Ilustração por Karina Freitas

 

— Você não deveria ficar tanto tempo sentada.

Com exceção da lâmpada de leitura e a da tela do computador, quase não há iluminação, apenas o suficiente para perceber uma mulher à mesa, os dedos ágeis pelo teclado. Sobre a mesa uma taça de vinho tinto, algumas pilhas de livros e cadernos.

— Depois reclama de dor nas costas.

Ela bebe um gole da taça, começa a ler em voz alta o parágrafo que acabara de escrever. Alguém se aproxima por trás, no início ainda escondido pela penumbra do quarto. Depois é possível distinguir um homem jovem, elegantemente vestido, cabelo penteado com estudado desleixo. Ele se aproxima, pousa as mãos em seus ombros, massageia-os, ela continua lendo como se o ignorasse. Ele insiste:

— Você não tem ido à academia, não pense que eu não percebo essas coisas.

Sem tirar os olhos da tela do computador, ela reage impaciente:

— Quer parar de se meter na minha vida? Quem é você agora, meu personal trainer? Minha professora de balé?

Ele continua com as mãos em seus ombros, deslizando pelas costas, pelos braços, aperta-os com força.

— Você sabe que depois dos trinta o corpo já não é mais o mesmo, não tem mais a mesma musculatura, a mesma elasticidade, não dá para deixá-lo ao Deus dará. Sem falar na sua coluna – ele desce os dedos pela coluna – olha, você vai ficar toda torta se continuar assim.

Ela faz um movimento brusco para livrar-se da massagem.

— Me deixa trabalhar em paz, por favor.

Ele se afasta, aparentemente magoado, na penumbra quase não é possível distingui-lo, ouve-se apenas a voz:

— Meu Deus, que mau humor, eu só estava querendo ajudar.

Silêncio.

Ela continua escrevendo. Ouvem-se os seus passos atravessando o quarto, ele acende um pequeno abajur. Sentado numa poltrona, cruza as pernas, tira um charuto do bolso do paletó, admira-o por alguns instantes, a seguir desenvolve uma espécie de ritual, até acendê-lo finalmente. Após as primeiras baforadas, faz uma pausa e diz:

— Sabe, eu me preocupo com você.

Ela finge não ouvir. Ele insiste.

— Você não acredita, mas eu me preocupo de verdade — diz ele em tom dramático.

— Não precisa. Preocupe-se com você mesmo.

Ele parece muito à vontade naquele lugar, como se o frequentasse desde sempre. Dá mais uma baforada. Ela, ao sentir o cheiro da fumaça, vira-se pela primeira vez, e lançando-lhe um olhar de reprovação, diz:

— Desde quando você fuma charuto? Não me lembro de ter escrito isso.

Ele sorri irônico. Fica alguns instantes em silêncio, como se tentasse criar algum tipo de suspense, e diz:

— É, realmente, você não escreveu — e após nova pausa, completa. — Ainda.

— Então... — a voz dela soa impaciente.

— Então nada. Eu achei que ficaria bem, combina comigo, não acha?

— Não, eu não acho — diz ela, afastando o teclado e sentando-se sobre a mesa, os pés apoiados na cadeira. Bebe mais um gole do vinho.

Ele continua:

— Se você observar bem as minhas atitudes desde o início, minha aparência, minha personalidade, meu espírito, não no sentido de alma, que a alma não nos interessa, mas no sentido do Geist, o Geist que os alemães tão bem souberam separar de Seele, alma, enfim, se você considerar todas essas questões vai perceber que é óbvio que eu fumo charuto.

— Óbvio? — ela dá uma gargalhada. — É o único que me faltava, você querer me dar conselhos sobre o que eu devo ou não devo escrever, sobre como construir meus personagens. E como se não bastasse, ainda vem com essas explicações em alemão, não pense que isso me impressiona.

Ele, sem perder a calma, enquanto observa a fumaça que se espalha pelo ambiente, diz dando ênfase ao tom arrogante:

— Imagina, longe de mim querer te impressionar! — por um instante ele a olha com raiva, mas logo volta à expressão anterior, ao jeito desinteressado. — Eu não estou te obrigando a nada, estou apenas sugerindo. Além do mais, qual é o problema? Não seja tão autoritária, não fica bem em você.

— Autoritária?

— Sim, querida, autoritária, é o que você está sendo. Autoritária e intransigente. Moralista até, afinal, o que tem demais eu fumar um charuto?

— Moralista? Não acredito que você está me dizendo isso!

— Além do que, todos sabemos que a partir de um certo ponto da trama, os personagens adquirem vida própria. Todo autor diz isso nas entrevistas.

— Eu não sou todo autor, e eu nunca disse isso em entrevista alguma.

Ele pega o jornal na mesinha ao lado da poltrona, abre-o, olha com desdém para alguma reportagem, diz:

— É, suas entrevistas nunca foram muito interessantes mesmo.

— Olha, não estou gostando nem um pouco do rumo desta conversa. Sabe de uma coisa, não vou ficar aqui discutindo, tenho mais o que fazer. Se você preferir fumar, fuma, faz o que bem entender.

Ela volta a sentar-se à mesa, tenta concentrar-se novamente na tela do computador. Ele sorri vitorioso. Os dois ficam em silêncio. Ele pega o jornal, passa os olhos por algumas páginas, fecha-o, deixa-o outra vez sobre a mesinha. Ela inicia a leitura do mesmo parágrafo anterior, ele ouve atentamente com expressão reprovadora. Quando ela termina a leitura, ele pergunta:

— Você não acha que eu estou ficando muito parecido com aquele seu ex-namorado?

Ela responde, sem tirar os olhos do computador:

— Ex-namorado? Claro que não, nem sei de onde você tira essas coisas. Além do mais, eu nunca namoraria alguém que nem você.

— Ah, não?

— Não.

Ela continua concentrada, agora fazendo anotações num caderno.

— Então eu me pareço com quem?, ele insiste.

— Com ninguém, por que você teria que se parecer com alguém?

— Porque todo personagem se parece com alguém que passou pela vida do autor. Tudo é autobiográfico. Não há como fugir disso.

Ela interrompe as anotações e se vira em direção a ele:

— Me diz uma coisa, que livros você anda lendo ultimamente?

— Não li em livro nenhum, todo mundo sabe disso.

— Todo mundo sabe? E quem é todo mundo?

Ele não responde, apenas ri sarcástico e continua fumando.

— Escuta uma coisa, você é uma invenção minha, você não existia antes, eu te inventei do nada, entende, do nada.

— Ninguém inventa nada do nada. Não se faça de sonsa.

Ela se levanta da cadeira, vai até ele, senta-se no braço da poltrona, passa a mão em seus cabelos com força, como se os puxasse, ou despenteasse.

— Eu não estou me fazendo de sonsa. Sabe o que me incomoda em você?

— Há algo em mim que te incomoda? Sério? Jamais teria imaginado.

– É essa tua arrogância, tua soberba. Quem você pensa que é?

Ele faz carinho em seu braço, diz com voz suave e calma:

— Mas, querida, não há nada meu que não tenha saído de você. Afinal, como você acaba de afirmar com tanta propriedade, você me inventou do nada, eu sou uma criação tua, só tua, não sou? Então, essa soberba, essa arrogância, de onde mais pode ter saído? — Ele tenta fazer um carinho em seu rosto, mas ela se afasta.

Em silêncio, ela volta a se sentar à mesa, arruma o teclado, recomeça a escrever. Para por uns instantes, bebe um gole de vinho. Ele continua sentado na poltrona, afasta um pouco o abajur. Na penumbra percebe-se apenas a fumaça do charuto, e de repente, uma voz.

— Não vou mais te interromper, querida, prometo. Nem quero me meter no que você faz ou deixa de fazer.

Ela não responde. A voz continua:

— Mas você não acha que está bebendo demais?

 

 

Confira a segunda matéria de Inéditos: Influência das vozes