Veja a segunda matéria de Inéditos: Marlene na praia
Ele poderia gritar um grito destilado, um grito de ódio. Transfundir um excesso de fúria verbal na mesa e acertar as contas de todos. Esganar aquelas existências tão sublimes, tão encantadoras. Tão jovens.
Ele é o velho na mesa de jantar.
Era isso. Tudo isso e tão pouco.
Toda a vida e lembranças e alegrias e desgraças e sonhos que teve e mortos que carregou e filhos e casas e mulheres e chefes e tudo que construiu com trabalho, com suas mãos, com seu sangue, tudo isso que todo mundo também possui. Que todo velho carrega em si. Ali, naquele momento, não era nada de nada.
Era apenas o velho na mesa de jantar sentado; torto na cadeira. Com olheiras absurdas de panda. Como se um cansaço glacial o tomasse por inteiro.
Estava dentro de sua casa, dentro do seu domínio, com a família ao redor. Seguro do mundo. Uma família feliz na casa do homem mais velho. Nessa casa que havia gerado boa parte das pessoas ali. Pessoas de sangue comum, de laços compartilhados pelo nascimento, pessoas que para o resto de suas vidas terão a obrigação de conviver entre si.
Eles rindo muito e falando as mesmas bobagens que falavam nas mesmas festas repetidas a cada ano. Aquele homem loiro, alto, era o mais engraçado de todos. Dizia bobagens, fazia brincadeiras com todos e eles riam. Adoravam. E o velho estático, na ponta da mesa, com uma visão formidável da cena. Não esboçava qualquer alteração de humor.
Sozinho e cercado.
Eles conversavam animadamente entre si. Todos gesticulando, comendo, bebendo, rindo. E o velho na ponta da mesa observando a todos com seus olhos de panda, tentando reconhecer cada um daquela mesa.
A dificuldade de resgatar na memória os rostos deixa-o cansado.
Perde o interesse.
Fixa os olhos no prato vazio.
Havia uma consciência cega de fazer parte daquilo tudo e, ao mesmo tempo, não ser parte de coisa alguma. Um pedaço de osso arrancado da carne macia e suculenta e deixada de lado. Fazia parte geneticamente, mas não havia utilidade.
Sentado à mesa, olhando o prato branco com bordas vermelhas, começa a batucar com a mão velha, pelancuda e ossuda uma música distante. Distante o quanto sua memória lembra, navegando nessa melodia casta na tentativa de movimentar alguma coisa dentro de si, algum sentido de vida nesse corpo tão cansado. Batucando com ossos na mesa de madeira maciça. Ossos que serão enterrados em pouco tempo. Ossos que servirão de alimento ao infinito.
Ossos de carbono.
E a mesa é barulhenta e farta no Natal.
Ele, o velho, poderia falar qualquer coisa. Gritar qualquer besteira. Mas a última coisa que disse foi há quarenta minutos. Um “oi” para alguém da mesa que não consegue mais achar.
“Oi” e balançou a cabeça com seu melhor sorriso cadavérico.
Batuca sua música antiga e sente a invisibilidade da velhice. É palpável e firme como a madeira da mesa. Sente no pescoço essa invisibilidade pesada tentando arrastá-lo para algum lugar sombrio, além de sua compreensão.
Poderia ali mesmo ficar nu e sair gritando como um velho louco e mesmo assim não seria notado. Pensou que poderia pegar a faca de cortar peru e cortar seus pulsos na mesa de jantar. Bem ali na frente de todo mundo. Jorrando seu sangue grosso na cara das pessoas. Talvez alguém notasse. Não era certeza.
Parou de batucar e olhou suas mãos distantes, antigas. A pele manchada pelas ranhuras da vida. Capaz de haver apenas ossos ali, sem veia alguma para estourar, sem sangue algum para jorrar. Precisaria serrar os pulsos; talvez uma fina poeira escorresse dali, amarela e brilhante como purpurina. Sim, sairia dessa forma das veias cansadas. E nada jorraria na cara das pessoas. Formaria apenas um montinho dessa poeira e ali mesmo faleceria com olhos abertos.
Todos os ossos do seu corpo doem, mas a cabeça ouve apenas aquela música. Onde ouvira isso? Esse batuque infernal, esse clamor da desgraça?
Tenta cantar. Não sai nada.
Tenta dizer seu nome: ...
Logo esse seu nome de uma só palavra. Esse nome que o definia. Essa palavra única no mundo como a íris do seu olho de cadáver.
Essa palavra de velho, esse nome decrépito.
Esse um dia alguma coisa foi.
Era apenas uma palavra, seu nome. Não lembra.
A batucada aumenta seu ritmo de clamor. O batuque o distrai da vida, um refúgio, um desespero, uma alternativa.
Sua vida é seu encerramento.
Cortam o peru com a faca que serraria seus pulsos. Perdera o tempo da coisa. O instante da nuvem negra passara.
Continua na mesa batucando a música doente. Não para.
Tenta comer alguma coisa, mas não lembra se já comeu.
Fica calado por que sabe que não deve falar. Que sua voz é rouca e baixa e precisaria gritar para chamar atenção. Sabe que falou demais na vida e qualquer coisa que diga não terá importância.
Na mesa, com a família, come sua porção das coisas.
Alguém se aproxima, empurra uma criança para perto dele e tira uma foto.
Ele se assusta com o flash.
Talvez um bisneto.
Viu a criança recusando, tentando não encostar sua pele jovem e macia na dele. Na pele do velho, na pele da morte.
Ele poderia falar, mas permanece à espera da próxima oportunidade. Estavam usando sua faca. E a nuvem negra com certeza retornaria.
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