Tradução: Eduardo Cesar Maia

Para Ortega y Gasset, o homem-massa proclama o direito à vulgaridade

Alguns anos atrás, quando ainda éramos pós-modernos, a leitura de A rebelião das massas não opunha muita resistência à sua atualização. Permitia ao leitor, inclusive, escolher entre duas alternativas: obedecer a José Ortega y Gasset nas instruções de uso que, estrategicamente, inseriu aqui e ali para guiar seus leitores, a partir das muitas alterações no processo de edição, até as afirmações expressas que, insistentemente, destacam o valor profético da obra e a importância da segunda parte; ou, então, afastar-se levemente do filósofo e transformar as massas orteguianas em “maiorias silenciosas”, público, sociedade-rede etc. A primeira leitura enfatizava os temas da Europa, da Espanha, da nação ou do poder e, portanto, baseava seu modelo atualizador no desgastado tema da profecia orteguiana; a segunda convertia a atualização em recepção e mantinha uma atrativa distância com as teses de Ortega, permitindo assim interpretações “à altura dos tempos”.
Ambos os tipos de leitura eram, e são, perfeitamente válidos, válidos e cômodos: leituras adequadas, verossímeis – politica, social e filosoficamente corretas, mas confortáveis em seus desejos de atualização. Um dia talvez possamos voltar às fascinantes leituras cômodas, mas a comodidade agora é impossível. Por isso, talvez o mais proveitoso seja ler A rebelião das massas não à altura dos tempos, mas dos dias, com todos os problemas e incomodidades que isso nos causa, destacando a distância e pensando a partir dela.
“O futuro pertence às massas”, escreveu Don DeLillo em Mao II. O problema é saber a que futuro e a que massas nos referimos: às de Ortega? Às novas massas? É que talvez nunca, como agora, tenhamos estado simultaneamente tão longe e tão perto d’A rebelião das massas – o conceito de nação convertido em problema de Estado, a unidade europeia sem sucesso em atrair por completo os cidadãos, a dialética entre os conceitos de massa e minoria cada vez mais confusa, pois não se sabe ao certo quem é massa e quem é minoria, num intercâmbio contínuo de papéis. Os temas e problemas de Ortega em grande parte permanecem os mesmos, mas as respostas a muitas das questões colocadas por ele já não nos servem – pois já nos serviram. São as perguntas, no entanto, que mantêm todo seu vigor, sempre e quando modifiquem seu contexto. Por isso, é evidente que às excelentes interpretações e atualizações de Ortega deve ser somada uma recepção não só à altura de nosso tempo, mas de nossas semanas, dias ou horas.
Como ler sem sentir calafrios afirmações como “as novas massas se encontram com uma paisagem cheia de possibilidades e, além disso, segura”; “A América não sofreu ainda”; “As casas, cheias de inquilinos. Os hotéis, cheios de hóspedes. Os trens, cheios de passageiros”. De fato, tudo está cheio: trens, especialmente os suburbanos, e os arranha-céus, e os ônibus, e o metrô, sejam os de NovaYork, Madri ou Londres. Ortega tem razão, “A multidão, de repente, tornou-se visível”, mas por motivos muito diferentes do que ele declarava.
Atualmente, devemos ter muita cautela com tudo o que afeta as massas, aglomerações e multidões. A insistência de autores como Baudrillard ou, mais recentemente, Sloterdijk em O desprezo das massas – em que, aliás, Ortega não é mencionado uma única vez –, na invisibilidade e incorporeidade das massas contemporâneas tinha seu sentido em um contexto claramente definível, um contexto muito atual, mas que a cada dia vai nos parecendo mais alheio: quase esquecemos que o homem-massa já não se reúne, ou que se expressa mediante seu silêncio, ou que a continuidade funcional explica a identificação com os novos heróis, tornando as supostas elites nos melhores representantes do caráter massificado.
Mas o nosso esquecimento é compreensível: como não o seria quando, novamente, a multidão se faz visível, ainda que às vezes os próprios meios – de comunicação de massa, é claro – tentem ocultar seus corpos? Na realidade, esse é o problema: as massas tomaram corpo e não se sabe bem o que fazer com ele, como se só as elites pudessem tê-lo. Existem massas e massas, umas têm corpos e outras não, umas são visíveis, as outras são somente números e estatísticas. Ambas são reais e em sua relação dialética devem ser movidas toda atualização e releitura d´A rebelião das massas.
Dizia Ortega que massa é aquele que “se sente como todo mundo, e, no entanto, não se angustia”, e acrescentava que o homem-massa é massa não por multitudinário, mas por inerte. Inerte, mas sem angustiar-se, feliz em sua estupidez. Em Cão amarelo, um de seus últimos romances, Martin Amis refere-se a um novo tipo humano que parece ter encontrado seu habitat natural nas sociedades contemporâneas: o imbecil de alto quociente intelectual. “Espertos, desprovidos de todos os sentimentos e de toda empatia”, escreve Amis; os imbecis de alto QI se caracterizam por serem “supercontemporâneos em sua aceitação de todas as mudanças culturais e tecnológicas: uma aceitação, no entanto, tão carente de rechaço como de sorrisos”. Excelente tradução da barbárie do especialista, do “senhorito satisfeito” ou das elites massificadas que Ortega tinha analisado. São tais rechaços e sorrisos o que se deve recuperar, sobretudo para que se perceba com nitidez suficiente os novos corpos da massa e para que se deixe de uma vez de sonhar em ser “senhoritos satisfeitos”, na expressão do próprio Ortega, que desfrutam do legado da civilização sem ter a menor ideia de como foi conquistado e, por ignorância das condições que o geraram, acabam por destruí-lo.
Porque o fato é que talvez seja essa, a figura orteguiana do “senhorito satisfeito”, a que maior atualidade continua apresentando. Herdeiros, carregados de passado, fundidos na memória e sem desejos explícitos de escapar dessa satisfação depressiva: tal é muitas vezes a forma como nos vemos. E o problema é que a solução ainda não se vislumbra completamente.

Domingo Hernández Sánchez é Professor de Estética e Teoria das Artes na Universidade de Salamanca

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