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A condição humana é histórica, mostrou Erich Auerbach. Mas, no XXI, ela aparece não mais, ou não mais só, na sua representação em um bem imaterial de proposição artística, como a literatura, mas na própria expressão "proposição artística", que engloba, justamente, algo que vai além de um produto acabado, um bem vendável. Engloba um fazer, um acontecer.
Há, no Contemporâneo, um enfraquecimento da hierarquização, modelo estruturante do Moderno. Isso se vê tanto nos eixos econômico e político (os "centros"), como na esfera específica de produção, distribuição e consumo de bens artísticos, três instâncias que agora se interpenetram. 
 
Uma consequência dessa quebra do poder hierárquico a afetar diretamente os bens artísticos é o surgimento do precariado. O termo é da Ivana Bentes e nos descreve, todos nós. Uma vez que a proposta artística é levada adiante sem remuneração ou com muito pouca, seus proponentes são em geral algo mais: fazem serviços gerais e participam de saraus literários; compõem música e atendem em uma agência de correio. Ou, como eu, escrevo, desenho, faço palestras teóricas sobre o que escrevo e desenho, e tenho uma aposentadoria de jornalista, que também não é grande coisa. Ou também como Maria Valéria Rezende, que é escritora e freira católica, vivendo em um alojamento de sua organização religiosa e sem condições próprias de moradia independente.
 
É dela, e de mim, que tiro alguns exemplos da presença dessa nova condição de vida dentro da literatura.
 
Essa situação existencial do proponente artístico é, ao meu ver, benéfica. Primeiro, porque ele estará mais apto a partilhar sua proposta artística com outros "autores", acelerando, portanto, uma transição que acho irreversível (a da reafirmação de que somos todos potencialmente criadores). E, segundo, porque ele terá na sua experiência de vida justamente vida, o que pode faltar ao artista "profissional", que faz da arte e do meio artístico a mola propulsora de toda sua vida, em vez do contrário: ter sua vida, e a da sua comunidade, como propulsores das suas propostas artísticas.
 
O tratamento do espaço em textos contemporâneos
 
Acho que essa condição de vida fica visível no tratamento dado ao espaço, dentro de obras literárias como as que cito aqui.
 
- Há um espaço sem fronteiras fixas ou impermeáveis. Ao contrário, o espaço é temporário e tem margens porosas.
- Há um espaço rizomático, sem centro pré-estabelecido ou forte, sem organização interna e sem definições de uso prévias.
- Há um espaço tolerante, com a concomitância de diversidades.
 
O tratamento do tempo nos textos contemporâneos
 
A não hierarquização do Contemporâneo é um fardo pesado. A pessoa não tem um "melhor-do-que-eu" a aspirar e também não consegue se ver como melhor do que ninguém. Isso é difícil e implica em uma nova noção do tempo, já que não há metas a seguir. O tempo do Contemporâneo é mais lento do que o do Moderno. Acho que isso está visível nos seguintes pontos, que se ampliam até abranger o próprio leitor:
 
- Não há uma hierarquização entre personagens. Um não é necessariamente mais importante do que outros, então seus tempos de ação, ainda que diversos, coexistem.
- Não há uma hierarquização entre narrador e personagens. O narrador não necessariamente sabe de antemão o que vai acontecer ou sequer tem muita certeza a respeito daquilo que narra, então ele vai e volta, hesita.
- Não há uma hierarquização entre proponente do texto ("autor"), e leitor. O proponente sequer se coloca como única fonte do texto, dividindo sua "autoria" com objetos achados, imagens, citações e depoimentos. Então, o tempo do texto é cortado, fragmentado. 
 
A literatura que aqui cito traz uma ação sem dono, que acontece em um espaço temporário e em um tempo hesitante. Não há um protagonismo, um "dono", seja do espaço, da ação, ou que tenha a ilusão de controlar o tempo dando a ele um "fim". 
 
Na literatura que aqui cito, vários tipos de discurso (objetos achados e citações, no caso da Valéria; letras de música e citações, no meu caso), juntos, apontam uma unidade que não o é, por ser justamente quase aleatória, inacabada e inacabável. Nada aponta para uma conclusão reconfortante, não há imposição de um sentido único. 
 
No texto do novo romance que venho de terminar, dei uma busca no word e obtive cento e treze "eu acho", vinte e um "não sei". O proponente do texto (eu) não é autoritário, o leitor não é plateia. 
 
Eu e o leitor somos partes de uma rede de circulação de informação e temos hábitos culturais em comum. Tudo muito efêmero e sem margem. São, mais uma vez, redes horizontais, no sentido de que não formam hierarquias. Eu e o leitor somos tratados como iguais e valemos a mesma coisa nessas redes. Somos parte de uma comunidade cultural (não econômica, geográfica, funcional etc.). E de troca, não de imposição. Temos um diálogo em andamento. Caso a proposta artística do texto seja aceita, nós dois juntos, eu e o leitor, teremos uma experiência estética. Modifico ele, ele me modifica e modificamos juntos nossa compreensão e nossa atuação no entorno.
 
Se não, não.
 
Agora, os trechos:
 
Uma amarelinha em que fico, uma perna, eu também no ar à espera de uma completude prometida pelos vários episódios que crescem de tamanho, mas que nunca de fato acabam. E com uma autoria que fica cada vez mais para trás. Ou melhor, uma autoria que vai se espalhando por várias casas dessa amarelinha, eu mesma virando autora. Se não de uma eneida, pelo menos das histórias de putas de um João que nunca termina de fato o que conta, e que vai ficando, ele também, cada vez mais para trás. Os detalhes, aqui, são na maioria meus.
(Elvira Vigna, "Como se estivéssemos em um palimpsesto de putas", inédito)
 
Vai, piá, vai ver se a Baiana está aí, que ela é de lá de Fortaleza, é lá de Minas. Naquela hora não percebi, mas tinha acabado de descobrir outra coisa preciosa pra os meus dias de desgarramento que eu ainda nem sabia que já haviam começado. Estava momentaneamente esquecida de Norinha, do tabuleiro de xadrez, meio zonza com tudo o que ouvia e me prendia àquele instante e lugar.
(Maria Valéria Rezende, "Quarenta dias", Alfaguara, 2014)
 
Vou citar mais uma mulher. Não é um acaso. O campo de bens artísticos é dominado por homens e eles são perdedores na quebra da hierarquização do Contemporâneo. Detinham o poder. Continuam tentando mantê-lo, ainda que fantasmático. Daí suas propostas apresentarem menos as características que cito aqui.
 
A terceira mulher não é uma escritora. É a cineasta Sofia Coppola. Há uma cena, no seu filme Somewhere (de 2010), que considero um exemplo acabado da condição contemporânea (foto acima). O espaço é uma piscina. Um personagem boia. E vai boiando, empurrado pelo movimento da água, até desaparecer à direita. O tempo é nenhum. O espaço não tem margens nem organização interna (é uma "fatia" de algum lugar). E a ação é inútil.
 
Sofia Coppola também não faz parte da definição estrita do precariado de Ivana Bentes, já que é rica. Tem, contudo, no próprio sobrenome famoso a experiência de quebra de hierarquia. É tão ou mais importante que seu pai. O mesmo sobrenome lhe impõe a experiência de autoria partilhada. É uma Coppola, não a única. E tem, na biografia, o pertencimento a redes horizontais: as escolas e os lazeres dos adolescentes "abandonados" das famílias dos muito ricos e famosos.
 
Nos três exemplos citados, o meu, o de Maria Valéria e o de Sofia Coppola, há uma estratégia de desmoronamento da espetacularização como única forma de preservar a condição humana depois do Moderno.
 

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