As histórias em quadrinhos eram, no início dos 1900, uma dessas criações que tinham capturado a atenção popular e, desde sempre, relegadas à categoria de “arte menor”, feita para as massas. Iniciativas pontuais de HQs já tinham surgido ainda no século XIX: o escocês William Heath, em 1825, e o suíço Rudolf Töpffer, em 1833, por exemplo, são apontados como pioneiros das HQs, mídia desenvolvida já nos primeiros periódicos impressos e que ganhou força nos anos seguintes.
Ainda que um produto direcionado para o grande público, as HQs seminais traziam também uma abordagem mais exploratória da linguagem. Os quadrinhos ainda não tinham sido tão influenciados pelo cinema e estavam descobrindo, então, o alfabeto sobre o qual escreveriam suas histórias. Os autores investigavam como a articulação entre texto e imagem poderia favorecer a narrativa. Balões de fala, onomatopeias, enquadramentos e grafismos que sugerem dramaticidade; tudo estava sendo descoberto, criado. Havia muita produção para o público infantil, com material ingênuo e fácil, mas também aqueles que traziam outras camadas de conteúdo, proporcionando, ao mesmo tempo, diversão para os adultos. Isso fica mais evidente em algumas obras, como Krazy Kat, de George Herriman e Gasoline Alley, de Frank King.
A estilização sintética dos cenários e elementos (linhas de sugestão de movimento, navegação entre os quadros) fazem Krazy Kat, de 1914, moderna até hoje. Pouco mais tarde, em 1918, as páginas graficamente inteligentes de Gasoline Alley atestavam a potencialidade dos quadrinhos como expressão de qualidades próprias e complexidade estética.
Pelo menos uma década antes deles, em 1904, Little Nemo, de Winsor McCay, já se apresentava como grande expoente desse quadrinho mais próximo das artes visuais. O personagem estreou na tirinha Dream of the Rarebit Fiend, para depois ganhar seu próprio título no ano seguinte.
Constatar o virtuosismo de Winsor McCay é uma daquelas obviedades difíceis de evitar. Quando um jornal concorrente decidiu rivalizar com “a fineza de Little Nemo in Slumberland, recorreu ao pintor Lyonel Feininger”, revela Rogério de Campos em HQ: Uma pequena história dos quadrinhos para uso das novas gerações (Editora Veneta com Sesc Edições). Feininger era um dos líderes do expressionismo americano, consagrado também nas artes plásticas.
McCay tem a capacidade de criar cenários deslumbrantes num traço refinado, elegante. Ele transporta facilmente o leitor para o ambiente onírico que ele cria. Não só o desenho em si, mas os esquemas das suas páginas, design dos títulos, tudo que compõe suas HQs é feito com brilhantismo. Sua habilidade extrema se manifestou também na animação: McCay, como um verdadeiro showman, foi um dos precursores do gênero, um artista performático: Havia magia em ver uma imagem ganhando forma, o desenho sendo executado ao vivo. E em tudo isso McCay era maestro. Ele foi um grande performer, atuando, além do desenho editorial, em animações (foi um dos precursores do gênero), surgidas das suas intervenções no formato “conversa de giz”, no Teatro de Vaudeville. Em 1911, ele criou um curta de animação do Little Nemo, mas foi com Gertie the Dinossaur, de 1914, que sua atuação no campo da animação ganhou maior notoriedade.
McCay era um exímio desenhista numa época em que cartunistas populares eram disputados pelos periódicos a peso de ouro. Os jornais se orgulhavam de seu time de cartunistas da mesma forma que, hoje, os estúdios de Hollywood cultuam suas estrelas. O magnata da comunicação William Randolph Hearst era justamente conhecido por tratar bem seus cartunistas. De acordo com o historiador e colecionador Bill Blackbeard, Hearst “era excessivamente generoso com talentos e tornou praticamente todos os principais cartunistas milionários ao longo dos anos, forçando outros jornais e sindicatos a atender ou superar suas ofertas financeiras para manter pelo menos alguns de seus principais talentos”. Bons tempos para os profissionais do traço.
O boom urbano pelo qual passava a América do Norte do início dos anos 1900 impulsionou exponencialmente a venda de jornais. A forte imigração de europeus pobres trouxe um público muitas vezes iletrado ou que não falava inglês. As tiras de quadrinhos eram uma diversão acessível: baratas e facilmente assimiláveis, uma vez que a imagem desenhada ajudava no entendimento das histórias. Richard Outcault, criador de Yellow Kid, mirou no público irlandês e foi um enorme sucesso editorial. Para muitos, foi a tira que definiu o léxico do quadrinho moderno ao criar o balão de fala e reunir, dentro de uma mesma obra, os recursos narrativos que vinham sendo criados por autores contemporâneos e recentes.
Acerca do Little Nemo, a editora Figura acaba de completar os dois volumes, compilando a fase de ouro do personagem (1905-1914). Pela primeira vez, a HQ ganha o tratamento merecido no Brasil. Os livros têm acabamento gráfico reverente ao trabalho de McCay: formato grande, capa dura, design cuidadoso e textos excelentes com pesquisa robusta de Erico Assis. O letreiramento dos balões e a reconfiguração de textos ilustrados nos cenários dos quadros foram feitos por Carlos Assunção. Ele desenhou uma fonte digital que, ainda que inspirada na fonte do McCay, permite maior legibilidade ao texto.
A produção da edição brasileira exigiu um trabalho de oito a nove meses em cada volume. “A qualidade dos arquivos era muito boa, mas não excelente. Resolvemos dar uma melhorada em algumas páginas que estavam com as cores muito apagadas”, revela Rodrigo Rosa, editor da Figura, que publica o personagem. “No tratamento de imagens nós acentuamos algumas cores – principalmente os pretos do desenho – para dar mais contraste e também limpamos muitas manchas que são típicas de antigas impressões de jornais”, completa Rosa. Com tiragem de 2.500 exemplares cada volume, Little Nemo teve uma das melhores pré-vendas da editora, com seu primeiro volume esgotado em apenas seis meses e com reimpressão programada para 2024.
Mesmo que faça sucesso mais de 100 anos depois de lançado, Little Nemo não teve uma transição vitoriosa para o formato comics (gibis que compilavam as tiras). Ao mesmo tempo em que reimpressões seguidas de The Katzenjammer Kids e Happy Hooligan vendiam como água, Little Nemo só teve uma coleção impressa, além de outras tentativas fracassadas posteriores tocadas por familiares. O mais lógico é considerar que seu desenho meio art déco ficara “datado” se comparado a outros artistas que viriam pouco depois. Ou talvez McCay estivesse antecipando o fenômeno de transformação dos quadrinhos em uma mídia de massa para poucos, tendência que se consolidou nas últimas décadas do nosso tempo.
O quadrinista, historiador e antropólogo André Toral iniciou nas HQs francamente inspirado em Little Nemo. Pesadelos Paraguaios, publicado na década de 1980 na extinta revista Animal, adota a mesma premissa de um personagem que sonha com a aventura narrada para “acordar” no último quadro. Perguntando sobre a influência em Pesadelos Paraguaios, Toral é taxativo: “Little Nemo é parte fundamental da história das HQs. Esse trabalho propôs uma estrutura narrativa que mesmo sem ser original (o despertar de um sonho) estabeleceu uma solução muito usada na poesia e literatura, e que posteriormente se transformou num clichê para HQs, cinema etc. Aliada a uma diagramação sofisticada e um desenho altamente elaborado, criaram um clássico das histórias ilustradas que é usado, copiado (inclusive por mim) há mais de um século. Little Nemo e Winsor McCay estão vivos entre nós!”, arremata.