Arte por Janio Santos sobre fotos de Adelaide Ivánova

 

mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.” - A.P.

 

Escrever um poema
é como apanhar um peixe
com as mãos
nunca pesquei assim um peixe
mas posso falar assim
sei que nem tudo que vem às mãos
é peixe” - A.L.

 

1- do amor, do ordinário

Certa noite na maravilhosa Grécia Antiga, discípulos de Heráclito chegaram e encontraram-no aquecendo as mãos no forno à lenha. Meu Deus, perguntaram-se os visitantes, como pode um ser iluminado como o senhor dedicar-se a tarefas tão banais? O filósofo explicou que os deuses estão presentes exatamente nesses lugares, no cotidiano. Ao lado do forno.

 

Heráclito criou então uma falácia repetida há séculos, que nos força a nós, seres inquietos, a se contentar com o mundano. Criou-se a mística do cotidiano. Heráclito, gato, deixa eu te dar um toque: você nunca foi uma mulher num namoro longo. Não me venha com essa de que o divino está nas pequenas coisas da vida. Só quem disse isso foram homens — você, Heidegger, Tólstoi, Tomás de Aquino — ou Adélia Prado, para quem o tanque é na verdade um totem.

 

Meus deuses não esquentam o bucho na beira do forno.

 

Uma mulher num relacionamento estável está em constante batalha com aquilo que não tem significado — na verdade, o conflito está exatamente em se dar conta que as pequenas coisas, ao contrário do que nos disseram, não querem dizer nada. Nunca quiseram.

 

Claro que o suflê murcho pode ter sua poética — mas ele não a possui em si, ela lhe é aplicada, assim como a rosa não é em si um mistério, só passa a ser no momento em que Gertrude Stein a problematiza.

 

Jacó e eu vimos o tédio chegando como quem vê o trem se aproximar da estação. Aprendemos que sexo num namoro longo é como ter uma piscina em casa: você sabe que gosta, e diz para si mesmo “hum eu devia ir dar um mergulho hoje”, mas de novo negocia com si próprio e pensa “amanhã eu vou”, você vai pouco e quando vai é muito bom, aí você se lembra porque seguem juntos, ops, porque mandou construir a piscina. E de novo pensa: devia nadar todo dia. Mas a piscina está ali, e não vai a lugar nenhum, então porque me exasperar?

 

E aí que devia entrar o extraordinário. Acho que ele é um direito. Não quero ter que passar minha vida procurando a metafísica de limpar os peixes que meu marido pescou (desculpa, Adélia). Na minha mente doentia, eu só posso acreditar que tentam nos convencer que há mística na cozinha, para nos prenderem lá. Para que a vida social como a entendemos, dividida em núcleos familiares, tribos, cidades etc. consiga ser mantida.

 

Eu, no entanto, sou do time que acha que o místico se apresenta no insólito das coisas. Hilda Hilst era taurina (vocês deviam sabem o que isso quer dizer), tão taurina que construiu uma casa onde pudesse escrever. Mesmo assim, ela passava suas noites à caça de fantasmas presos entre duas estações de rádio. Procurava o excepcional no cotidiano, em vez de apenas atribuir-lhe a excepcionalidade.

 

E quando eu falo extraordinário, queridas, não é o de Raskolnikov, e sim o de Hollywood. Encantamento, cintilâncias, frio na barriga, confusão. Eu busco aquele encantamento repetido, como tinha Marilyn Monroe toda vez que punha os óculos em Como agarrar um milionário e era pega de surpresa por um mundo novo, que ela só via de vez em quando. Eu quero os óculos de Marilyn.

 

Eu quero ser Carmela Soprano vendo Paris pela primeira vez.

 

2. da cidade, do extraordinário

Tenho andado obcecada com a questão de cidade enquanto metáfora para nossas relações, porque esse é o tema do meu trabalho de conclusão de curso: a urbe é a tradução arquitetônica do vínculo entre duas pessoas.

 

No meu TCC eu tentei criar um paralelo entre minha cidade natal e meu pai — dois lugares simbólicos de perda. De um lado, meu pai, que é uma cidade ainda por conhecer, um lugar que eu nunca fui, só vi as fotos. O que uso como alegoria para isso é Recife, que é um espaço de estranhamento: sim, eu a conheço, mas é impossível reconhecê-la, devido às violações na sua paisagem urbana.

 

Partindo do princípio de olhar a cidade como sujeito, eu queria fazer um livro de fotografia tipo Virginia Woolf fez Mrs. Dalloway: um livro em que Londres é o protagonista impessoal do romance, sem que o livro precise ser SOBRE Londres. Assim sendo, em dezembro de 2013 cheguei no Recife e foi um espanto. Primeiro, porque não reconheci as coisas que me eram mais íntimas — a Chora Menino da minha primeira infância e o Torreão/Espinheiro da segunda (obrigada, Moura Dubeux, ficou ó, uma bosta).

 

Segundo, por causa do método de trabalho que fui forçada a adotar: eu só podia fotografar das 5h às 7h da manhã — que era quando ainda não tinha carro na rua, nas calçadas e dentro do meu sutiã (haha). Ou seja, não era somente a questão da arquitetura, mas também da imobilidade urbana, violando meu contato com esse lugar.

 

No decorrer do processo, veio outro elemento fundamental, realmente divisor de águas no conceito do TCC: descobrir os álbuns que meu pai, Caesar Sobreira, produz, com fotos e mais fotos dele mesmo, desde os anos 1970. Minha tese inicial — a da perda simbólica através do estranhamento — foi reiterada quando dei de cara com aqueles álbuns, que também testemunhavam uma outra perda: o do referencial paterno, através das mudanças orgânicas na visualidade do homem.

 

Recife se torna uma espécie de nome-do-pai (leia Lacan) para falar sobre o pai, e vice-versa. Essas duas entidades camaleônicas são a alegoria que eu uso para falar disso, de perda. Por isso andei tão obcecada com Elizabeth Bishop e seu livro geography III, no qual ela trabalha constantemente com a ideia de pertencimento. É neste livro que está incluído o poema one art, talvez a peça central na minha bibliografia.

 

A epígrafe de geography III é uma citação de um livro didático de geografia, e esta epígrafe serviu de inspiração para o título do meu TCC, que será erste Lektionen in Hydrologie (und andere Bemerkungen) — em português “primeiras lições em hidrologia (e outras anotações)”.

 

Isso dito, e para não perder o fio da meada desse texto, vou seguir problematizando o relacionamento amoroso.

Italo Calvino pode até ter escrito um livro sobre cidades invisíveis, mas para mim parece estar falando sobre o amor, quando diz: “Cada cidade recebe a forma do deserto a que se opõe” (cada história de amor recebe a forma do deserto a que se opõe).

 

No momento em que usamos as urbes para falar de pessoas, entramos num terreno meio lacaniano (vôte). Transferimos relações (sempre conflituosas, mesmo quando pacíficas), traumas, nostalgia da infância, a ligação com a mãe ou o pai (ou os dois!) para o espaço urbano. Pobre cidade.

 

Será que era disso que o projeto moderno nos queria libertar? Porque, ao criar uma concepção de cidade em que a forma segue a função, na qual não haja ornamento e referência à história seja apagada, podemos pensar que os arquitetos modernos queriam livrar a cidade dos nossos recalques!

 

Ontem, para me inspirar a escrever esse texto, eu fui buscar o extraordinário: fui olhar o Olympiastadion, que é uma das últimas construções nazistas ainda de pé, na Alemanha. O estádio é o resumo do conceito arquitetônico do período nacional-socialista: confirmar, através de suas construções, o poder do Führer. Forma a serviço de discurso, de simbologia.

 

A poucos metros de distância, fica a Le Corbusier Haus — edifício residencial modernista, projetado pelo arquiteto francês. Nele, forma não tem propaganda, nem firula — segue a função.

 

De determinado ponto da Alameda Flatow, se eu girar meu corpo para a direita, vejo a propaganda nazista, o simbólico. Se me virar para a esquerda, vejo exatamente o seu contrário.

 

Ali, queridinha, é que você entende o que buscava Hilda entre as duas estações de rádio.

 

3. do amor, da cidade

A cidade abraça essas contradições sem pestanejar, mas nós não aceitamos contradições de seu ninguém. A cidade e amor (mas só aquele que chamam de “verdadeiro”) são ambos um lugar de compromisso, naquilo que a palavra tem de mais anglo-saxão: “abrir mão”.

 

É impossível viver no espaço urbano — como num relacionamento — sem estar o tempo inteiro fazendo concessões. Dividimos com estranhos as ruas, o lado da calçada que está banhado de sombra na volta do trabalho, o assento no busão. Estamos o tempo inteiro aceitando do espaço urbano (do outro) maus tratos, mordidas e assopros, esperando aquele momento de harmonia que às vezes vem e nos faz lembrar porque vivemos juntos. E ela, por seu lado, aceitando de nós o fato de que a deixamos, e voltamos, e a tratamos mal e pedimos perdão. E violamos sua paisagem, seu caráter.

 

Georg Simmel era um arquiteto alemão. Em conferência de 1903, “As grandes cidades e a vida do espírito”, ao falar das metrópoles, Simmel resume bem o estado de abandono no qual somos jogados ao viver numa metrópole (aka entrar numa história de amor): “O indivíduo submetido a esta forma de existência tem de chegar a termos com ela inteiramente por si mesmo”.

 

4. não há mística no cotidiano, Adélia, I’m sorry ter de lhe informar

Assim, eu tive que dar um upgrade no meu eu-lírico para poder voltar a escrever e precisamente escrever este texto. Não é o que a cidade é, ou ela que tornou-se outra; eu é que mudei, e a arrasto para dentro dos meus conceitos, como arrasto minha vida pra dentro de um namoro.

 

Não sou mais a menina que costura paralelos entre o urbano e um pé-na-bunda. Não há mais o abandono, e eu ainda não sei escrever sob essa perspectiva. Ainda é duro entender que eu sou aquela que compara a paisagem urbana ao fixo, ao companheiro, ao prato na mesa, à escova de dente elétrica.

 

Não posso deixar de, de novo, citar Calvino: “(...) a surpresa daquilo que você deixou de ser ou de possuir revela-se nos lugares estranhos, não nos conhecidos”.

 

Considerando que Calvino estava falando não de cidades, mas de cidades invisíveis, arrisco dizer que quando ele usa a palavra “lugares”, não se refere a lugares concretos, mas sim emocionais. Com isso, me pergunto se não é exatamente o extraordinário, o grandioso que, ao deslocar os relacionamentos do seu “lugar” de costume, os salva.

 

Ninguém consegue viver encantado com as pequenezas para sempre. Há que deixar entrar o inesperado, o grandioso. Por isso é que, no que diz respeito ao amor (e à cidade), sou muito mais os peixes de Adília que os de Adélia: é preciso lutar, “apanhar o peixe com as mãos”.

 

Como num namoro longo é preciso lembrar de ver o outro, nas nossas relações com o espaço urbano também é necessário prestar atenção na cidade, fazer o esforço e a escolha de olhá-la. Para que elas se tornem surpreendentes. Para que sejam invisíveis apenas nos relatos do Marco Polo para Kublai Khan. 

 


Confira a segunda matéria de Inéditos: Dorothea Lasky