A foto acima é de Ana Maia
É, Miró, está tudo bem, mas tá esquisito. Não necessariamente bem, se pensarmos que o Recife se encontra/se perde no meio de outro inverno alagado, parado e desprotegido do frio, ainda que a sensação térmica seja mais emocional que qualquer outra coisa (você bem sabe: é o céu nublado, e não os termômetros, a causar calafrios por aqui). E essa semana ainda teve um jornal anunciando que notícias piores avançavam em nossa direção. Não li o conteúdo da reportagem, mas devia ser outro desdobramento da Crise, sempre a Crise, de novo a Crise, substantivo que de comum virou próprio, com maiúsculas, primeiro nome a ser assinado quando pensamos em 2015.
(É a Crise como monstro, como vampirismo, como novo Ebola, como nova onda de viroses nas emergências públicas e privadas, como motorista desgovernado a queimar as paradas e os corpos dos passageiros, como a maré cheia dessa época do ano, como o monóxido de carbono de manchetes sobre uma tal corrupção, que de tantos envolvidos vai ficando anônima, de todos e de ninguém. A Crise como visitante indesejada, que nos obriga a dizer: “entra, quer sentar?”. É a Crise tal e qual aquele grande vômito que você uma vez nos avisou estar por trás de todo vazio súbito num ônibus lotado)
“Está tá tudo bem, mas tá esquisito” –– estava escrito num muro de alguma cidade brasileira, numa foto que uma amiga compartilhou ontem cedo no Facebook. Na hora, pensei: bem que a frase poderia servir como epígrafe do livro novo que você lança amanhã, pela Mariposa Cartonera. Uma coleção de novos poemas com um título que tem pouco de dedicatória e muito de tentativa de diálogo, de entendimento com o Divino, com a gente, com você mesmo ou com quem estiver na sua frente na hora, aDeus. É compreensível: a gente sempre reza para quem está à mão.
Sim, você pode dizer que está tudo esquisito mesmo, mas que as coisas não andam nada bem. E teria toda razão. Mas sua Crise é outra: nos últimos meses, você perdeu a mãe e a sua Muribeca se transformou em algo como a Comala de Pedro Páramo, vazia de gente e superpovoada de fantasmas. E, Miró, quem há de enterrar esses prédios-caixão que agora falam sozinhos? Teve ainda uma internação esquisita sua, que deixou tanta gente assustada, com notícias desencontradas, como sempre são as notícias Grandes, aquelas que falam de partidas, de chegadas ou de “pausas”. Mas ainda bem que isso passou e eu já lhe vi pelas redes sociais sorrindo numa tarde de sexta-feira. E numa tarde que até fez sol de novo.
aDeus é um livro que nos chega certeiro nesse inverno da Crise, para nos lembrar de que há outras crises em andamento, talvez mais sérias, talvez mais palpáveis, mais de tijolo, mais de asfalto, e já há muito tempo. Crises de falta de delicadeza, de excesso de anonimatos, de “não ter ninguém para se despedir na rodoviária”, de Deus de pouco e de Deus de muito, que “quando quer opera até sem bisturi”. Não é a crise de consumo dos jornais nem a do governo, mas a de compreensão de desertos: “alguns desertos/ não precisam de camelos alguns desertos/ não precisam de um copo d’água/ precisam de abraços/ e a saliva de um beijo/ alguns desertos/ não ter força/ nem de abrir a porta/ mesmo com a chave na mão/ alguns desertos/ nem portas têm”. É, Miró, dizem que a Crise é grande, mas querem estreitá-la. E você bem sabe que não é bem por aí.
Seu novo livro faz a gente repensar e recondicionar o momento em que vivemos, nos ajuda a ser menos alarmistas e mais reais. Você não mudou seu discurso, é que estamos todos um pouco mais assustados no decorrer desses meses. É que precisamos de uma crise mais focada no humano e menos em números. Mas não anda sendo fácil. Crise não pode ser caos, tem de ser resolução/revolução. Do caos viemos e para ele, todos, voltaremos. É nossa contingência. Para quer ter medo de crises, então, se já somos filhos do caos? Ah e domingo eu postei um dos seus poemas no meu perfil do Facebook – aquele que diz: “as pessoas estão passando/para mais uma segunda-feira/ eu sentado no banco da praça/ ainda sou domingo” – e alguém comentou: “Miró é nosso Mário Quintana”. Não poderia ter havido comparação melhor: é que eles, a Crise e o inverno passarão, e você passarinho.
Lançamento de aDeus, de Miró: quinta, 6 de agosto, às 19h no Bar Mamulengo (Rua da Guia, 91, Bairro do Recife).