A vida se ergue sobre excêntricos paralelos. Semelhanças, analogias, simetrias que, quase sempre, desconsideramos, ou deixamos escapar. Distraídos com a banalidade das coisas, seguimos. Agora mesmo, quando termino de ler o Diário de um velho louco, do japonês Jun’Ichiro Tanizaki, vejo-me, de repente, diante de uma bifurcação.
Publicado em 1961, o romance de Tanizaki narra a história de um ancião que se apaixona por sua jovem nora. Aos 77 anos, alquebrado e impotente, o velho Utsugi, ainda assim, não controla os impulsos eróticos que lhe sacodem o espírito. Se o corpo já não reage, o espírito e a mente continuam a ferver. Em um jogo perverso, a dançarina Satsuko, entre avanços e recuos, o atiça. O romance de Tanizaki trata dos laços impensáveis que ligam o amor ao horror.
A literatura tem o poder de rasgar fendas na memória e delas arrancar o que parecia perdido para sempre. É o que me acontece durante a leitura do Diário de um velho louco. Há mais de 30 anos, durante uma seca brutal que se derramou sobre o Nordeste brasileiro, fiz uma viagem de carro desde o Recife até Picos, no sul do Piauí. Minha missão como repórter era retratar a desolação produzida pela seca.
Contudo, no caminho, esbarrei com outros sinais, igualmente perturbadores, de ruína e tristeza. Avançávamos entre Serra Talhada e Salgueiro, no semiárido pernambucano, quando paramos, eu e meu companheiro fotógrafo, em busca de descanso. Para esticar as pernas, caminhei um pouco pela beira da estrada. Alguns passos à frente, passei a ouvir um grito. “Eu quero uma mulher!” – a voz dizia. “Eu quero uma mulher!” Não resisti e segui o grito. Meu amigo fotógrafo ainda me aconselhou: “Olha lá onde você vai se meter”. Mas o grito, desesperado e seco, me arrastava. Não resisti. Logo cheguei a um casebre solitário, cercado de trastes, pedras e bodes. Na única janela, um homem – um velho – gritava seu desespero: “Eu quero uma mulher, eu quero uma mulher!” – ele insistia.
Há um filme de Fellini, logo me lembrei, em que um rapaz, montado na copa de uma árvore, profere o mesmo clamor de solidão. Mas eu não estava em um filme, aquilo era a realidade e me atravessava como fogo. Aquele velho podia ser meu falecido pai, um nordestino. Podia ser eu mesmo. Aproximei-me devagar, mas ele me ignorou e continuou a berrar. Indiferentes, os bodes baliam sua tristeza. Não havia mais ninguém na casa.
“Posso ajudá-lo”? – arrisquei. Ele foi rude: “E o senhor por acaso é uma mulher”? Pensei: pelo menos o velho, ainda que tomado pela fúria, continua a pensar. A realidade não lhe escapa. Ao contrário de Utsugi, porém, ele não conservava nenhuma sutileza. Era escandaloso, perdera qualquer pudor, e seu coração rugia. A solidão do semiárido e a indiferença dos bodes tornavam tudo mais dramático.
Logo pensei que seu drama daria um relato. Mais ainda: tinha a forma acintosa e escandalosa de um grande relato. Nem Tanizaki, nem Fellini agiam nos bastidores. Mas a vida não precisa da arte para ser infernal e atordoante. A vida grita, como o velho gritava. “Eu quero uma mulher!” – ele insistia. Tinha a face coberta de rugas vermelhas, era corcunda e parecia desleixado. A miséria – empedrada pela seca – o espremia. Quase não podia se mover. Não se importava com nada, o desejo de um amor era maior.
Ignorando o velho, avancei mais um pouco e entrei na casa. Panelas de barro, cestos rasgados, uma mesa torta, um cão coberto de feridas. Sem pedir licença, sem me anunciar, eu me aproximei e o abracei pelas costas. Resistiu, esperneou, me xingou com palavrões terríveis, mas logo depois começou a chorar. Ofereci-lhe um copo de água. Estirou-se em uma rede. Suspirou. “O que mais posso fazer pelo senhor”? – perguntei. Foi duro: “Por favor, agora vá embora e nunca mais volte”.