Homme de Plume: O que aprendi quando deixei de ser escritora e me tornei um escritor
Tradução de Carolina Morais
O plano me fazia sentir desonesta e repugnante, então eu demorei bastante para enviar meu romance sob um nome masculino. Mas, sempre que eu lia um estudo sobre preconceitos inconscientes, ficava um pouco mais perto de fazer essa tentativa.
Criei uma nova conta de e-mail com um nome – digamos que fosse George Leyer, apesar de não ter sido – e deixei-a vazia. Semanas se passaram sem que eu recebesse qualquer resposta dos agentes que estavam com meu trabalho. Li outro estudo sobre como as pessoas avaliam candidatos a vagas de emprego que creem ser mulheres e o quanto elas gostam mais dos candidatos que acreditam ser homens.
O que eu estava pensando em fazer ia totalmente de encontro às regras, era o oposto de todos os conselhos que escritores recebem, mas eu não estava me sentindo uma escritora, e há semanas não escrevia. Até o inverno passado, eu nunca fora acometida por um sério bloqueio criativo ou tivera qualquer relutância a trabalhar. Uma página em branco era para mim como o momento em que as luzes se apagam no teatro – até o dia em que isso não aconteceu. Eu passava mais tempo chorando ao telefone do que escrevendo e não fazia ideia de como voltar a trabalhar. Cada parágrafo era uma negociação – meu instinto me levava para um lado, depois vinha um vento forte na direção contrária – não faça isso, você vai confundir as pessoas. Ninguém quer ler esse tipo de coisa.
Então, numa opaca manhã de sábado, eu copiei de minha conta de e-mail as páginas iniciais de meu romance e minha carta de apresentação e as colei na conta de George. Pus o endereço de um dos agentes a quem eu pretendia enviar uma carta-consulta sob meu próprio nome. Esperava que a resposta demoraria algumas semanas para chegar, se é que chegaria. Comecei a preparar outra carta, checando os requerimentos para o envio no site da agência. Quando cliquei de volta, já havia uma nova mensagem, a primeira na caixa de entrada vazia. Sr. Leyer. Encantado. Empolgado. Por favor, envie-nos o manuscrito.
Quase todos os editores só aceitam propostas por meio de agentes, então eles são mediadores essenciais para qualquer pessoa que deseje vender um livro no mercado tradicional em vez de se autopublicar. Há várias formas de atrair a atenção de um agente, porém o jeito mais acessível é o envio de uma carta-consulta. A carta descreve o romance, o autor, e geralmente traz as primeiras páginas do manuscrito em si – o equivalente ao que o leitor pode encontrar ao folhear um livro em uma loja. Os agentes podem deixar o silêncio falar por si, escrever de volta com uma negativa, ou pedir para ver o romance.
Enviei as seis cartas que planejava para aquele dia. Dentro de 24 horas, George tinha cinco respostas – três solicitações de manuscrito e duas rejeições acolhedoras elogiando seu empolgante projeto. Em contraste, sob meu próprio nome, a mesma carta e as páginas enviadas 50 vezes haviam me rendido um total de duas solicitações pelo manuscrito. Senti um pequeno frisson de prazer ao ser chamada de “Sr.” nas respostas, e depois tive raiva. Três solicitações de manuscrito em um sábado, e nem mesmo durante o horário comercial! Os julgamentos sobre meu trabalho que pareciam tão consistentes quanto as paredes de minha casa haviam se tornado insignificantes. O problema não era meu romance, era eu – Catherine.
Quis saber mais sobre como os Georges do mundo vivem, então eu mandei mais. Dados totais: George mandou 50 cartas, e seu manuscrito foi solicitado 17 vezes. Ele é oito vezes e meia melhor do que eu na criação do mesmo livro. Pelo menos um terço dos agentes que leu sua carta queria ver mais do material, quesito no qual meus números nunca realmente saíram de um entre 25.
Era a segunda vez que eu passava por esse processo. Escrevera um romance antes, e o havia distribuído. Tais cartas receberam respostas bastante satisfatórias, apesar de ninguém ter me oferecido representá-lo. Todos os agentes que o leram disseram que não era ruim, mas tinha um problema essencial em sua estrutura. Não consegui consertá-lo, então deixei o livro pra lá. Meus contos também costumavam receber respostas decentes – alguns foram publicados, a maioria foi rejeitada com uma resposta detalhada do tipo “por favor, mande mais”. Imaginei que estava dando duro, mantendo a persistência, tendo mais ou menos a mesma experiência que qualquer outro jovem escritor teria.
Às vezes era difícil deixar de lado algo em que acreditava. Mas, em geral, eu confiava no que me diziam sobre meu trabalho.
Esse novo livro era diferente. Eu sabia que era melhor que meu projeto anterior – mais ambicioso, mais interessante, mais brincalhão, mais empolgante. Meus amigos escritores o amaram e o enviaram a seus agentes por mim, antes mesmo de eu começar a enviar cartas-consulta sob qualquer nome. As respostas chegavam pouco a pouco com várias rejeições similares, em sua maioria: “bela escrita, mas sua personagem principal não é muito corajosa, não é?”, e, claro, muito silêncio. Ainda esperançosa, comecei a enviar cartas às cegas, esperando ter ao menos alguns entusiásticos leitores. Dia após dia, o insignificante silêncio tornava-se um silêncio significativo. As poucas rejeições por escrito não citavam um problema coerente. Meus amigos escritores ainda me garantiam que era um bom livro, que eu devia acreditar no meu trabalho, que boas notícias logo logo chegariam. Elas não chegaram.
Ser rejeitado é algo natural na trajetória do escritor. No entanto, o que me desanimava era a chance de isso não ser um problema superficial, mas um astigmatismo na minha compreensão da natureza humana – que eu tivesse escrito algo melhor, mas de alguma forma menos expressivo, que pudesse fazer boas frases, mas o que eu achava que as pessoas faziam não era o que faziam de fato. Cada carta de recusa mencionava a “bela escrita”, que é a pintura na lataria, mas não o motor do livro. Comecei a escrever parágrafos curtos e enraivecidos, e depois a não escrever mais nada. O problema alcançou cada parte de minha mente – eu não só havia escrito o livro errado, mas eu era a pessoa errada.
Foi então que George ganhou vida. Eu o imaginava como um tipo parecido com um Michael Fassbender do mal, bebendo whisky e andando por pátios de manobras de trens à noite enquanto eu trabalhava. A maioria dos agentes só recebia mensagens minhas ou dele, mas eu às vezes fazia um pouco de justaposições. Um agente que me mandou uma carta-modelo de recusa enquanto Catherine, não só queria ler o livro de George, mas em vez de rejeitá-lo perguntou-me se podia encaminhá-lo para um agente superior. Até as rejeições de George eram polidas e generosas em um grau que teria significado tudo para mim, exceto por não serem para a eu verdadeira. O trabalho de George era “engenhoso”, “bem construído” e “empolgante”. Ninguém mencionava que suas frases eram líricas ou se seus personagens principais eram destemidos. Algumas pessoas enviaram críticas generosas e atenciosas, o que me fez sentir tanto grata quanto desconfortável por minha desonestidade.
Não cabe a apenas uma pessoa a responsabilidade pelo efeito mais amplo do conjunto de respostas ao meu trabalho, e, presumivelmente, nenhuma delas queria ser machista. Saí desse experimento com algumas teorias sobre o abismo que se assomava.
Em primeiro lugar, os agentes podem estar agindo tanto consciente quanto racionalmente. Se para eles é muito mais fácil vender um livro por meio de um George, ficariam mais interessados no trabalho de George, e seriam mais educados e encorajadores com ele. Em segundo lugar, não é normal que um homem escreva um livro com uma protagonista, então isso talvez tenha conferido destaque ao romance. (Entretanto, duvido que exista qualquer efeito equivalente para uma mulher que escreva do ponto de vista de um homem, então isso é um gélido consolo).
Em terceiro lugar: com meu nome, talvez meu romance fosse tomado como “Ficção Feminina” – designação repulsiva para um gênero respeitável –, mas não o que eu estava escrevendo. Se um ou uma agente esperava por isso, não é de surpreender que me daria as costas depois da primeira ou segunda página. Não se espera que um George escreva Ficção Feminina, então ele foi abordado em seus próprios termos.
Por último, talvez os agentes fossem inconscientemente mais amigáveis com George. O preconceito inconsciente é algo difícil de se superar. Certa vez me encontrei com um agente cara a cara, e nós discutimos sobre as primeiras 20 páginas do romance. Ele me disse que estava bom, mas era tão ambicioso que ele duvidava que eu conseguiria alavancar todo o livro a esse nível; então, se o tivesse recebido via correios, ele teria respondido com uma carta de recusa. A diferença poderia estar na avaliação instintiva do quanto era provável que um George conseguiria realizar um projeto ambicioso.
Até certo ponto, eu estava sendo condicionada como um animal de laboratório contra a ambição. Meu livro estava recebendo pelo menos algumas daquelas rejeições porque era grande, não porque era ruim. George, imagino, estaria recebendo seus “engenhosos” e "empolgantes" durante todo o tempo e estaria escrevendo algo enorme agora. Na teoria, os resultados de meu experimento são vindicativos, mas sinto-me furiosa por ter passado tanto tempo naquela gaiola ridícula, onde tantas pessoas com o tipo errado de nome exaurem suas energias e inteligência. Meu nome – Catherine – soa tão branco e tão relativamente abalizado quanto qualquer nome inconfundivelmente feminino, então eu só posso presumir que modificar outros traços de classe e etnia causariam efeitos ainda mais espantosos.
Os próprios agentes eram tanto homens quanto mulheres, o que não é de surpreender, pois o preconceito raramente conseguiria prejudicar as pessoas se não estivesse disseminado. Não é algo que alguns indivíduos fazem a todos os demais, mas atravessa todas as formas em que pensamos sobre nós mesmos e sobre os outros.
Sempre que números da VIDA (organização que apoia mulheres em artes literárias) aparecem contabilizando quantos homens e quantas mulheres escrevem para publicações literárias e as pessoas discutem a discriminação no mercado editorial – será que as mulheres se promovem com menos frequência? Desanimam-se com mais facilidade? São menos ousadas, anseiam mais pela apreciação, preocupam-se menos com dizer a verdade aos poderosos? Preferem tópicos pequenos e pequenos moldes? –, começo a pensar que alguma fatia volumosa dessas mulheres deve ser expulsa ou enganada antes de alcançar um trabalho maduro.
As matérias sobre os resultados da VIDA geralmente focam no tipo de tratamento que as autoras renomadas recebem. Em Bad Feminist, Roxane Gay escreve sobre a forma como as mulheres nos mais altos níveis são escanteadas – “onde Jonathan Frazen perdeu o Pulitzer em vez de Jennifer Egan ter ganho o prêmio”. No ensaio The Second Shelf, Meg Wolitzer fala da geração de escritoras eminentes que amadureceu em um período no qual o interesse em histórias relacionadas à vida das mulheres era cada vez maior – ela lista Toni Morrison, Joyce Carol Oates, Margaret Atwood, Doris Lessing, Marilynne Robinson. Durante a fase de aprendizado em suas carreiras, a cultura mais ampla estava pronta para vê-las como relevantes, abalizadas, e elas foram.
O período intermediário também é importante, no qual as escritoras não são nem iniciantes bem-dispostas para a jornada, nem profissionais confiantes com um nome conhecido. Nesse ínterim, em que a escritora está sozinha por um longo período com seu trabalho, um “engenhosa” pode ser o bastante para direcioná-la a um plano mais corajoso, e um “não muito apreciável” a leva de volta às convenções. Uma pequena série de limitações pode detê-la antes de ela jamais ser digna de menção. Nesse período intermediário, as mulheres em particular parecem vulneráveis a ter seus trabalhos podados até se tornarem compactos o bastante para caber dentro de uma capa cor-de-rosa.
Existe uma mudança fundamental em como eu olho para meu trabalho agora, como vejo o romance que já escrevi e o que estou desenvolvendo neste momento. Desisti por completo de enviar cartas-consulta, e usei as críticas que George recebeu para melhorar o livro – romance que há muito tempo teria sido deixado de lado com frustração se eu não tivesse feito esse experimento. A versão editada foi encaminhada à agente que passou a me representar após ter visto uma matéria de não ficção que eu escrevera sob meu próprio nome. Paciência, fé, respeito às regras – a sabedoria convencional nunca teria me trazido até aqui.