Mossoró, começo dos começos

O escritor e acadêmico João Almino, da Academia Brasileira de Letras, escreve na Série 18 cidades sobre Mossoró, onde nasceu, passou a infância e viveu o luto da morte do pai

Dois fatos marcam minha vida em Mossoró: meu nascimento e a morte de meu pai.

Íamos a pé à catedral, à praça e à feira. Na mesma calçada, ficavam as residências de dois políticos. Digo porque, com 3 anos, ao acompanhar meu pai ao escritório onde era contador, decidi sair sozinho pelas ruas e me perdi. A lojista que me socorreu queria os nomes dos vizinhos, e eu somente me lembrava da mulher de um. Salvou-me que eu soubesse o número de telefone de 3 dígitos.

A casa comprida abrigava parentes que vinham para estudar e consideravam meus pais segundos pais. Eu tinha também uma irmã de criação mais velha que eu chamava de mãe Maria.

No quintal com goiabeira, coqueiro e mangueira, disputava castanhas de caju no jogo com os amigos e do galinheiro saíam vítimas a serem degoladas para o molho pardo e um peru para a ceia de Natal quando não era roubado.

Às noites, meus pais me levavam nas proximidades às casas dos primos, onde sentávamos nas calçadas e de onde me traziam nos ombros, adormecido.

Aos sete anos caminhava só à casa de outros primos, longe, no Alto da Conceição, passando em frente à igreja com marcas de bala da resistência ao bando de Lampião. Eu ouvia a história de meu pai armado para a defesa e de minha mãe fugindo num trem de mulheres para Areia Branca.

Fui o sétimo filho, com cinco anos menos que a irmã mais nova, Maria José, já falecida, que me salvou do choque quando desmontei o interruptor sobre a cama. Mamãe me teve com 43 anos, todos os 7 nascidos na mesma cama. O primeiro, José, morreu antes de completar um ano. Pedro, 14 anos mais velho e único homem além de mim, veio a assumir o papel de pai.

Meus pais eram tranquilos e tolerantes. A palmatória de madeira era objeto ornamental. Não fiscalizavam o pecado mortal na brincadeira de médico no quarto aos fundos.

Aceitaram que eu substituísse a escola por aulas em casa com minha irmã Salete. Finalmente concordei em ser aluno dela na escola pública, entrando no segundo ano.

De meu pai herdei o nome e o amor pelos livros. Foi autodidata. Aprendeu a ler aos 16 anos e se tornou leitor voraz de História do Brasil, mundial e de santos, além de considerar obras-primas o que eu escrevia aos 9 anos.

Na estante, Graciliano Ramos e José Américo de Almeida. Falava-se de Rachel de Queiroz por ser parente afastada de mamãe, Natália de Queiroz, uma sertaneja. Até os 19 anos tinha morado com meus avós na fazenda do município de Iracema onde passávamos férias, e quase morri com a freada do cavalo em disparada diante da cancela fechada.

Papai me acordava às 5 para acompanhá-lo à feira, onde escolhia o que comprar na volta da missa.

Na parede de casa, Santa Luzia, a padroeira, nos esperava com os olhos numa bandeja.

Eu batizava as bonecas das meninas e dava-lhes a comunhão com as consagradas hóstias de bolacha.

Na quinta série, papai me convenceu a entrar para o seminário por ser a melhor escola. Fiz dois anos. Ouvia histórias de Monteiro Lobato, de um padre holandês sobre suas torturas na China e piadas de outro, brasileiro, que tinha adquirido uma lambreta e fama de namorador, antes de deixar a batina.

No último mês de seminário, após a morte de papai de um câncer não detectado a tempo, cheguei à aula de latim sob o olhar entristecido dos colegas, desabei em choro e passei de cama o resto do dia.

Com 12 anos, três meses depois me mudava com a família para Fortaleza.

JOÃO ALMINO é escritor, membro da Academia Brasileira de Letras, autor de Entre facas, algodão, Homem de papel e outros 6 romances. Escreve a “Série 18 cidades”, sobre lugares onde viveu