Reconhecido por sua escrita direta, cortes cinematográficos e retratos urbanos intensos, Rubem Fonseca marcou a literatura brasileira com narrativas impactantes que exploram a violência e as desigualdades do país. Considerado por críticos como "o mestre do conto", sua obra exerceu influência decisiva no gênero, combinando originalidade, vigor e um olhar afiado sobre a sociedade.
O centenário do autor, agora em 2025, veio para colocar as coisas em seus devidos lugares. Devolver a Fonseca o protagonismo que ele teve por tantas décadas. Aos poucos, desde a sua morte, em 2020, o escritor vinha sendo esquecido, deixado de lado. Encontrar bons livros dele fora dos sebos tornou-se quase a única opção de ler sua obra. Mas graças à data comemorativa, o panorama mudou: as reedições começaram a ser retomadas. Tanto a coleção de contos quanto a de romances, têm sido fundamentais para que as novas gerações possam tomar contato com a obra de Rubem Fonseca;
O resgate vem se dando pelo trabalho da editora Nova Fronteira. Ela não só reeditou os romances, mas toda a coleção de contos do escritor, que está sendo apresentada em uma caixa de luxo com três volumes, reunindo a produção entre 1948 e 2018.
A caixa não só reúne toda a produção do autor, mas também apresenta a versão revisada conforme suas próprias anotações. Isso porque a família do escritor, que apoiou o projeto, cedeu textos inéditos e forneceu anotações e correções feitas pelo próprio Rubem em seus exemplares pessoais.
A caixa de luxo, portanto, contempla todos os 17 livros de contos já publicados, incluindo clássicos como Feliz Ano Novo, O Cobrador e Lúcia McCartney, além dos contos inéditos, “Natal” e “Arinda”, do jovem Fonseca, escritos 15 anos antes de seu primeiro lançamento oficial. Eles foram encontrados pela filha de Rubem, Bia Corrêa do Lago, somente após sua morte.
Porrada
Apesar da sofisticação dos romances fonsequianos, cujos principais títulos se situam nos anos 1980, os contos desse mineiro de Juiz de Fora - que passou a vida no Rio de Janeiro - são a marca da sua obra. Rubem chegou a ser considerado o melhor contista brasileiros por vários críticos e autores.
Os contos também são mais impactantes, devido à concisão, o ritmo acelerado das histórias e, em alguns casos, à crueldade que desnorteia o leitor. O que pode ser percebido imediatamente, caso o espectador se atenha à lê-los na ordem cronológica. O talento e o estilo único de Rubem estão presentes desde o começo. Em 1963, no seu primeiro livro, Os prisioneiros, ele já se mostrava sem cerimônias nem meias palavras para chamar atenção e impactar o espectador . Os que se atreverem a ler “Fevereiro ou Março”, serão presenteados com um texto informal e inusitado, mas extremamente bem elaborado, marca de toda sua obra.
“A condessa Bernstorff usava uma boina onde dependurava uma medalha do kaiser. Era uma velha, mas podia dizer que era uma mulher nova e dizia. Dizia: põe a mão aqui no meu peito e vê como é duro. E o peito era duro, mais duro que o das meninas que eu conhecia. Vê minha perna como é dura. Era uma perna redonda e forte, com dois costureiros salientes e sólidos…Um miserável como eu não podia conhecer uma condessa, mesmo que ela fosse falsa; mas esta era verdadeira; e o conde era verdadeiro, tão verdadeiro quanto o Bach que ele ouvia enquanto tramava, por amor aos esquemas e ao dinheiro, o seu crime.”
Mas a porrada fatal na cara do grande público aconteceria, principalmente, com a publicação de Feliz Ano Novo (1975) que traz o conto homônimo, mostrando um massacre sem qualquer pudor. E que chegou a ser censurado, à época, pela ditadura militar.
O conto que assombrou o País tem como protagonistas um trio de assaltantes de meia tigela, que afundados na miséria, na fome e no ódio pelos que ostentam uma vida farta na Zona Sul carioca, decidem executar um assalto numa casa em São Conrado, na noite de Ano Novo. Nesse conto, Rubem mostra o ódio que a pobreza e a desigualdade podem provocar. Expõe toda crueldade e banalidade do mal. E ainda mostra a narrativa dos matadores, que se consideravam injustiçados pelos burgueses que viviam uma existência que eles jamais poderiam almejar. Foi o estalo para todos ficarem de olho na próxima façanha que Rubem promoveria.
O que não demorou muito. Em 1979 o autor voltou à carga com o livro O Cobrador, cujo conto do mesmo nome foi outro marco na literatura da época. “Ele continua construindo o mais impiedoso documento literário sobre a desagregação social do país.”, chegou a comentar à época o crítico Zuenir Ventura.
“Ele bloqueou a porta com o corpo. É melhor pagar, disse.Era um homem grande, mãos grandes e pulso forte de tanto arrancar os dentes dos fodidos. E meu físico franzino encoraja as pessoas. Odeio dentistas, comerciantes, advogados, industriais, funcionários, médicos, executivos, essa canalha inteira. Abri o blusão, tirei o .38, e perguntei com tanta raiva que uma gota do meu cuspe bateu na cara dele - que tal enfiar isso no teu cu? …Eu não pago mais nada, cansei de pagar!, gritei para ele, agora eu só cobro! Dei um tiro no joelho dele. Devia ter matado aquele filho da puta.”
Na ocasião, ao descrever o livro, o crítico do Jornal do Brasil, Wilson Martins, mostrava a reação que quase todo mundo havia tido com o título. A publicação mostrava um Rubem Fonseca mais potente, ainda mais ágil e muito mais agressivo. “Sob vários aspectos, o Rubem Fonseca de O cobrador não é mais o de Feliz Ano Novo. Sua obra passa por uma transformação cujo sentido só o próximo livro poderá determinar.”
E de fato surgiu um novo Rubem, que passou a expandir a temática dos seus romances, mesclando crimes policiais com digressões sobre literatura, cinema, artes plásticas e temáticas diversas, desde as particularidades de armas brancas até as especificidades dos batráquios.
Rubem Fonseca, portanto, é um escritor que escrevia histórias paralelas dentro dos romances policiais, que no final das contas, acabaram sendo apenas um plus para acompanharmos as histórias de amor, as obsessões por literatura e cinema, e principalmente o erotismo latente de suas personagens. Um escritor camaleônico, que surpreendeu com A grande arte, que brincou com Bufo Spallanzani, que até seu último minuto escreveu contos, romances, porque para ele, a literatura corria nas veias.
Serviço:
Box Rubem Fonseca: todos os contos + 2
Editora Nova Fronteira
2096 páginas
R$ 399,90