Bienal do Livro do RJ: Escrita e identidade

A revista Pernambuco está no Rio de Janeiro para acompanhar os últimos dias da Bienal do Livro 2025

Esta quinta-feira (19) é feriado de Corpus Christi em boa parte do país (em Pernambuco, o ponto facultativo foi transferido para o São João) e no Rio de Janeiro isso significou um grande público na Bienal do Livro. Com direito a aviso nas redes sociais sobre ingressos esgotando, era apertado transitar pelos grandes pavilhões e as filas estavam grandes durante todo o dia em restaurantes e quiosques e até mesmo algumas editoras decidiram controlar o número de pessoas dentro de seus estandes.

Entre os visitantes, ficou claro o público jovem como maioria, mas também se observava um número considerável de famílias com crianças e professores. Entre a programação oficial do evento, temas como a maternidade, romances históricos, memória, adaptações audiovisuais de livros e até Machado de Assis e a saga literária Harry Potter foram temas das mesas e rodas de diálogo.

Escritas singulares, temas universais

No palco batizado de “Café Literário”, o português Afonso Cruz e o argentino Pedro Mairal se juntaram à brasileira Aline Bei em uma conversa comandada pelo também escritor e criador de conteúdo literário, Pedro Pacífico, o Bookster. Os três escritores contaram um pouco sobre suas jornadas com o livro e a leitura, além de adentrarem em suas maneiras de escrever. Com o diálogo entre os escritores, ficou claro que com diferentes formas e métodos, Aline, Pedro e Afonso trazem em suas obras a vontade de se comunicar com o outro, recuperando através de palavras, tramas comuns e incomuns, contando que, singularmente, explorem os sentimentos do ser humano.

Aline Bei

Aline Bei/Foto: Laura Machado

“A literatura é uma das artes que mais olha para o movimento de vida e das emoções, então poder desfrutar disso a partir da palavra é um dos prazeres da minha escrita”, disse a escritora paulista.

Fenômeno TikTok

Foto: Laura Machado

Enfileirados em prateleiras específicas, em uma verdadeira montanha de livros ou em forma de adesivo nos próprios exemplares, era certa a presença de quase um novo gênero literário: “Sucesso no TikTok”. Independente da editora, hoje a literatura parece se movimentar por águas diferentes de antes.

Se antigamente comprava-se um lançamento porque uma resenha de jornal era bastante elogiosa, hoje — principalmente o público de adolescentes e jovens adultos — decide se vale a pena investir dinheiro em um exemplar se os criadores de conteúdo literário recomendaram. Isso não é algo negativo, mas deve ser visto com atenção.

Devido aos vídeos curtinhos e divertidos, muita gente que antes não tinha contato com a literatura descobriu que livros são muito mais plurais do que imaginavam. Ao mesmo tempo, quando os influenciadores com altos números de seguidores falam de uma obra, ela passa na frente de diversas outras na lista de leitura de muita gente e se os tiktoks não forem consumidos com criticidade, o espectador pode acabar sempre rodeado pelos mesmos títulos, sem disposição para procurar novos autores e obras. Fora do TikTok, muitos livros bons estão nas prateleiras, esperando para serem pegos em mãos, mexidos, escolhidos e lidos — mesmo que nenhum tiktoker tenha lido antes.

Memória e resistência

Pouco antes das 14h, a sala onde se localiza o palco “Café Literário” já estava completamente lotado. Do lado de fora, diversas pessoas que não conseguiram entrar se posicionaram espalhadas pelos dois grandes vidros que separavam os ambientes, tudo com a intenção de ver de pertinho a escritora mineira Conceição Evaristo. Considerada uma das grandes vozes da literatura brasileira, ela dialogou sobre linguagem, maternidade, identidade e negritude juntamente com a escritora cubana Teresa Cárdenas e a sul-africana Zukiswa Wanner. O diálogo atiçou tanto as mentes dos presentes que se estendeu pelo horário com perguntas do público para o trio de escritoras.

Conceição Evaristo

“Talvez um dos processos de crueldade da colonização foi de arrancar a possibilidade das mães criarem seus próprios filhos. Ai eu vou para a escrevivência e tenho insistido muito que o que semantiza a escrevivência, mais do que a junção de “escrever” e “viver”, mais do que a ideia de escrever a vivência, é a imagem da mãe preta que viveu em uma condição de cor escravizada, de voz escravizada”.

Entre Machado e hoje

Lorrane Fortunato, Eliana Alves Cruz e Lázaro Ramos/Foto: Laura Machado

A última mesa do “Café Literário” ficou sob o comando do ator e escritor Lázaro Ramos. Ele explicou, logo no começo de sua fala, que realizou a curadoria daquele momento e convidou os autores negros Eliana Alves Cruz, Geovani Martins, Lorrane Fortunato e Tiago Rogero para debaterem sobre Machado de Assis.

Em uma conversa bonita, os escritores falaram da importância de Machado para a história da literatura nacional, além de compartilharem as experiências individuais com as suas narrativas. Como um homem negro durante o século XIX, Machado de Assis foi muitas vezes ”embranquecido” e até mesmo em sua certidão de óbito, consta que aquele corpo pertencia a um homem branco. Mais de um século se passou desde sua morte e apesar de muitos autores negros terem vindo depois dele, o racismo ainda atua de forma a afastar a população negra da literatura.

Um dos destaques da mesa aconteceu quando Lázaro questionou os presentes sobre a expressão “literatura negra”. Enquanto alguns escritores descrevem seus trabalhos utilizando essa expressão, surge a dúvida: será que essa nomenclatura não coloca a escrita produzida por pessoas negras em uma caixinha fechada? Sobre o tema, Geovani discursou:

“Ao mesmo tempo que é bonito, também pode ser uma prisão. Até hoje tem pessoas que me perguntam ‘quando vem o livro novo?’ e quando eu respondo que estou fazendo, falam: ‘mas é a mesma temática, né?’. Eu me pergunto que temática é essa. Eu sinto que o movimento do Machado, de fazer uma crônica da sociedade branca brasileira a partir de alguém que nasceu no Morro do Livramento, que foi agregado em uma família… sinto que ele escrevia para o futuro, para esse futuro que estamos vendo hoje. Eu sinto o Machado jogando essa flecha pra cá. Tanto o trabalho dele quanto os nossos trabalhos são uma tentativa de criar um novo imaginário, um que nos permita existir em liberdade”.