O auditório lotado se levantou imediatamente para aplaudir Rosa Montero de pé assim que ela foi chamada ao palco pelo jornalista Paulo Roberto Pires, mediador de uma das mais celebradas mesas da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), no último sábado (2). Autora de livros como O perigo de estar lúcida e A ridícula ideia de nunca mais te ver — ambos publicados pela Todavia, com tradução de Mariana Sanchez —, a escritora espanhola emocionou e fez rir ao tratar tanto de dores, loucura e morte quanto da possibilidade de a imaginação compartilhada restaurar laços com a vida.
Quando ainda era pouco conhecida no Brasil, Montero foi a grande surpresa da Flip 2004, esgotando todos os exemplares de A louca da casa após sua mesa em Paraty. Vinte um anos depois, com mais de 100 mil exemplares vendidos no país desde 2019, a escritora é popstar. Os ingressos para vê-la em 2025 se esgotaram em menos de uma hora e ela reforçou ao vivo a “extraordinária proximidade que estabelece com os leitores” em seus livros, como definiu o mediador.
Se Montero não pensa nesses leitores enquanto escreve seus romances, são eles que aparecem no início do processo, como lembrou Pires. Na conversa, a escritora de 74 anos contou que esse elo com o mundo exterior aparece quando ela sente que precisa compartilhar algo que a princípio seriam apenas “delírios interiores” — e quando, de fato, tempos depois, os materializa em livros.

“Meu cérebro está o tempo todo imaginando coisas absurdas, que não servem para nada. Posso estar em frente a um elevador e ter a visão de um cadáver numa poça de sangue quando a porta abrir. Um dia, uma dessas imagens me turva, me emociona, me enche de medo, excitação, de tantas emoções que não cabem no peito e na cabeça. Então digo: isso tenho que contar, e aí nasce o romance.”
Para escrever O perigo de estar lúcida, Montero reuniu pesquisas sustentando que as pessoas criativas têm mais tendência ao desequilíbrio emocional, sobretudo os escritores. Por um tempo, sua experiência confirmou as estatísticas. Teve crises de pânico entre os 16 e os 30 anos e, inclusive, decidiu estudar Psicologia para tentar entender o que tinha, mas deixou o curso.
O que a salvou, ela contou, não foi escrever, já que escreve ficção desde que tem memória de si, aos 5 anos, com “um conto horroroso sobre ratinhos que falavam”. Tampouco foi publicar o que escreve, o que faz desde os 18 anos como jornalista — ela ainda mantém uma coluna no El País, jornal espanhol do qual foi redatora-chefe. O que a salvou foi publicar ficção. Ao encontrar uma audiência para seus “delírios interiores”, voltou a se sentir ligada ao mundo.
“A loucura é a ruptura da narrativa comum. Ela te engana e te faz acreditar que aquilo só aconteceu com você. É uma sensação de solidão brutal, bestial, que não cabe na palavra solidão”, disse. “A ficção te faz viver outras vidas delirantes, que não se confundem com a realidade. No romance você tira a lava que tem no interior do coração, sua parte que não tem palavras. Quando as pessoas começam a dizer que te entendem, que já viveram algo parecido, isso te costura ao mundo, te põe na narrativa coletiva. O bilhete premiado é publicar ficção e que alguém te leia.”
Apesar disso, Montero ressaltou que detesta a imagem do “escritor atormentado”, a ideia de que para ser escritor é necessário sofrer muito. “Mentira! Isso é minoritário. Quanto menos sofrermos, melhor para todos. E sabem outra profissão que também tem alta percentagem de suicídio? Dentista!”, disse, arrancando risadas do público.
Os “delírios interiores” publicados por Montero não costumam ter qualquer relação direta com sua biografia. A escritora contou que não consegue escrever romances apegados à própria experiência, mas frisou que isso não é uma crítica a autores que fazem autoficção. “Tenho que me distanciar, não sou capaz de escrever sobre o quente da minha vida”, declarou, citando o “poeta fingidor” de Fernando Pessoa.
Por isso era impensável para ela escrever sobre a morte de seu companheiro, o jornalista Pablo Lizcano, em 2009. Até que, dois anos depois, foi chamada para fazer um prólogo para o diário de luto escrito pela cientista Marie Curie quando perdera o marido. Naquele momento, Montero entendeu que, se falasse da morte do companheiro, falaria não só de sua dor, mas da dor de todos. A mistura de memória e ficção deu origem ao livro A ridícula ideia de nunca mais te ver (2013).
A escritora disse que, quando acabou de escrever, tinha menos medo de morrer. E que, para além desse livro, sua obra sempre passa pelo tema da morte, por aquilo que “o tempo nos faz e nos desfaz”. Ela disse que tem obsessão pela morte desde pequena, e aos 9 anos já pensava que precisava aproveitar a vida porque um dia não estaria mais viva.
“Quando tinha 20 anos, olhava pelo rabo de olho para os maiores de 60, não só porque pareciam muito velhos, mas porque pensava: Como vão comer uma paella, vão ao cinema, estão rindo, como podem fazer isso estando tão perto da morte? Eu estaria cheia de medo, debaixo das cobertas na cama”, disse, causando mais risadas do público. “Pelo menos por enquanto não estou assim, então fiz algo bom. E o que fiz de bom? Escrever.”
Montero viveu a juventude em Madri nos anos finais da ditadura de Franco, que morreu quando ela tinha 24 anos. Ela contou que na universidade só aprendeu a jogar cartas, porque quase nunca havia aula e os policiais perseguiam os estudantes a cavalo no campus. A transição, disse, foi ameaçadora, com rumores de golpes de estado, ameaças de bomba à redação do El País e listas de pessoas que a extrema-direita executaria — Montero entre elas.
“Eu era um dos três ou quatro hippies que havia na Espanha e acariciei a ideia de viver on the road. Dois amigos fizeram isso e eu podia ter ido... Hoje talvez seria uma camareira de hotel no Camboja. Mas seria uma camareira que escreve.”
SUZANA VELASCO, jornalista, escritora e doutora em Relações Internacionais, autora do livro Pra onde quer que eu vá será exílio (Cobogó, 2021)