Por um lugar ao sol para os emigrantes

Escritores que emigraram para Portugal tentam furar a bolha e conquistar os leitores, tantos os conterrâneos que vivem por lá quanto os lusos

Rafael Gallo: Libia Florentino/Divulgação | Tatiana Salem Levy: Estelle Valente/Divulgação
Rafael Gallo: Libia Florentino/Divulgação | Tatiana Salem Levy: Estelle Valente/Divulgação

Apesar de premiados, reconhecidos pela crítica e publicados por grandes editoras portuguesas, os escritores brasileiros “de nome” que vivem em Portugal enfrentam os mesmos desafios, embora em menor escala, dos autores conterrâneos ainda em busca de um lugar ao sol, ou melhor, nas estantes das livrarias.

Há 12 anos em Portugal, a escritora Tatiana Salem Levy reconhece que “não pode reclamar” de sua condição de escritora brasileira em Portugal. “Consegui conquistar um número grande de leitores brasileiros, mas o público português também tem crescido, principalmente após a repercussão de Vista chinesa”, explica a autora. Apesar de luso-brasileira, nascida em Lisboa e criada no Rio de Janeiro, Tatiana nunca foi tratada como uma escritora portuguesa.

“Apesar de ser portuguesa desde o primeiro dia da minha vida, sinto-me mais uma escritora brasileira em Portugal do que uma escritora em Portugal”, reflete Tatiana Salem Levy. A resistência dos portugueses em considerá-la uma autora “da casa”, não tem dúvidas, passa por escrever no português do Brasil e das suas histórias, como em Vista chinesa, ocorrerem em cenários brasileiros.

Vencedor do Prêmio Saramago em 2022, o carioca Rafael Gallo nem de longe suspeitava não escrever em português, mas “em brasileiro”, quando se mudou para Lisboa no início de 2024, e começou a ser confrontado com a questão nas dezenas de debates que tem participado. “Não chega a ser um problema, mas vez ou outra pode acabar numa situação curiosa, caricata”, reconhece Rafael Gallo.

O escritor paulista tem dois livros publicados em Portugal, Dor fantasma e Rebentar, ambos pela Porto Editora, a maior do país. Mas assim como Tatiana Salem Levy, autora da Elsinore, uma das duas dezenas de chancelas do braço da multinacional Penguin Random House em Portugal, viver de literatura tem sido um sonho tão difícil de realizar quanto para os compatriotas menos famosos, publicados pelas editoras independentes.

Servidor público do Tribunal de Justiça de São Paulo, Rafael Gallo tirou uma licença sem vencimentos de dois anos para conhecer a vida de escritor em Portugal. Não se sustenta, contudo, das vendas dos livros: o valor recebido pelo Prêmio Saramago, 40 mil euros, cerca de R$ 260 mil, até então têm custeado a temporada portuguesa. Daqui a um ano, porém, a licença no governo paulista termina e o escritor terá que decidir o próximo passo a dar.

Furando a bolha

Pioneira entre os escritores brasileiros em Portugal, a carioca Andrea Zamorano aportou em Lisboa em 1992. Estudou Línguas e Literatura Modernas na Universidade Nova de Lisboa e publicou em 2015 A casa das rosas, pela Editora Quetzal, uma das chancelas do grupo Bertrand, outro gigante do ramo editorial português. Porém, ter furado a bolha e ser editada por uma das grandes nunca foi garantia de uma “vida de escritora” no país.

O motivo, segundo Andrea Zamorano, não é mistério: a resistência dos leitores locais ao português do Brasil. “Quando cheguei em Portugal ainda vivi um certo fascínio pelo sotaque brasileiro, diziam ser um português com açúcar, citando o Eça de Queiroz. Mas nos últimos anos esse cenário mudou bruscamente”, conta Zamorano.

Andrea Zamorano ainda se recorda de os portugueses terem respeito pelos escritores brasileiros. Cita o caso do baiano Jorge Amado, que chegou a ser um autor-fetiche durante o Estado Novo, quando foi proibido em Portugal. “Ter um livro do Jorge Amado em casa, mesmo representando um risco de ser preso, era um status de resistência à ditadura”, lembra.

A escritora, que há quatro anos, pacientemente, espera uma resposta em relação a um segundo livro pela mesma Quetzal, diz que de português com açúcar, o sotaque brasileiro tem perdido o sabor para os portugueses, até mesmo na academia. “Há muitos livros que só foram traduzidos na versão brasileira e os professores são quase que obrigados a os sugerirem, mas sempre com a recomendação expressa de terem cuidado com o português do Brasil”, diz.

Apesar de publicada e reconhecida pelos pares portugueses, Andrea Zamorano também não vive dos seus livros. Empresária do ramo da gastronomia, a escritora ainda assim mantém-se otimista numa nova virada de rota e que os portugueses voltem a tomar gosto pelo português com açúcar. “Foi assim com a tapioca e o açaí, quem sabe não será com os livros”, brinca.

Aposta semelhante faz Jaime Mendes, que em 2024 fundou em Portugal a Editora Língua Mátria, com o principal objetivo de selar a paz entre as variantes do idioma, inclusive os sotaques africanos de Angola e Moçambique. Falando em sotaque, o carioca de Jaime pode até enganar, mas ele é português. Viveu 48 anos no Brasil, a maioria dedicada ao trabalho em editoras e livrarias.

Experiência que o levou a abrir anteriormente a Saudade, a principal exportadora de livros brasileiros para as livrarias portuguesas. Após dezenas de milhares de livros cruzarem o Atlântico, Jaime Mendes agora decidiu apostar na sua expertise editorial e transformar a Saudade também em livraria, com previsão de abrir as portas em Lisboa em 2025.

“Durante anos, as editoras e livrarias portuguesas faturaram com as minhas sugestões de autores brasileiros, talvez eu saiba o que faço”, provoca o editor e futuro livreiro, um português que fala com sotaque brasileiro, a prova de que as duas variantes podem se unir em nome da boa literatura.

Uma feira quase centenária

Um dos principais palcos aos escritores brasileiros em Portugal é a Feira do Livro de Lisboa (FLL), o maior evento literário do país que, por três semanas, ocupa os 23 mil metros quadrados do charmoso Parque Eduardo VII em Lisboa, à sombra da estátua da imponente estátua Marquês de Pombal.

A cada ano, a FLL tem batido os seus próprios recordes. Em 2024, levou 350 estandes, onde 140 editoras, distribuídas em 960 chancelas editoriais, apresentaram 85 mil títulos aos leitores. O número de visitantes também cresceu e ultrapassou na última edição um milhão de pessoas.

Entre as 140 editoras presentes, as centenas de modestos títulos independentes, por onde costumam transitar a maioria dos escritores brasileiros em Portugal, aproveitando o fato de a Feira do Livro não fazer distinção entre os bam-bam-bam e os nomes menos conhecidos do meio literário.

Neste ano, a Feira do Livro de Lisboa chega à 95ª edição, entre 4 e 22 de junho. A brasileira Urutau vai fazer a estreia no Eduardo VII, juntando-se a Gato Bravo e a Kotter. Quem também retorna à feira é o estande da Saudade, agora como parceira oficial da Embaixada do Brasil em Portugal, substituindo a Livraria da Travessa.