim. E é feio. O único filme dela que presta é este. Velho. Vejo toda vez que perco a novela. Mas é bonito. Faz a gente esquecer.
3)
A mão com cuidado insere a fita. Não gosta de quebrar as coisas. Nem danificar. O aparelho faz barulho. Não quer fazer alguém acordar. A luz forte não pede licença. A sala escura agradece. A melhor sequência mostra dois bailarinos que não dançam. Flutuam. Ela também não dança. Porque dançar é coisa de filme. E, amanhã, ela tem que trabalhar. Aquela dança morna do dia a dia. Vassoura, pano, pá. Insone, prolonga a noite até o final. Longa-metragem para o esquecimento. Funciona. Dançar, não dança. Chorar, porém, ela não tem como represar.
Julia Roberts
Usava um vestido vermelho, comprado na feira a preço de custo. Trazia histórias embaixo do pano. Costuras, pontos e sobras de linha. Buracos. Negra como uma pérola, sambava todos os dias seus tantos e poucos anos. Uma beleza persistente. Saias justas, seios à mostra. Bola pra frente. Dizia-se fogosa, perdida, gostosa. Assim de cara. Vulgar. Vendida. Verônica, às vezes. Óculos de donzela. Luvas de rainha. Plásticas de madame. Fogo e artifícios. Até que viu mais um homem, um carro e a possibilidade de não atrasar o aluguel. Sapatos. Gravata. Terno. Seria um fraque? Não distinguia. Mas sabia. O pé direito no chão e o sonho fumê. Meu nome? Dinheiro? Sozinho? Julia Roberts, honey. Ele não entendeu a referência. Beijou-a na boca e depois gozou. Lá dentro. Linda, às vezes.
O homem em frente
Ouço falar em Bahia, choro. Minas, muito mais, desmorono. Rio, engraçado. Bobagem, rio. Essa história de ser brasileiro. Sorrir quase o tempo todo. Sofrer quase que só por dentro. E o homem em frente não entendeu o outro homem à sua frente que andava, chorava e sorria. Tudo ao mesmo tempo. Num tempo particular. Dividido em partículas de lentidão e fúria. Pensou não ser triste o choro, enganou-se. Pensasse ser triste o sorriso, enganaria-se. Continuei andando em direção ao cinema. Sem querer, deixei o frio e o choro embaçarem meus óculos. Por isso, não vi que cheguei perto demais de um outro homem à minha frente. “Cinco centímetros”. E uma mão aberta entre nós. “Cinco centímetros”. E dedos bem abertos demarcando uma linha imaginária de separação. “Cinco centímetros”. E uma boca aberta entre nós. Dentes podres à mostra. Falas podres à vista. Pés bem apoiados na sujeira da calçada. “Você não deve colar nas pessoas, monsieur”. O quê?, perguntei assustado. A resposta veio rápida, seca e original: um empurrão, um chute e insultos. Logo depois, uma pergunta simples me ocorreu enquanto andava e pensava o que fazer da vida. “Seriam sempre assim?”. Sei que não. Mas não me toquem. Cinco minutos sem contato, por favor. Alguns segundos de desespero. O embrutecimento instalando-se aos poucos, e o paradoxo ancorando. O país é frio, mas ninguém se esquenta. Por isso, ouço falar em Bahia e choro. Minas, desmorono. Rio, estranho. Nem rio mais.
Trilha
Falaram então de felicidade. A cabeça no colo. O corpo coberto. O cobertor gasto. Vendo filmes e mais filmes decidiram: nenhum dinheiro compra nossa Hollywood. Ainda que nos vendamos por menos enquanto corremos por aí. Mas aqui: Brando, Depp, Dietrich ou Huppert; caras e bocas para nos lembrar quem não somos, e sonhamos. Você parecia feliz como a Ingrid Bergman, e eu sorria contente como o Cary Grant. Risos na plateia. Não pagavam contas. Comiam pizza. Bebiam tudo, menos água. Antes de cortarem a linha telefônica, o homem da locadora ligava todos os dias. Preocupado com o futuro do cinema francês, brasileiro, americano ou japonês. Uma pilha de fitas e discos como papel de parede. Sonhos. Barba. Banhos. Corriam contra o tempo em busca de um final feliz. Nessa hora, nada era obscuro. A pele contra a pele, o desejo. Camada fina de película projetando felicidade falada, vista e interpretada. O estranho som de algum compositor anunciava uma estrada perdida: o atrito das mãos, a trilha do dia.