Ilustração por Hallina Beltrão

O lugar tem cheiro bom. O que me faz voltar sempre, nem tanto para ler, é uma mulher bem velha, acho que é cega. Ela aparece e senta o mais perto possível de mim e da limpeza desse lugar. Ela me incomoda e tem cheiro bom como esse lugar. Muitas vezes penso em dizer alguma coisa, pedir para se afastar, por exemplo, sentar do outro lado ou talvez perguntar o seu nome. Muitas outras vezes penso em matá-la, ou tirá-la daqui à força e arrastar o seu corpo rugoso e elegante pela rua, esgotar todo o meu cansaço na sua existência. Esmigalhar a velha. Vez ou outra acho que penso em dar-lhe um abraço, mas já em seguida penso outra vez em empurrá-la sobre as estantes só para espiar as feridas que uma queda poderia lhe causar. Mas teimo que o medo que tenho do sangue dos outros me deixa quieto, penso melhor sobre tudo isso, e olho. É tudo meio insensato quando venho aqui.

 

Seus gestos são sempre os mesmos: ela pousa o quadril torto e esquálido na robustez de uma poltrona rasgada, bastante larga para sua magreza, que fica próxima a uma grande janela de esquadria toda favorecida de luz — meu canto favorito para ler —, pendura uma bolsa vermelha de couro no encosto, uma bolsa cara, finca o rosto firme em direção à janela durante cinco ou sete ou dez minutos como se observasse algo, como se visse algo, e levanta, em seguida, lentamente vagando entre as frestas do ladrilho lustroso, arrastando os pés ao mesmo tempo como se escavasse um buraco no chão. Enquanto caminha vai procurando as primeiras estantes, e tateia os dedos da mão pelas bordas dos livros. As estantes são tal e qual como esse lugar, todas limpas demais, sem pó, sem mito. E me impressiona a forma como seus dedos roçam os livros, a força que tem neles, como se lessem algum relevo solto de cada livro amarelo; como se na possibilidade dos relevos soltos constasse uma espécie de braille particular. Como se também na possibilidade dos relevos soltos pudesse encontrar, sem susto, algo escrito, algum nome, alguma palavra, algum suspiro, algo que se move, algum erro deliberado, qualquer coisa que seja, um arranhão, uma mosca morta, um par de brincos, um fio de lã, uma solda mal feita, uma gia seca etc. E amém — é a palavra que diz sempre quando para na frente de qualquer um dos livros —, e ali se faz uma espécie de eixo do mundo, um eixo que gira. Ela repete para dentro: amém, amém, amém, amém. Aquilo me esgota.

 

Pasmo, do outro lado da cegueira, a pergunta que me faço é o que é aquela mão bonita com tantas veias salientes daquela zumbi; o que ela procura tanto, quer o quê quando tateia endoidecida e cega? dobrar a cegueira? quer dobrar a cegueira no meio? O que diabo ela espera? Ela espera? O quanto cabe enquanto caminha suave como se também pudesse ler o chão com o pé — dentro de uma sandália de sola fina e de couro, nova, que dá para ver bem os calcanhares brancos com algumas rachaduras, fendas do tempo, aquelas linhas pretas, ela sempre troca as sandálias —, outra palavra, outro nome, outro gesto, outro suspiro. Como se procurasse alguém, vivo, morto ou sei lá o que. Se é um livro, e é capaz, qual é se as estantes são cegas? qual é o livro se é o chão que parece lhe apontar a pista?

 

E nisso de qual livro, qual livro, qual livro e a vontade de voar no seu pescoço, um dia ela ainda vai se aproximar muito de mim e dizer, ah, vai — e nunca vou esquecer o tom de sua voz nem a tremedeira que pode me dar nas pernas se ela de fato fizer isso —, olá! Vai me ler baixinho (ou dizer de cor?), uma frase toda modificada de alguém como Borges – “Les tocó en suerte y ahora una época extraña” ou “Esa división, cara a los cartógrafos o lunaticos, auspiciaba las guerras” — assim soltando a fala no mundo que a leitura é apenas uma questão de distância, e de escala. Vou olhar para o lado apertando bem os olhos por causa do cheiro maravilhoso que deve sair de dentro da sua boca: tenho medo que esta velha tenha o céu inteiro dentro da boca.