O machismo nas entrelinhas das canções do poetinha Vinicius de Moraes

Cantor, compositor e pesquisador Luca Argel faz "pocket show" na Fólio no qual interpreta e analisa alguns sucessos de Vinícius de Moraes

Calhou de ser numa igreja convertida em livraria que o músico Luca Argel abordou a obra de um dos “deuses sagrados” da MPB, Vinícius de Moraes, de uma forma inusitada e nada lisonjeira. Meigo Energúmeno (Editora Urutau) é o resultado da tese de mestrado do brasileiro na Universidade do Porto e tem como objeto de pesquisa o discurso machista nas entrelinhas das composições do Poetinha, incluindo sucessos cantarolados por apaixonados e corações partidos, muitas vezes sem perceber o teor sexista das letras.

A apresentação do livro lançado este ano aconteceu na belíssima Livraria de Santiago, instalada numa igreja medieval na fortaleza muralhada de Óbidos, em Portugal, onde em outubro acontece o Folio Festival de Literatura, o mais charmoso e prestigiado evento literário português. Valendo-se das habilidades musicais, Luca Argel escolheu o modelo de pocket show para falar da obra onde, durante uma hora, de violão em punho, canta e analisa alguns sucessos de Vinícius.

“A ideia da tese surgiu durante um simpósio em 2013 na Universidade do Porto a respeito do centenário de Vinícius de Moraes, quando ouvi e reli algumas de suas músicas. Na época, estava imerso nos estudos feministas e só aí, com o ouvido mais treinado, me dei conta do discurso machista que permeia as canções”, conta Luca Argel.

O título do livro fruto do ensaio é uma autodefinição do próprio Vinícius no poema Elegia ao primeiro amigo, onde se declara um “meigo energúmeno” e continua, alimentando a tese de Luca Argel, ressaltando que “até hoje só bati numa mulher”, para terminar a estrofe confessando que dentro dele “mora um ser feroz e fratricida”.

A premissa que, a princípio, pode soar como um exagero, aos poucos vai sendo defendida e desenvolvida com habilidade pelo músico. O pocket show começa com Canto de Ossanha, na qual Vinicius escreve que “o amor só é bom se doer”. Essa relação entre amor e dor é o ponto de partida para uma reflexão. “Resolvi colocar um ponto de interrogação no fim do verso e me perguntar: o amor só é bom se doer?”, conta.

Para Luca Argel, essa e outras definições de amor na obra de Vinícius abrem espaços para situações delicadas. “Além das várias músicas, Vinícius escreve um livro, Para viver um grande amor. Era, portanto, uma autoridade no assunto, mas que insistia em associar dois sentimentos distintos, o amor e a dor, o que pode servir para mascarar atitudes machistas e até violentas”, explica.

A lógica se repete em Formosa, onde Vinícius tenta convencer a formosa do título de que o “carinho não é ruim”, argumentando ainda que a mulher que nega “tem uma coisa de menos no seu coração”, para no fim imprimir um tom mais radical ao escrever “que mulher que nega, nega o que não é para negar”, culminando com uma ameaça velada: “A gente pega, a gente entrega, a gente quer morrer, ninguém tem nada de bom sem sofrer”.

Segundo Luca Argel, essa é a letra mais violenta de Vinícius. “Há uma escalada do machismo, primeiro com um argumento que parece imune à crítica, de que carinho não é ruim. Não é, mas também ninguém é obrigado a aceitar um carinho. Em seguida, sugere que a mulher que rejeita um carinho tem algo a menos, é menor, para no fim repetir a ideia de que amor e sofrimento são indissociáveis, sugerindo que a mulher só terá algo de bom se aceitar sofrer.”

O livro e o pocket show também mostram um lado mais “diplomático” de Vinícius de Moraes, como por exemplo no clássico Regra três, uma espécie de cartão amarelo endereçado ao amigo Toquinho, famoso por, assim como a tal regra três do futebol, manter amantes “reservas” para além da “titular”. Nem assim, o lado machista deixa de mostrar as caras.

Luca Argel lembra que durante um concerto, Vinícius chegou a dedicar Regra três às integrantes do Women’s Liberation Movement (WLF), uma das primeiras grandes forças de resistência feminista dos Estados Unidos. A dedicatória ia bem, até o Poetinha abrir uma exceção, a da líder do WLF, Betty Friedan, justificando o veto com o que viria ser sua frase mais famosa: “As muito feias que me perdoem, mas beleza é fundamental”.

Mais sorte teve Vinícius em Maria Moita, considerada pelos estudiosos da MPB, vejam só, como a primeira música feminista brasileira. “É uma música brutal e realmente feminista”, concorda Luca Argel, entretanto abrindo um importante parente. “A letra retrata a realidade de uma mulher num contexto social mais modesto, como se a opressão feminina fosse exclusividade das classes mais pobres da sociedade”, adverte.

Luca Argel reforça que a ideia nunca foi sugerir um cancelamento de Vinícius de Moraes, mas fazer, através de uma leitura crítica das composições, um retrato de um tempo social e cultural do Brasil. “Vinícius não é a doença, mas o sintoma da sociedade brasileira em grande parte do século passado”, analisa.

O mergulho crítico no songbook de Vinícius de Moraes acabou por refletir nas letras escritas pelo próprio músico. “Lá atrás, nas minhas primeiras músicas, cometi os mesmos deslizes machistas, mas só as do início, mesmo”, reconhece. Desde então, Luca Argel tem se preocupado em não mais cometer deslizes e “normalizar estereótipos”, abrindo assim, “outros horizontes” para a composição musical.

Uma das estratégias tem sido a utilização do que chama de “o eu lírico aberto” nas canções que escreve, ou seja, sem um gênero do sujeito das letras definido. “Acredito que a quebra do monopólio de uma voz masculina ou feminina vai se quebrar aos poucos e outras vozes vão surgir”, aponta.

Meigo Energúmeno foi lançado no Brasil e em Portugal, mas como o autor atualmente vive em Lisboa, tem sido mais fácil ao público português aos pocket shows. No Brasil, o concerto-apresentação aconteceu na última Flip, em Paraty. Mas para quem ainda não teve o privilégio de assisti-lo, Luca Argel gravou o set do livro com as músicas destacadas no ensaio, disponível no Spotify.