As praias paradisíacas e desertas que povoam os romances de Jorge Amado – onde a personagem Tieta do Agreste pastoreava suas cabras e se deitava com seus amantes – inspiraram os romances do autor e várias músicas dos seus parceiros. É impossível falar do litoral baiano sem lembrar das estrofes dolentes da toada de Dorival Caymmi: “É doce morrer no mar/ nas ondas verdes do mar”, sobre o herói marinheiro que partiu num saveiro, foi seduzido pela sereia e não voltou. A letra foi inspirada em trechos de Mar morto. Ou de não se deleitar com a canção de Vinicius de Moraes, que nos convida a colocar “um velho calção de banho” e “passar uma tarde em Itapoã”.
A magia baiana vivenciada por Jorge Amado, e por uma geração de compositores que a experimentou, entre os anos 1930 e 1970, metamorfoseou-se. Não que o estado tenha deixado de ter praias e paisagens paradisíacas. A Bahia continua encantando milhões de pessoas, exatamente 1,8 milhões de brasileiros e 125 mil estrangeiros a visitaram em 2023.
Nada parecido com a Bahia das histórias amadianas, onde a velha cidade era pouco visitada e não constava no calendário do turismo nacional e internacional. Hoje, a estrutura para os que vão a Salvador ou cidades litorâneas das rotas dos Coqueiros, do Dendê e do Cacau, envolve turismo de luxo, muito dinheiro para bancar dias agradáveis em hotéis da capital, nas pousadas e resorts da Praia do Forte, ao Norte, e de Ilhéus, Caravelas, Olivença e Porto Seguro, ao Sul, frequentadas por celebridades de todo o país.
Quem visita a capital e procura o Pelourinho, registrado nas páginas de Suor, também não vai mais encontrar o clima de decadência e sofrimento narrado no romance. O programa de recuperação da área, iniciado em 1991, foi um marco na reurbanização e, também, no que diz respeito à substituição populacional. Seu objetivo era recuperar as estruturas físicas. No entanto, junto com isso foi realizada uma limpeza social para que pudesse se enquadrar aos moldes do turismo. Em todo carnaval, já virou um clichê mostrar os batuqueiros do Olodum no Pelourinho.
O bairro, que era moradia da elite até começo do século XX, virou espaço para cortiços habitados pela classe operária e portuária pobre a partir da década de 1920. Foi nesse cenário que Jorge criou Linda, uma menina doce e tímida, sustentada pela madrinha Dona Risoleta. Personagem que, se supõe, foi inspirada numa namorada que o autor deixou em Salvador antes de se mudar para o Rio de Janeiro.
Os históricos bordéis das narrativas de Teresa Batista cansada de guerra e de Gabriela, cravo e canela dificilmente serão encontrados. Pelo menos, não no formato festivo que exibiam. Ainda devem existir cafetinas como Maria Machadão e milhares de meninas pelas ruas da Bahia. Mas, na atualidade, com um nível de discrição e sofisticação que seria impossível exigir em meados do século XX.
Os babalorixás e ialorixás do candomblé, que sofriam perseguição da polícia e preconceito por parte da maioria dos moradores da Bahia, registrados em Jubiabá, também tiveram uma mudança significativa de situação. Há algumas décadas, o candomblé é uma religião prestigiada, apesar de ser alvo, hoje, de outros inimigos: os evangélicos neopentecostais.
“De um modo geral, há uma reverência grande por esses líderes de candomblé. A religião e tudo quanto é africano aqui na Bahia é usado para chamar turista. Haja vista o que acontece na festa do Senhor do Bonfim, que é uma festa sincrética. E no dia 2 de janeiro, Dia de Iemanjá, celebração que atrai milhões de pessoas daqui e do exterior. Apesar disso, o candomblé sofre um novo tipo de retaliação, feita por integrantes de alguns grupos evangélicos.”, explica o historiador João Reis.
A polícia e o noticiário da imprensa registram esses ataques feitos por grupos que incendeiam templos, insultando os praticantes. O ápice da violência foi registrado com a morte da mãe de santo Maria Bernardete Pacífico, em Simões Filho, em 2023, forçando as forças de segurança pública para tentar brecar os episódios.
Os meninos de rua registrados, principalmente, no livro Capitães da areia, já não gozam mais da vida livre e sem perseguição cerrada romanceada por Jorge Amado. Para o historiador João Reis, na verdade nunca gozaram dessa liberdade de fato. “Na própria obra de Jorge Amado, aquilo é bastante romântico, o mundo que ele apresenta dos ‘capitães de areia’ não dá para transferir o livro para a realidade nem na época nem nos dias atuais. As crianças que não são exatamente de rua, mas que têm essa sabedoria das ruas, são muitas, continuam a existir em Salvador, estão em várias partes, mas submetidas a perigos ainda maiores do que aqueles representados no livro”, diz.
João Reis afirma que hoje as meninas e meninos são alvo de exploradores criminosos, rechaçados pela população, enxotados de shoppings centers, de restaurantes, e pela polícia, embora muitos conheçam seus direitos como crianças e os jogam na cara de quem busca atacá-las.
O Carnaval da atualidade, por sua vez, é totalmente diferente do retratado no livro Dona Flor e seus dois maridos. “O Carnaval cresceu, se sofisticou, entre aspas. Tecnologicamente estamos nas eras dos trios, dos blocos, das multidões imensuráveis, da violência durante o carnaval. É totalmente diferente daquele carnaval mambembe, artesanal, representado por Vadinho. Tem ainda alguma manifestação daquele tipo de carnaval na Bahia, nos dias que antecedem o carnaval oficial, no Bairro de Santo Antônio, que é muito próximo de Pelourinho, próximo de onde Vadinho morreu, inclusive, numa Quarta-Feira de Cinzas. Ali tem um carnaval bem naquele estilo. Mas também está crescendo, porque as pessoas têm notícias e vão se agregando”, explica o historiador.
Já quem sonha em navegar nos saveiros que cortam a Bahia de Todos os Santos, como fez Quincas Berro d’Água antes de dar seu último mergulho para o além, pode ir preparando o bolso e o espírito. As embarcações dos marinheiros e pescadores solitários e heroicos agora transportam grupos de turistas de todo o canto, embalados pelo som em alto volume da música pop baiana - axé, piseiro, arrocha, pagode baiano e que tais. O passeio custa em torno de 120 reais por pessoa.
Até mesmo as icônicas plantações de cacau presentes nas sagas de Jorge Amado mudaram seu perfil. Os velhos coronéis e jagunços que habitavam o livro Cacau e Gabriela, cravo e canela não existem mais, pelo menos com o figurino apresentado em décadas passadas.
Hoje, Ilhéus é uma das líderes do crime organizado e do tráfico de drogas, ficando atrás, no estado, apenas de Feira de Santana e Salvador. No dia 1º de janeiro de 2025, um jornal local registrava 15 prisões de traficantes. Do cacau aos cartéis, a cidade reinventou seu ramo de negócios. Bem mais perigoso e bem menos poético do que o registrado nas histórias de Amado.
A cultura na Costa do Cacau, entretanto, sobreviveu. E anda em recuperação. Após a crise provocada pela vassourinha de bruxa, que devastou as lavouras no final dos anos 1980, Ilhéus voltou a ter uma boa produção, voltada não apenas para a venda do produto bruto, mas se gourmetizou, com o surgimento de chocolates artesanais, sorvetes e sucos.
Nada que se assemelhe à época de ouro, entre as décadas de 1900 e 1920, tão bem-registrada por Jorge Amado, quando se colhia 370 mil toneladas por ano, fazendo o Brasil ser responsável por 25% de toda a produção mundial. Tempo bem-representados pelos coronéis Ramiro Bastos, Jesuíno Mendonça, Manoel das Onças, Amâncio Leal e Altino Brandão, de Gabriela, cravo e canela.
Nos tempos mais recentes, a Bahia de Jorge Amado está mais para Caetano Veloso do que para Dorival Caymmi. É a Bahia que se configurou em A luz de Tieta:
Nessa terra a dor é grande a ambição pequena
Carnaval e futebol
Quem não finge quem não mente
Quem mais goza e pena
É que serve de farol