Ilustração por Janio Santos

 

Veja também:

A maçã envenenada (trecho)

 

Minha história,a história de “como me tornei freira”, começou muito cedo na minha vida. Eu tinha acabado de fazer seis anos. O começo foi marcado por uma lembrança vívida, que posso reconstruir nos mínimos detalhes. Antes disso, não há nada: depois, tudo foi formando uma só lembrança vívida, contínua e ininterrupta, incluindo os períodos de sono, até que tomei o hábito.

 

Tínhamos nos mudado para Rosário. Passamos meus primeiros anos — papai, mamãe e eu — numa cidadezinha na província de Buenos Aires da qual não guardo lembrança alguma e à qual não voltei mais: Coronel Pringles. A grande cidade (era o que Rosário nos parecia, vindos de onde vínhamos) nos causou uma enorme impressão. Meu pai não demorou mais que dois dias para cumprir uma promessa que me fizera: levar-me para tomar um sorvete. Seria o meu primeiro, pois em Pringles eles não existiam. Ele, que em sua juventude havia conhecido cidades, tinha me feito mais de uma vez o elogio dessa guloseima, que recordava como deliciosa e festiva, embora não conseguisse explicar seu encanto com palavras. Tinha-a descrito, muito corretamente, como algo inimaginável para o não iniciado, e isso bastou para que o sorvete fincasse raízes na minha mente infantil e nela crescesse até tomar as dimensões de um mito.

 

Fomos caminhando até uma sorveteria que havíamos encontrado no dia anterior. Entramos. Ele pediu um sorvete de cinquenta centavos, de pistache, creme e de kinkan ao uísque, e para mim, um de dez centavos, de morango. A cor rosa me fascinou. Eu estava bem-disposta. Adorava meu pai. Venerava tudo o que vinha dele. Sentamos num banco na calçada, sob as árvores que havia no centro de Rosário, naquela época: plátanos. Observei como fazia papai, o qual em segundos tinha dado conta do topete de creme verde. Enchi a colherzinha com extremo cuidado e a levei à boca.

 

Bastou que as primeiras partículas se dissolvessem na minha língua para eu passar mal de tanto nojo. Nunca havia provado nada tão repugnante. Eu era bastante difícil com comida, e a comédia do nojo não tinha segredos para mim quando eu não queria comer; mas isto superava tudo o que já havia experimentado; meus piores exageros, incluindo os que nunca havia me permitido, estavam amplamente justificados. Por uma fração de segundo pensei em dissimular. Papai tinha tanta esperança de me fazer feliz, e isso era tão raro nele, um homem distante, violento, sem ternura aparente, que me pareceu um pecado desperdiçar a oportunidade. Passou pela minha cabeça a atroz alternativa de engolir todo o sorvete só para agradar-lhe.

 

Era um dedal, o menor copo, para crianças, mas agora me parecia uma tonelada.

 

Não sei se meu heroísmo teria chegado a tanto, mas nem sequer pude colocá-lo à prova. O primeiro bocado desenhou no meu rosto uma careta involuntária de nojo que ele não pôde deixar de ver. Foi uma careta quase exagerada, que conjugava a reação fisiológica e seu acompanhamento psíquico de desilusão, medo e a trágica tristeza de não poder seguir papai nem mesmo neste caminho de prazeres. Teria sido insensato tentar escondê-lo; nem mesmo hoje eu conseguiria, porque essa careta não se apagou do meu rosto.

— O que é que há?

 

Seu tom de voz já continha tudo o que viria depois. Em circunstâncias normais, o choro teria me impedido de responder. Sempre tinha as lágrimas à flor dos olhos, como tantas crianças hipersensíveis. Mas a volta do gosto horroroso, que havia descido até a minha garganta e agora retornava feito uma chicotada, me produziu um choque a seco.

— Ghhg...

— O que foi?

— É... ruim.

— É o quê?

— Ruim! — gritei, desesperada.

— Não gostou do sorvete?

 

Lembrei que no caminho ele tinha me dito, entre outras coisas carregadas de uma agradável expectativa: “Vamos ver se você vai gostar de sorvete.” Claro que, ao dizer isso, ele dava como certo que sim, eu gostaria. Qual criança não gosta? Existem aquelas que, já adultas, lembram de sua infância como um prolongado pedido de sorvetes e pouca coisa mais. Por isso, agora, sua pergunta tinha um tom de incrédulo fatalismo, como se dissesse: “Você tinha que me decepcionar nisto também.”

 

Vi a indignação e o desprezo crescerem em seus olhos, mas ainda se conteve. Decidiu me dar mais uma chance.

— Tome. É gostoso — disse e, para o demonstrar, levou à boca uma colherada cheia do seu sorvete.

 

Já não podia retroceder. Não tinha jeito. De certa forma, eu não queria retroceder. Percebia que minha única saída àquela altura era mostrar-lhe que o que eu tinha nas mãos era nojento. Olhei para o cor-de-rosa do sorvete com horror. A comédia se aproximava da realidade. Pior: a comédia se tornava realidade, diante de mim, através de mim. Senti uma vertigem, mas não podia retroceder.

— É ruim! É uma porcaria! — quis entrar em pânico.

— É nojento!

 

Ele não disse nada. Olhava para o vazio diante de si e tomava o sorvete rapidamente. Eu havia errado o enfoque de novo. Mudei-o, com atônita precipitação.

— É amargo — eu disse.

— Não, é doce — respondeu, com uma suavidade contida, impregnada de ameaça.

— É amargo! — gritei.

— É doce.

— É amargo!!

 

Papai já tinha renunciado a toda satisfação que pudesse esperar daquele passeio, da comunhão de gostos, da camaradagem. Isso ficava para trás, e que ingênuo de sua parte — ele deveria estar pensando — ter acreditado que seria possível! No entanto, e só para afundar mais sua própria ferida, deu-se ao trabalho de me convencer do meu erro. Ou de se convencer de que eu era o seu erro.

— É um creme doce com gosto de morango, saborosíssimo.

Eu negava com a cabeça.

— Não? Então que gosto tem?

— É horrível!

— Para mim é muito gostoso — disse, tranquilamente, e engoliu outra colherada. Sua calma me assustava mais do que qualquer outra coisa. Tentei fazer as pazes por vias tortas, o que me era típico:

— Não sei como você pode gostar dessa porcaria — tentei fazer um leve tom de admiração.

— Todo mundo gosta de sorvete — disse, lívido de fúria. A máscara de paciência caía, e não sei como eu ainda não tinha começado a chorar. — Todo mundo menos você, que é um idiota.

— Não, papai! Eu juro...!

— Tome esse sorvete. — Frio, categórico. — Comprei para isso, bobalhão.

— Mas não consigo...!

— Tome. Prove-o. Você nem o provou.

 

Arregalando bem os olhos, por ter minha honestidade questionada (teria que ser um monstro para mentir por gosto), exclamei:

— Juro que é horrível!

— Como pode ser horrível? Prove.

— Já provei! Não consigo!

 

Alguma coisa lhe ocorreu, e ele voltou a um nível mais condescendente:

— Sabe o que deve ser? O frio lhe incomodou. Não o gosto, o frio. Mas você já vai se acostumar e ver como é gostoso.

 

Aferrei-me a essa possibilidade ardentemente. Quis acreditar nela, que não teria me ocorrido em mil anos. Mas, no fundo, sabia que não valia a pena. Não era assim. Não costumava tomar bebidas geladas (não tínhamos geladeira) mas as havia provado e sabia bem que não era o caso.

 

 

Veja também:

A maçã envenenada (trecho)