O poeta Fernando Pessoa era um amante da culinária da sua terra. No livro À mesa com Fernando Pessoa, Luís Machado apresenta algumas das iguarias que o lisboeta consumia, como o arroz-doce com canela, que é citado nas Quadras ao gosto popular.
“Ai, os pratos de arroz-doce
Com as linhas de canela
Ai a mão branca que os trouxe!
Ai essa ser a mão dela!”
Nas mesmas quadras, pode-se ler sobre os carapaus (peixe azul com carne fibrosa) e as sardinhas:
“Compras carapaus ao cento
Sardinhas ao quarteirão
Só tenho no pensamento
Que me disseste que não.”
Também são assunto dos seus versos as queijadas (um pequeno bolo enformado, feito com queijo, ovos, leite e açúcar):
“Deixaste cair no chão
O embrulho das queijadas
Riste disso – e por que não?
A vida é feita de nadas.”
Nos heterônimos o assunto das comidas e bebidas vai muito além. Como em “Dobrada à moda do Porto”. Começa com um verso no qual a decepção amorosa é comparada a um prato frio.
“Um dia, num restaurante fora do espaço e do tempo
Serviram-me o amor como dobrada fria.”
Em “Ode Triunfal”, Álvaro de Campos, novamente, se manifesta:
“Comi civilizações como quem come pão quente.”
Em textos dispersos e em prosa, aparecem menções a doces portugueses e refeições triviais, usadas para contrastar o banal e o metafísico.
“O mundo é feito de açúcares e desesperos – e o padeiro é Deus.”
Em “Tabacaria”, Campos, que em outros versos se refere ao “amor gorduroso da vida”, e à vida “gordurosa e tributável”, sugere e provoca:
“Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria”.
Em “Aniversário”, o ambiente é familiar. A nostalgia do tempo em que estava entre os parentes, para as refeições:
“Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui…
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas – doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado - (…)”
Cafés e outras bebidas
Pessoa escrevia também em cafés. Diariamente, à noite, ia ao Martinho da Arcada, onde foi preservada – para visitação pública – a mesa onde ele se sentava. Casas como A Brasileira do Chiado e o Leão de Ouro também eram extensões do seu cotidiano. Neles, meditava, observava o movimento, conversava com alguns poucos amigos e pensava seus poemas.
No Livro do Desassossego há várias referências aos cafés (os lugares):
“Do terraço deste café olho tremulamente para a vida. Pouco vejo dela - a espalhada - nesta sua concentração neste largo nítido e meu. Um marasmo, como um começo de bebedeira, elucida-me a alma das coisas. (...) Homem de ideais que sou, quem sabe se a minha maior aspiração não é realmente não passar de ocupar este lugar a esta mesa deste café?”
No Livro do Desassossego, Bernardo Soares comenta:
“Boa é a vida, mas melhor é o vinho”, disse o Fernando Pessoa ortônimo (designativo para os textos que ele assinou com o próprio nome). Mas as referências à bebida são ainda mais constantes no heterônimo Ricardo Reis, que filosofa:
“Não só vinho, mas nele o olvido, deito
Na taça: serei ledo, porque a dita
É ignara. Quem, lembrando
Ou prevendo, sorrira?”
E em Álvaro de Campos, que desabafa:
“A vida...
Branco ou tinto, é o mesmo: é para vomitar.”
No Livro do Desassossego, Bernardo Soares volta a citar a bebida, em várias passagens. Em uma frase incompleta, demonstra que, no dia em questão, não havia bebido a quantidade usual diária de vinho que fazia parte do seu cotidiano:
“não comi bem, nem bebi o costume, no restaurante… meia do vinho”.
Nas Quadras ao gosto popular, o vinho se apresenta com um registro fingidamente ingênuo:
“Levava eu um jarrinho
P’ra ir buscar vinho
Levava um tostão
P’ra comprar pão”.
Cigarros e outros aditivos
O cigarro foi um companheiro constante de Pessoa. Está como a grande metáfora de toda a vida em “Tabacaria”, de Álvaro de Campos, que diz sobre os próprios versos:
“Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos
Sigo o fumo como uma rota própria
E gozo, num momento sensitivo e competente
A liberação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.
Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando”.
Nos cafés que frequentava, Pessoa convivia com uma geração boêmia que via na bebida um ritual estético: não se bebia apenas para embriagar-se, mas para ampliar a consciência e afinar a sensibilidade.
Em “A Passagem das Horas”, de Álvaro de Campos, ele cita não apenas a fada verde (o absinto), mas outras drogas.
“Às leis irrepreensíveis da Vida
Eu o fumador de cigarros por profissão adequada
O indivíduo qUe fuma ópio, que toma absinto, mas que, enfim
Prefere pensar em fumar ópio a fumá-lo
E acha mais seu olhar para o absinto a beber que bebê-lo
Eu, este degenerado superior sem arquivos na alma
Sem personalidade e valor declarado…”
Em vários trechos atribuídos a Bernardo Soares, no Livro do Desassossego, Pessoa fala sobre o mal-estar moderno, a ansiedade cotidiana e a tentativa de curá-la com remédios e hábitos artificiais. Os tais remédios americanos não especificados, mas que causavam frisson em Portugal. Num dos fragmentos ele menciona com ironia:
“Somos todos neurastênicos hoje. Os remédios americanos já não
chegam para curar a alma. Há uma febre sem causa, um tédio
sem remédio”, escreveu.
Nos cadernos e fragmentos publicados postumamente, Pessoa usa expressões como “drogas americanas”, “elixires modernos”, “remédios para o espírito” e “a indústria da cura”. “O sonho é meu tônico americano”.
Em relação ao ópio, as alusões são muito explícitas. “Opiário” é um dos primeiros poemas assinados por Álvaro de Campos, escrito em 1914, ano em que nasceram os heterônimos de Pessoa. O título já indica tudo: o ópio, droga da lentidão e do sonho, é o símbolo central de um homem que vive o entorpecimento da alma. Mas a droga aqui é mais metafísica do que química. Representa o entorpecimento existencial e a anestesia do sentir diante de uma vida sem propósito.
“É antes do ópio que a minh’alma é doente.”
No verso, o poeta inverte a lógica da dependência: a alma já estava doente antes do ópio.
No mesmo Livro, essa contemplação, nesses cafés se faz específica sobre as sensações provocadas pela comida:
“Espectador irônico de mim mesmo, nunca, porém, desanimei de assistir à vida. E, desde que sei, hoje, por antecipação de cada vaga esperança que ela há-de ser desiludida, sofro o gozo especial de gozar já a desilusão com a esperança, como um amargo com doce que torna o doce doce contra o amargo”.