Hoje acordei com saudade de Lúcia, uma das protagonistas de Fim de tarde com leões(Geração Editorial), meu novo livro. Eram duas da manhã quando os olhos se abriram e uma sensação de incômodo me invadiu. Como é típico da insônia, levei um tempo para saber o que me incomodava. É que há dois dias lancei a obra no Recife, minha terra natal. Quem mora longe de casa sabe que uma mera visita sempre traz à tona rastros emocionais escondidos, quase esquecidos, mais ainda quando o reencontro é com tantas pessoas de uma vez só, como foi o caso.
Na recepção estranhei uma ausência e me preocupei com o que poderia ter ocorrido para um grande amigo não comparecer. Estava certa. “Enquanto dava seu primeiro autógrafo”, ouvi ontem de Cláudio, “ela se foi”. Ele havia perdido Luci, sua mulher, mas esperou um dia para me comunicar, não quis estragar aquele momento especial.
Hoje consegui falar com ele e senti falta de Lúcia, uma personagem que fez parte do meu cotidiano durante meses a fio. Com ela aprendi que mais vale um bom grito que um silêncio que se arrasta dentro da gente por mais tempo que deveria. Lúcia é assim, se expõe sem medo e exige a verdade nas relações. Quando tenta retomar o contato com Pedro, seu ex-marido, assina: “saudade de nós”, nada mais revelador e direto.
Lúcia escreve de sua cama, doente e atormentada pelo desaparecimento do marido após a morte do filho André, e cheia de culpa. A resposta de Pedro surpreendeu não só a personagem, mas a mim mesma. O coautor de Fim de tarde com leões, que assina com pseudônimo P. W. Guzman e pediu anonimato, seguiu à risca o que havíamos acertado: nenhum dos dois direcionaria a história, deixando que o outro criasse um enredo livremente a partir de cartas.
Quando eu disse no primeiro texto, “é difícil compreender o porquê da sua acusação de eu ter provocado a perda de nosso filho”, pensei em aborto, nunca em uma criança ou adulto, mas na resposta, o coautor descreve um acidente de carro. Fiquei sem fôlego, e precisei de tempo para decidir o que fazer dali em diante. Foi assim ao longo dos meses seguintes, tanto para mim quanto para ele.
Tive a ideia de escrever um livro a quatro mãos em 2007, mas o processo de criação teria uma característica inovadora: a de reservar ao outro o encaminhamento da trama, sem amarras ou regras preestabelecidas. Escreveríamos cartas durante um ano, no mínimo duas por semana cada. Os nomes dos personagens, por exemplo, só aparecem no meio da obra, nem isso nós discutimos, aliás, só falamos sobre o livro uma única vez, quanto estávamos finalizando os textos.
No telefonema dolorido de hoje, ouvi detalhes dos meses de doença da mulher de Cláudio, e do quanto dói uma perda tão próxima. Fazia anos que não nos falávamos. Coincidentemente, nosso último encontro foi em São Paulo, onde moro há oito anos, quando passei por um momento difícil com a morte de meu pai.
Naquele dia, Cláudio se despediu de mim preocupado, me deu um longo abraço, e, como é típico de sua timidez, baixou a cabeça e saiu. Horas depois, me silenciou num telefonema, durante o qual disse tudo que mal sabia ele, já havia feito no abraço: “Paula, quando quiser voltar, você tem a nós, seus amigos, te esperando de braços abertos, no Recife. Sabe disso, não é?”. Nem consegui responder, ele sempre teve a capacidade de ler pensamentos.
Durante a insônia desta noite, imaginei o que Lúcia haveria feito quando soubesse, já de volta a São Paulo, da morte de Luci. Certamente pegaria o primeiro voo de volta, só sossegaria quando o visse pessoalmente. Não antes de escrever um e-mail longo, emotivo e nostálgico. Com palavras bem colocadas, Cláudio teria relembrado momentos em que conviveram juntos o mesmo espaço profissional e saberia que ela estaria a caminho. Eu a invejo.
Ao invés disso, me restringi ao telefone. Cláudio estava cansado e um pouco perdido nas palavras, bem diferente de quem nos ensinou clareza e confiança nas colocações. Nunca deixava um pensamento fora do lugar, mas a morte provoca isso na gente, tira o chão, muda nossa essência. Ela suspende a sensação de realidade, mesmo sendo a mais dura e inevitável das certezas.
Dizem que toda ficção tem um pouco de autobiografia. É verdade. No livro, quando Lúcia lamenta a saudade do pai que a ninava cantando uma música específica, era de mim que falava, mas só notei quando reli o livro. Os fragmentos de minha vida foram se inscrevendo lentamente, sem passar pela censura da racionalidade. Seria ótimo se o contrário também fosse possível, assim Lúcia teria saído daquelas páginas para se fazer presente no Recife.
Cláudio merecia um ato intempestivo.