Golpe militar de 1964 entre o improviso e a deduragem

A esquerda foi derrotada com mais facilidade do que imaginavam os militares e os políticos seus aliados

A história do Brasil é como uma peça de teatro na qual os atores vão improvisando cacos e mais cacos ao longo do roteiro, a ponto de uma tragédia virar comédia. Para começar, o golpe de 64, que completa neste domingo, 31 de março, 60 anos, na verdade, aniversaria nessa segunda, 1º de abril. Pernambuco, com o Rio Grande do Sul, eram os estados mais visados pelas forças armadas. Aqui funcionavam o que consideravam dois perigosíssimos focos comunistas: o Movimento de Cultura Popular (MCP), e as Liga Camponesas. Não à toa, o governador Miguel Arraes foi deposto pelos militares e mandado para o exílio.

Esperava-se uma reação dos movimentos populares contra o golpe, o que praticamente não aconteceu. Homens do Exército foram enviados aos pontos mais visados do Centro do Recife já no dia 31 de março. Houve um protesto de estudantes na Avenida Dantas Barreto. Eles provocaram e xingaram os soldados e foram dispersados a tiros. No dia seguinte, o Diário de Pernambuco noticiava:

“Não obstante o lamentável incidente ocorrido ontem à tarde na Avenida Dantas Barreto, o clima do Recife foi de inteira ordem, garantido pelas forças do IV Exército”. O lamentável “incidente”: a morte de dois estudantes fuzilados por soldados do Exército, mais um ferido na perna. A esquerda foi derrotada com mais facilidade do que imaginavam os militares e os políticos seus aliados. E aí baixou um Joaquim Silvério dos Reis, ou Calabar, nos pernambucanos que, em grande parte, aderiram prontamente aos vencedores.

O prefeito Pelópidas Silveira sofreu um impeachment fulminante na Câmara Municipal: 20 vereadores votaram a favor do seu impedimento. Apenas um foi contra. Jornalistas que assinaram, no ano anterior, um abaixo-assinado pró-governo Miguel Arraes, foram convocados para se explicar. Alegaram que só o assinaram “por não existirem, naquela data, as necessárias garantias democráticas aos cidadãos”. Incentivou-se a delação. Qualquer pessoa podia dedurar quem quisesse como subversivo.

Com o titulo de “Recalque”, lê-se esta nota no Jornal do Commercio, de 7 de abril de 1964: “O guarda civil José Francisco, por mero extravasamento de recalque, denunciou como elemento perigoso e agitador o senhor Milton José Soares, cidadão pacato, residente nesta cidade”.

Em Canhotinho, no Agreste, um vereador fez um apelo às novas autoridades: “O vereador Eriberto Gueiros apela ao presidente, e ao comando supremo revolucionário, no sentido de adotarem medidas que se fazem necessárias contra sete vereadores de Canhotinho que hastearam uma bandeira vermelha no dia em que Arraes tomou posse” (Jornal do Commercio, 17 de abril de 1964).

Mesmo antes do golpe, já dava rolo ser acusado de comunista. Em janeiro de 1963, uma mulher desentendeu-se com o marido, e levou livros dele pra provar que o sujeito era elemento ativo, feroz e nocivo ao bem estar comum: “Prestou depoimentos na 2ª DP, sobre acusações feitas pela esposa, Gerson Batista de Souza. O depoente alegou que a senhora dele o fez por vingança, porque ameaçava abandoná-la por que ela vivia em casas de bruxarias”. Entre os livros subversivos estavam um constituição da União Soviética, o 18 de Brumário de Luís Bonaparte, de Karl Marx, e um mapa com um roteiro da Coluna Prestes em Pernambuco.

Cientes do quanto era vaidoso o general Justino Alves Bastos, comandante do IV Exército, o cobriram de honrarias e salamaleques. Ele recebeu título de cidadão de praticamente todos os municípios pernambucanos. Deve ter ficado em maus lençóis o responsável por um erro de edição ocorrido no JC em 16 de junho de 1964. Naquele dia noticiava-se que o general Justino recebera o título de cidadão garanhuense. Numa nota ao lado, o assunto era a prisão de um perigoso lanceiro (batedor de carteiras). Só que trocaram as fotos. Embaixo da foto do ladrão, a legenda: “Cidadão de Garanhuns a Justino Alves”. E sob a foto do general: “O perigoso lanceiro conhecido pelo vulgo de Zezo foi capturado ontem”. Devem ter rolado cabeças na redação do JC.

Enquanto os militares praticavam o que Gilberto Freyre, que apoiou o golpe, considerava uma profilaxia necessária, ou seja, encarcerava e submetia a IPMs (Inquérito Policial Militar) os subversivos, incentiva-se a delação, com hora certa, no prédio da Universidade do Recife, onde funcionava a escola de Engenharia: “À Rua do Hospício, 619 no expediente das 8h às 10h, dos dias úteis”. Abolia-se o método didático do professor Paulo Freire, com uma caça às bruxas aos integrantes do Movimento de Cultura Popular. Ali se encontrou farto material subversivo, incluindo peixeira e espingardas.

Políticos tementes de serem objeto de uma deduragem procuravam agradar aos novos donos do poder. O deputado Apolinário Siqueira, dois meses depois do golpe, noticiou o JC, sugeriu uma estátua em honra à revolução, a ser colocada numa praça no Centro da capital pernambucana: “O monumento teria placas fazendo referências ao Exército, à Marinha, à Aeronáutica, e ao povo. No cume, um homem nu da cintura pra cima, portando uma bandeira e uma tocha, tendo nos punhos uma corrente partida”. Desta o Recife escapou. Imaginem uma marmota dessas na Pracinha do Diário.