Ilustração por Karina Freitas

 

Para qualquer brasileiroa palavra “crônica” tem sentido claro e inequívoco, embora ainda não dicionarizado; designa uma composição breve, relacionada com a atualidade, publicada em jornal ou revista. De tal forma esse significado está generalizado que só mesmo os especialistas em historiografia se lembram de outro, bem mais antigo, o de narração histórica por ordem cronológica.

 

Se não pode haver dúvida quanto ao sentido generalizado da palavra, nota-se alguma hesitação quanto à classificação técnica da noção designada por ela. É ou não é a crônica um gênero literário? Críticos de valor negam-lhe essa categoria. A sua oposição fundamenta-se na ambiguidade desse tipo de composição que, segundo o pendor natural de quem o maneja, tende ora para o poema em prosa, ora para o conto, ora para o ensaio, ora para o comentário, e que, devido ao caráter passageiro dos próprios periódicos que o abrigam, parece irremediavelmente condenado à transitoriedade.

 

Acontece, porém, de algum tempo para cá, que essas obrinhas indefiníveis estão sendo reunidas em volumes com frequência cada vez maior e encontram grande aceitação por parte do público. Algumas destas coletâneas chegaram a ter várias edições e há mesmo umas que estão sendo adotadas em escolas.

 

O que talvez explique a ojeriza de parte dos críticos é que a crônica escraviza alguns dos melhores escritores, desviando-os dos gêneros nobres da literatura em que se notabilizaram. Logo depois de um precioso romance de estreia, O encontro marcado, Fernando Sabino se deixou devorar pela crônica; Rachel de Queiroz, autora festejada de O quinze, João Miguel, Caminho de pedras e As três Marias parece ter abandonado de vez o gênero que lhe deu fama, arrebatada pela crônica ela também. Há nessas críticas alguma censura aos próprios escritores que teriam preferido a facilidade ao esforço, o efêmero ao duradouro.

 

Censura-se ainda, na crônica, a desigualdade da produção. É claro que um escritor obrigado a entregar suas duas laudas toda semana (quando não dia sim dia não, no caso de jornais diários) não pode produzir outras tantas obras-primas. Mesmo esse gênero leve, que talvez nem seja um gênero, depende, com efeito, de inspiração. Mas as coletâneas que representam uma seleção feita pelos próprios autores, remedeiam em certa medida esse inconveniente.

 

Dito isto, tentemos distinguir algumas características comuns a todas as crônicas. Não serão muitas, mas existem.

 

O ponto de partida da crônica é sempre um aspecto da atualidade. Dentro desse critério poderá ser um evento de interesse geral ou um acontecimento estritamente particular, tanto uma revolução que vira tudo pelo avesso quanto uma ponta de conversa apanhada na rua. Quer dizer que o passado, assunto por excelência da crônica antiga, está por definição excluído da crônica moderna. Não que não encontremos, de vez em quando, crônicas evocativas; mas em todas elas, obrigatoriamente, as reminiscências são provocadas por alguma contingência do momento.

 

O tamanho da crônica é fixo: varia entre uma ou duas laudas datilografadas. Como no Brasil não se adotou ainda o sistema de contagem por palavras, fixa-se o número de linhas: de 30 a 60. É inimaginável uma crônica de dez páginas. Observe-se ainda que as crônicas de um autor possuem em regra geral o mesmo tamanho. Compreende-se: ele tem à sua disposição um cantinho de jornal que é sempre o mesmo, sempre a mesma superfície de papel branco a encher de preto. Nesse sentido a crônica é um verdadeiro exercício de estilo. As dimensões reduzidas do espaço disponível forçam o autor a conter-se, impedem o derramamento e a tautologia, constituem um antídoto da oratória patética e tropical.

 

Uma lei não escrita da crônica proíbe terminantemente o uso do jargão jornalístico. Organicamente ligado ao jornal, a crônica é como que um oásis de onde os chavões da imprensa, os clichês, as frases feitas, todas as características do estilo impresso, solene e empolado são rigorosamente excluídos. Embora ela mesma constitua por definição um gênero impresso, a crônica paradoxalmente é sempre uma amostra da língua falada, um repositório da linguagem coloquial e, por isso mesmo, uma verdadeira mina para os estudantes de português de outra nacionalidade.

 

Dentro de seus limites restritos a crônica não admite a tensão dramática. Nem por isso o seu tom há de ser necessariamente frívolo, ou alegre sequer, já que muitas vezes o seu pretexto é a morte de alguém. Ainda nestes casos, será uma despedida antes que um necrológio, procurando evocar o falecido em suas atitudes características de todos os dias, seus gestos familiares, seus ditos chistosos.

 

Como outra marca distintiva da crônica assinalemos o seu caráter inconclusivo. Ela não deve ter nem conclusão prática nem lição moral, a não ser pilhérica. Uma crônica moralizante condenaria o seu autor à pena máxima; a de ser jogada com enfado na mesa.

 

Não é a crônica um fenômeno inteiramente moderno; desde o fim do século passado ela foi praticada com espírito e graça por Machado de Assis, João Ribeiro, e alguns outros. Mas alcançou o seu florescimento completo graças ao desenvolvimento recente dos jornais, e mais ainda das revistas de tipo magazine. Uma de suas subespécies é a crônica radiofônica, praticada com brilho por Dinah Silveira de Queiroz e Genolino Amado; mas em suas variantes essenciais continua ligada ao periodismo impresso.

 

Por estarem os jornais e as revistas mais importantes localizados no Rio de Janeiro, a crônica é necessariamente metropolitana, mais particularmente carioca. Pode o autor não ser do Rio de Janeiro: Carlos Drummond de Andrade e Fernando Sabino são mineiros, Rachel de Queiroz cearense, Rubem Braga capixaba, Eneida paraense, Lêdo Ivo alagoano — mas a sua página reflete forçosamente o momento carioca. Existem alguns cronistas excelentes em São Paulo, tais como Luís Martins ou Helena Silveira; há outros bons espalhados pelo Brasil (Mauro Mota, Milton Dias, Mariazinha Congílio etc.) — mas, graças à obra dos citados em primeiro lugar, e mais de Paulo Mendes Campos, Sérgio Porto, Manuel Bandeira, Ribeiro Couto (os três últimos já falecidos) e vários outros, ela revela sobretudo o Rio de Janeiro visto por brasileiros de todos os Estados.

 

Acrescentemos outro predicado da crônica, completamente involuntário, que é o seu valor de documento sociológico. Enquanto o novo romance carioca vive voltado para os problemas psicológicos, focalizando as mais das vezes aspectos patológicos com particular ênfase no sexo, a crônica abrange a totalidade da vida: os costumes, as modas, os slogans, os problemas do momento, as preocupações urbanas, o tempo que faz, os assuntos mais corriqueiros. Sem dúvida alguma os historiadores do futuro hão de recorrer às crônicas para reconstituírem a fisionomia do Brasil do nosso tempo.

 

Já pensei em compilar com duas ou três dúzias de crônicas escolhidas a dedo uma antologia que formasse uma Introdução ao Brasil para turistas interessados e imigrantes alfabetizados. Se não cheguei a apresentar a ideia a nenhum editor amigo foi por convencer-me em tempo de que a sua realização seria obstada por um obstáculo sério. Com efeito, os viajantes sentimentais que deveriam ler essa coletânea com o maior proveito não sabem o português. Pois uma das características inconfundíveis da crônica é precisamente a sua quase intraduzibilidade. Tão enraizada está ela na terra de que brota, tão ligada às sugestões sentimentais do ambiente, aos hábitos linguísticos do meio, à realidade social circundante que, vertida em qualquer idioma estrangeiro, precisaria de um sem-número de eruditas notas de pé de página destinadas a esclarecer alusões e subentendidos, o que contrastaria profundamente com outra característica fundamental do gênero, a leveza.

 

Pode eventualmente a crônica conter informações e divulgar noções, porém só de maneira acessória, displicentemente, como quem não quer nada, mas nunca num tom informativo.

 

Agora a última exigência da crônica, e talvez a mais importante: para não sair do tom, o cronista deve ter talento, muito talento. Nada demonstra melhor a presença ou a ausência desse ingrediente indispensável do que a leitura das crônicas reunidas em volume por um autor: se lhe falta talento, aquelas páginas supostamente leves tornam-se pesadas que nem as de um tratado de Estatística, a sua atualidade metamorfoseia-se em anacronismo, os seus chistes caem no vácuo.

 

Feitas as contas, não hesitamos em considerar a crônica como um novo gênero da literatura brasileira, merecedor de interesse e de estudo.

 

 

Banal reinventado

 

Embora adoradapelo leitor brasileiro, a crônica frequentemente esbarra na má vontade de quem a vê como gênero literário subalterno.

 

Nas universidades, é tratada com desprezo, como se fosse matéria de jornal. Diferente do jornalismo, a crônica não tem compromisso com a objetividade nem com a impessoalidade, e com ele só tem em comum o meio, que é a imprensa.

 

Pesquisar por “Rubem Braga” no banco de teses da USP resulta em duas dissertações, e pouco mais que 30 dos 1404 resultados do termo “crônica” se referem à literatura.

 

Entre editoras, há algumas contrárias às compilações porque os textos estariam sendo republicados — como se o leitor fizesse pastinhas com colunas de cada cronista. Nos anos 1960, foram os próprios escritores que cuidaram de se publicar, pela Editora do Autor, criada por Braga e Fernando Sabino. Se hoje já não se questiona o livro de crônicas, ainda há narizes que se torcem diante de antologias.

 

É claro que a crônica se alimenta das pequenas coisas e se interessa pelo rodapé da vida, mas é injusto esquecê-la ao rés-do-chão, por onde passa, mas não fica. Vai de mãos dadas com a banalidade para reinventá-la, não reproduzi-la.

 

O ensaio de Paulo Rónai aqui publicado, que localizei em uma antologia de crônicas para o ensino de português, é uma palestra proferida na Universidade da Flórida em 1966. Além de contribuir para a escassa bibliografia sobre o gênero, tem curioso valor histórico, pois é anterior às análises clássicas de Antonio Candido e Davi Arrigucci. O intelectual húngaro, fisgado pela brasilidade da crônica, faz uma reflexão quase pioneira sobre seu caráter fugidio, embora seja otimista quanto à sua permanência. Muitos dos cronistas citados não sobreviveram à peneira do tempo, outros ainda estão por ser descobertos. Anime-se, pois: há muita crônica para ser lida!

 

 

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