Arte de janio santos sobre fotos de Rodrigo Lôbo e Hélia Scheppa

 

Li vários livrosabordando as Teorias do Jornalismo (inclusive alguns afirmando que tal teoria não existe) e, infelizmente, não encontrei em nenhum deles qualquer referência à dor e ao suor, ao assombro e à alegria, que invariavelmente estão presentes na relação estabelecida entre jornalista e personagem — principalmente quando esta relação ultrapassa um breve encontro permeado por algumas perguntas, um muito obrigada e um ilusório até logo. De fato, “personagem”, termo emprestado da literatura e que sobretudo tecniciza o Outro no momento em que o coloca como objeto de observação (e de desejo) do repórter, é ofuscado pela ideia de “fonte”, esta dominante nos livros e manuais adotados nas universidades e faculdades de jornalismo do País. O conceito parece engessar ainda mais o lugar tantas vezes indomável daqueles a quem buscamos no momento de escrever: “fontes são as pessoas que o jornalista observa ou entrevista (…) e que fornecem apenas informações enquanto membros ou representantes de grupos (organizados ou não) de utilidade pública ou de outros setores da sociedade”, escreveu o sociólogo norte-americano Herbet Gans. Já Gaye Tuchman, também socióloga, acredita que “Conhecer fontes traz status profissional (…) quanto mais alto seja o status das fontes e quanto maior o alcance de suas posições, tanto mais alto é o status dos repórteres.” São duas definições rápidas que aqui nos servem sobretudo para ilustrar o alcance insuficiente que caracteriza boa parte das análises no momento de falar sobre a interação entre quem escreve e quem é tema desta escrita. Não se trata de classificá-las como incorretas, mas sim de mostrar como nossa teoria ainda não explora a contento uma relação na qual os atores em questão, jornalista e fonte/personagem, nunca são estanques nem passivos. Eles podem facilmente sair de suas peles para transmutar-se naquilo o que o outro não conhecia — e é justamente aí que reside boa parte do assombro, da dor, do suor e da alegria.

 

Não encontrei Joicy em uma sala de imprensa, nem ela em qualquer momento me trouxe informações dos bastidores do poder que poderiam tornar-se manchete. Na primeira vez que a vi, ela estava em uma fila de mulheres transexuais que buscavam, no serviço público de saúde, adequar seus corpos masculinos ao feminino que traziam dentro de si. Conhecê-la também não conferia automaticamente a mim qualquer status profissional — isso aconteceria mais tarde, em consequência da reportagem da qual ela foi o principal foco(em novembro de 2011, a publicação foi ganhadora do Prêmio Esso de Reportagem). Neste caso, não se tratava de Joicy “em si”, mas do recorte midiático, realizado por mim, sobre a sua história (Joicy, é claro, é bem mais do que a história que contei). Na verdade, a senhora de Alagoinha (Agreste de Pernambuco), com seus peitos surgindo na camisetinha, a cabeça quase careca, o corpo fortalecido pelos anos de trabalho árduo na roça, nas cozinhas e em seu pequeno salão de beleza, atraía olhares justamente por não encaixar-se em um modelo socialmente compartilhado e respeitado de mulher. Permanecer tantas vezes ao seu lado me deu a medida (ainda que tangencial) cruel do tribunal ao qual ela era exposta cotidianamente. Em vários locais nos quais entramos juntas — restaurantes de beira de estrada ou de postos de gasolina, supermercados, lanchonetes e no próprio Hospital das Clínicas, onde a cirurgia de redesignação sexual foi realizada, era comum ver as pessoas primeiro se espantando, depois rindo e fazendo troça. Sua cuidadosamente cultivada aparência era tanto seu orgulho quanto, em relação ao outro, sua marca de desprestígio mundano. Uma realidade compartilhada por milhões de gays, travestis e transexuais em todo o mundo. Senti minimamente esse desprestígio sendo transferido para mim, o que me trazia algum constrangimento principalmente por “forçá-la” a passar por aquilo com uma espectadora — eu — ao seu lado. Para Joicy, aparentemente, não havia grandes dramas. É claro que ela se importava com os olhares, mas, acredito, a vida contínua naquele modo no qual era ela o objeto do risível criou uma carapaça autoprotetora materializada nas bermudinhas jeans e camisetas que ela tanto apreciava. Suas reações eram as mesmas: ou fechava o rosto ou simplesmente, como era comum em vários momentos, desligava-se do ao redor para passear somente dentro de si. Era certamente um lugar mais confortável, já que desprovido da ironia dos outros. Esse alheamento (provável resultado das condições de vida e da socialização da ex-agricultora) foi algo que me fascinou, me irritou, me comoveu, me espantou. Foi também uma das mais difíceis características de Joicy com a qual eu precisei aprender a lidar — e nem sempre consegui. Brigamos várias vezes, em discussões nas quais não estava claro quem era a antagonista (mas, de fato, existia uma?). Censurei-a outras tantas, principalmente pelo modo pouco suave com o qual cuidava de si, pelo modo pouco suave com o qual lidava com a família. Hoje, vejo que ali eram os meus valores os atingidos negativamente, e por mais que eu tentasse domar minha reação e minha dor, nem sempre era possível mantê-los distantes do ambiente da pauta. Como apagá-los ao me ver em situações permeadas por tantos conflitos e intimidade?

 

Não critico quem busque a relação mais distanciada que deve ocorrer entre jornalista e personagem, busca esta fortemente recomendada por manuais de jornalismo e na prática profissional. Em uma ótima entrevista publicada no livro New new journalism(2005), o repórter Leon Dash, do Washington Post, ao falar de seu imenso mergulho da vida de Rosa Lee (ele a acompanhou durante quatro anos para realizar uma reportagem), diz que sempre manteve uma “distância profissional” tanto da personagem quanto de seus familiares. Assim, apesar de várias vezes ser interpelado, ele nunca deu qualquer dinheiro àquela família atingida pelas drogas e pela pobreza, diferente de meu caso com Joicy. Dash ainda conta que, quando produziu a reportagem When children want children, sobre adolescentes grávidas, recusou um presente de dois jovens que ele tinha entrevistado. Ao explicar sua atitude, ele diz que prefere não cruzar a linha ética em projetos que estão em andamento. “Foi difícil, mas eu não podia aceitar o presente porque eu estava trabalhando. Eu não queria que eles me vissem como um amigo. Eu sou um repórter (grifo do autor)”.

 

É claro que eu já precisei acionar essa distância várias vezes em relação a vários personagens, muito em nome da matéria e muito, jornalista nenhum pode negar tal uso, para me proteger. Mas, no meio da rua, no meio das casas, no meio da vida das pessoas, as coisas não funcionam bem assim — e fico pensando no quanto Dash, de certa maneira, também pode ter afastado e magoado os adolescentes ao negar o presente. Afinal, não era algo vindo de uma instituição, político, empresário. Provavelmente, não era algo destinado a “comprá-lo”, como acontece tantas vezes nesse meio, e sim escolhido e pensado para ele por pessoas que, dentro da cruel hierarquia mundana, estavam socialmente em desvantagem. Era, enfim, uma maneira horizontal de aproximação: talvez os jovens se sentissem presenteados pela atenção do repórter e queriam simplesmente retribuir.

 

No meu caso, como poderia, pensando na questão de dar ou não dinheiro a Joicy, deixá-la com apenas alguns trocados no bolso quando, após dois dias a acompanhado, eu voltava para casa e ela permanecia, recém-operada, sozinha e sem condições de trabalhar? Como não levá-la a um supermercado e fazer compras para ela depois de ver que o interior de sua geladeira possuía apenas algumas fatias de abacaxi, água e um pimentão? Como não sentir o coração doer de raiva quando, em uma manhã, após ela acordar de madrugada para ser atendida em um hospital na capital, eu a vejo pedir um pouco de café ao médico que faria sua cirurgia e ouvir como resposta um seco “café se toma em casa”? Como não sentir decepção no momento em que Irene, mãe idosa da ex-agricultora, a visitou pela primeira vez após a cirurgia e foi quase totalmente ignorada pela filha que ela sempre julgou filho? No final, o que é mais importante? Respirar fundo e colocar esses “ruídos” de lado em nome do preconizado e quase mítico distanciamento? Ou torná-los parte de uma escrita que, de saída, se reconhece múltipla de sentidos e, mesmo, imperfeita? Nem sempre eles foram levados para a reportagem, como se verá. Talvez porque tudo estivesse fresco demais ou, é claro, eu necessitasse daquele susto para depois entender melhor o papel do tapa — e do inesperado.

 

As situações descritas, possivelmente prosaicas em outras circunstâncias, trouxeram à tona meus próprios limites humanos, éticos e profissionais. Este livro foi pensado para, finalmente com um distanciamento mais palpável, refletir sobre as proximidades e distanciamentos que se impõem entre jornalistas e personagens, quem observa e quem é observado, entre quem quer ouvir e quem espera ser ouvido. Nesse “confronto de diferenças”, é importante marcar também a solidariedade estabelecida, os necessários embates e debates que ajudam a repensar lugares e papeis à primeira vista estabelecidos, mas que vão sofrendo contínuos abalos durante a reportagem e, como no caso de O nascimento de Joicy, depois de sua publicação. É algo próprio do jornalismo de investigação: muitas vezes, são as consequências da matéria pública o verdadeiro ouro da história.

 

* Esse texto é uma adaptação do prefácio do novo livro da jornalista

 

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