A história recente da literatura em Portugal tem sido contada também em português do Brasil. Um reflexo direto do boom da imigração brasileira no país, uma comunidade que, entre 2015 e 2025, saltou de 80 mil para 600 mil residentes. Uma onda migratória maior e diferente das anteriores, formada não apenas pela tradicional mão de obra destinada ao trabalho que “não interessa ao europeu”, mas também por profissionais mais qualificados e especializados.
Um contingente disposto a disputar de igual para igual com os portugueses uma vaga no mercado de trabalho, composta por médicos, enfermeiros, dermatologistas, psicólogos, advogados, engenheiros, professores, pesquisadores, jornalistas, entre outros profissionais liberais, além de especialistas do setor da cultura – os músicos, atores, diretores, técnicos de áudio e iluminação, e ainda, como não poderia deixar de ser, pelos escritores.
A adaptação em Portugal, porém, não é tão simples como se imagina. Apesar dos vários acordos diplomáticos entre os dois países, apenas recentemente alguns profissionais, como médicos e advogados, conquistaram o direito de exercer a profissão em território português, um sonho ainda distante para outras categorias, como psicólogos e fonoaudiólogos, por exemplo, muitas vezes obrigados a voltarem aos bancos das universidades portuguesas.
Se o diploma não é problema para os escritores, o fato de teoricamente usarem a mesma ferramenta de trabalho dos colegas portugueses – o idioma – não é garantia de portas abertas das editoras e livrarias portuguesas, nem da conquista de um maior número de leitores. Normalmente chamado pelos portugueses de “brasileiro”, como se tratasse de uma outra língua, a variante brasileira do português tem sido um dos entraves encontrados pelos profissionais da palavra. Não só pelos escritores.
Durante anos, os jornalistas do Brasil não frequentaram as redações portuguesas por “falarem brasileiro”, ao ponto de nomes como Ruy Castro terem os textos “traduzidos” do tal “brasileiro” para o português ao serem publicados. A questão foi finalmente superada em 2024, quando dois dos maiores jornais de Portugal, o Diário de Notícias e o Público, de olho na imensa comunidade brasileira, criaram uma versão “ponto.br” produzida por profissionais brasileiros.
Na literatura, porém, a resistência permanece, com pormenores cômicos. Livros como o Sol na cabeça, do carioca Geovani Martins e até mesmo Dor fantasma, do prêmio Saramago Rafael Gallo, saíram nas livrarias acompanhado de um pequeno glossário, o que é impensável no Brasil, nem no caso do Nobel José Saramago, cuja escrita peculiar é considerada um desafio para os não iniciados em sua obra, até mesmo entre os leitores portugueses.
À alardeada resistência em ler em “brasileiro” dos portugueses soma-se o ímpeto de se preservar um dos principais patrimônios da “portugalidade”, o idioma. Não por acaso, o Dia de Portugaelo l é celebrado em 10 de junho, data da morte do poeta Luiz de Camões, cuja principal obra, a epopeia Os Lusíadas, nos últimos séculos forjou no imaginário local o que é ser português.
Ou seja, nem o fado e nem o Santo Antônio, música e religião, elementos facilmente associados a Portugal, conseguem juntos representar o espírito português como Camões. A literatura ganhou ainda mais importância para os portugueses quando o único Prêmio Nobel em língua portuguesa foi concedido em 1998 a um escritor lusitano, José Saramago.
O zelo com o idioma é tão grande, que até o Acordo Ortográfico de 1990 foi considerado por muitos portugueses como uma “derrota” de Portugal para o Brasil. Nomes como o do escritor e colunista do semanário Expresso, Miguel de Sousa Tavares, recusam-se a escrever em linha com o novo acordo e não perdem a oportunidade de alfinetar a decisão de aproximar as duas línguas, na opinião dos opositores, privilegiando a variante brasileira.
Numa entrevista sobre o Acordo Ortográfico, Miguel de Sousa Tavares, invocou a “independência” dos portugueses perante o português brasileiro. “Não podemos estar dependentes do Brasil como motor da língua e olhar sempre para o outro lado do Atlântico. O Brasil faz o que lhe compete, faz avançar a sua variante e nós temos que fazer o mesmo”, disse em uma entrevista.
Num artigo em resposta a uma declaração do escritor brasileiro Sérgio Rodrigues ao mesmo jornal Expresso, na qual o vencedor do Prêmio Oceanos em 2014 com o livro O drible dizia-se incomodado quando os editores portugueses mexiam no “seu gerúndio”, Miguel de Sousa Tavares disparou: “Ó pá, fique lá com o seu gerúndio e deixe o Camões em paz!”
Incompreensão ou reserva de mercado, o certo é que o ruído entre as duas variantes reflete-se diretamente nas vendas, esfriando o interesse das grandes editoras locais. As apostas resumem-se aos grandes best-sellers brasileiros, mesmo assim, sem resultados comerciais garantidos. Neste cenário, a grande maioria de romancistas, contistas e poetas brasileiros em Portugal tem encontrado apenas em pequenas editoras independentes – muitas delas com DNA brasileiro – a válvula de escape para a publicação dos seus livros.
Uma dessas válvulas é a editora Urutau, responsável anualmente pela publicação de dezenas de autores brasileiros residentes em Portugal. Criada em 2015 em Campinas, a Urutau desembarcou em solo português em 2017 na bagagem do poeta e editor Wladimir Vaz, com o intuito de promover uma “biodiversidade literária” no país. “Temos várias lutas, uma delas é publicar pensamentos divergentes através de vozes silenciadas pela sociedade”, explica.
Mais do que independente, a Urutau se vê como uma editora “à margem” do mercado editorial. Talvez por isso, tenha escolhido a chamada Margem Sul do Rio Tejo para se instalar, na cidade do Barreiro, com vista para Lisboa. É do antigo município industrial que a editora luso-brasileira tem fabricado uma comunidade de escritores brasileiros, através de um sistema regular de convocatórias, ou “chamadas” para o envio de originais.
Em 2024, 50 autores brasileiros foram escolhidos na chamada aberta exclusivamente para Portugal. Livros que serão publicados em 2025, nas duas margens do oceano. Entre os selecionados, representantes do sotaque pernambucano, como o sergipano criado no Recife Diego Garcez, que em 2024 já havia tido o seu livro de poemas Satanás lilás publicado pela Urutau, assim como o autor desta reportagem e o seu O Mau Selvagem (ver matéria).
Um dos nomes mais ativos da Urutau é a também pernambucana Manuella Bezerra de Melo, que pela editora viu nascer sua poesia em Pés pequenos para tanto corpo (2019), Um fado Atlântico (2022) e Para comer com o coração de Dom Pedro (2024). A pesquisadora vive em Guimarães, no norte de Portugal, e é ainda responsável pela curadoria de um das joias da Urutau, a antologia de poetas estrangeiros Volta para a tua terra!, já em seu terceiro volume.
O título da antologia é uma referência ao insulto constantemente ouvido pelos imigrantes em Portugal, proferido geralmente por racistas e xenófobos. A resposta poética não é dada apenas pelos brasileiros, mas também por autores de Angola, Cabo Verde, Guiné Bissau, Moçambique e Guiana, entre outros imigrantes no país, incluindo três escritores de etnias indígenas e duas mulheres trans.
Em vez de voltarem para as suas terras, as “vozes silenciadas” em Portugal foram amplificadas pela Urutau, ouvidas, lidas e reconhecidas literariamente. Apesar de preferir estar à margem do mercado editorial, a editora tem liderado o número de poetas semifinalistas nas últimas edições do Prêmio Oceanos, o mais importante da lusofonia, repetindo o feito no Jabuti de 2024. “O reconhecimento é apenas um bom sinal, mas não é o fundamental”, frisa Wladimir Vaz.
O reconhecimento literário das vozes dos autores brasileiros não tem sido suficiente para quebrar a resistência das editoras portuguesas. Para Manuella Bezerra de Melo, a questão vai além de o leitor português não entender “o brasileiro”. É fruto de uma “visão preconceituosa e colonial” dos portugueses diante da variante do idioma do Brasil.
Some-se a isso a forte resistência dos editores portugueses em abraçarem alguns temas abordados pelos escritores brasileiros, principalmente os que vivem em Portugal, entre eles a questão inerente aos desafios da imigração, diferente do cenário brasileiro. “Por ter sofrido a colonização, existe uma busca na literatura brasileira em refletir e construir um pensamento nacional em relação às nossas questões. Aqui, não”, aponta Manuella Bezerra de Melo.
O melindre em tocar algumas feridas com os livros acarretaria justificativas evasivas por parte das editoras, como as que normalmente acompanham a negação de um original, do tipo “não faz parte dos planos”. Um eufemismo, segundo Manuella. “Alguns temas carregam uma versão contra-hegemônica da cultura e história portuguesa e são rejeitados pela visão mais conservadora e reticente ao debate e à reflexão destes temas”, afirma.
A duas ruas da Urutau, também no Barreiro, o escritor, cronista e editor paranaense Marcos Pamplona abriu em 2019 a editora Kotter, outra editora brasileira em Portugal, mas não necessariamente dedicada aos autores nacionais. Em seis anos, a Kotter publicou cerca de 70 títulos, metade deles assinados por portugueses e africanos, metade por brasileiros. Desses, porém, apenas seis escritores vivem em território português.
“O leitor em Portugal ainda vê a literatura com muita reverência, montada num pedestal, e muitos estranham ou desaprovam a forma mais irreverente de os brasileiros tratarem o idioma”, afirma Marcos Pamplona, em relação à dificuldade em publicar nomes menos conhecidos da literatura brasileira, como é o caso da maioria dos escritores a viverem no país. “A saída seria os portugueses chutarem esse pedestal e trazerem a literatura mais ao nível das pessoas.”
Uma forma de Marcos “chutar o pedestal” tem sido a participação do editor e seus autores em saraus de poesia e nas dezenas de festivais literários que ocorrem do norte ao sul do país. “Quando cheguei, foi difícil, era um ilustre desconhecido entre os meus pares no ramo editorial. Depois de muita insistência, quebrei o gelo e há quem agora receba bem os livros da Kotter nos eventos, como aconteceu na última Feira do Livro no Porto”, diz Marcos Pamplona.
A participação em feiras tem sido também a estratégia de guerrilha da independente Gato Bravo, desde 2020 braço em Portugal da carioca Jaguatirica. Comandada pela editora Paula Cajaty, a Gato Bravo tem conseguido espaço em eventos importantes, como a Feira do Livro de Lisboa e o Festival Literário Internacional de Óbidos, o Folio, um dos dois maiores do país, com participação em mesas e lançamentos dos livros dos seus autores.
Assim como a Kotter, a Gato Bravo abre as portas a autores de outras nacionalidades. Dos 73 livros publicados até agora em Portugal, 26 são de escritores brasileiros, apenas oito vivem em Portugal. “Houve alguns que voltaram ao Brasil”, contabiliza Paula, ressaltando outro fator importante para o mercado: “O trabalho do editor não é fácil, precisa aliar a qualidade e o potencial comercial da obra, o que pode influenciar na escolha, para além da nacionalidade”.
Os critérios do mercado são uma das principais críticas do escritor mineiro Ronaldo Cagiano, desde 2017 em Portugal, um dos oito brasileiros na lista da Gato Bravo a viver no país. Pelo selo, publicou o livro de contos Eles não moram mais aqui, finalista do Jabuti em 2015. Cagiano também é autor da Urutau, com Os rios de mim (2018) e Horizontes de espantos (2022).
Em 2022, conseguiu ainda “a proeza” de ser publicado por uma editora sediada no Porto, a Húmus, com o livro Arsenal de vertigens. “Furar o funil do mercado é uma tarefa inglória para um escritor desconhecido. Os convidados a sentarem às mesas são os mesmos de sempre, os ungidos pelo mercado”, atira Cagiano, casado com a também escritora brasileira Eltânia André, mais um dos nomes nacionais no catálogo da Urutau.
Representante da safra recente de escritores que aportaram no país, desde 2022, a carioca Fernanda Hamann divide a rotina da escrita com a de psicanalista, duas de suas paixões, cristalizada no interessante ensaio Nelson Rodrigues e a psicanálise, publicado no Brasil pela editora 7Letras. a mesma casa do seu primeiro romance, Cativos, em 2015.
Fernanda Hamann teve o gostinho de lançar um livro em Portugal, em outubro do ano passado, quando assinou na Livraria da Travessa em Lisboa os exemplares da edição brasileira de Estilhaços de junho, publicado pela carioca EditoRia. A estreia da escritora em Portugal como autora brasileira a viver no país será em 2025, com Zuca, pela incontornável Urutau.
Para os olhos treinados da psicanalista, a relação entre os leitores portugueses e os autores brasileiros ainda precisa ser bastante discutida. “Há uma clara resistência ao português do Brasil, o que curiosamente não ocorre em outras áreas da cultura, como a música e o teatro, quando os ingressos normalmente estão sold out logo no primeiro dia de venda”, reflete Fernanda Hamann.
Os sintomas da relação de amor e ódio também surgem na própria literatura. Apesar da resistência à variante do português do Brasil, os livros escritos em “brasileiro” venceram 14 das 22 edições do Prêmio Oceanos. O mais prestigiado prêmio literário em Portugal, o Leya, vinha sendo dominado pelos portugueses, mas em três dos últimos cinco anos premiou obras publicadas por escritores brasileiros, entre eles Itamar Vieira Junior, com Torto arado (2018).
O mesmo acontecia com o Prêmio Saramago, atribuído bienalmente aos autores com até 40 anos. Os brasileiros eram minoria entre os vencedores nas primeiras edições até equilibrarem a disputa, com três entre os sete últimos vencedores: Andrea Del Fuego (2011), Julián Fuks (2017) e o já citado Rafael Gallo (2022).
O recente sucesso nos prêmios literários pode ser o indício de que a resistência dos leitores portugueses e, consequentemente, do mercado português aos livros escritos em “brasileiro” esteja a perder força. O que pode ser uma boa notícia para as centenas de escritores do Brasil que vivem em Portugal, à espera de ocupar um espaço maior no cenário literário português, proporcional ao crescimento da comunidade brasileira no país.