Não é novidade alguma. Em nosso ambiente cultural, a crítica é frequentemente exercida como um gesto mais próximo à cortesia que à afirmação, carícia elogiosa, de preferência entre amigos. Deixou de ser surpreendente nos depararmos com autores que devolvem ao leitor carícias recebidas em resenhas, subscritas como autodescrição e autoelogio daquilo que teriam proposto realizar.
O problema não está na corrente de afetos ou no drapeado da admiração mútua, mas na diminuição do gesto crítico, agora reduzido a um sistema de ecos. Essas reverberações nem chegam a adquirir força de propagação poética, mas, claro, cumprem seu papel estratégico de estimular o leitor brasileiro a comprar, e talvez mesmo a ler, a literatura contemporânea dos conterrâneos. A estratégia, ainda assim, é mesquinha, pois abdica da possibilidade de uma crítica que articule diferenças, ou que se articula enquanto diferença em relação ao objeto tratado. O círculo não é só vicioso; a plasticidade da crítica se enrijece numa técnica de blindagem que se atém à exposição desnecessária e tediosa de temas e enredos, infantilizando o leitor. Embora a carícia crítica não possua as certezas da velha crítica normativa, é também arrogante ao seu modo, uma vez que serve para perpetuar a paz entre texto e leitor. A isso se soma o mote muito nosso de que, em matéria de crítica contemporânea, a receita ética a seguir é a de um falar apenas do que amo. Entre nós, a inspiração e a legitimação da crítica amorosa têm sido buscadas em Roland Barthes.
Na semana em que sofreu o atropelamento que o levaria à morte em 26 de março de 1980, Barthes redigia um ensaio que seria apresentado em um congresso dedicado a Stendhal, em Milão. Esse texto interrompido pela morte e deixado inacabado levava o título “Sempre fracassamos ao falar do que amamos”. O título importa aqui porque enuncia a conexão entre o falar do que se ama e a dificuldade de dizer, tendo por resultado a sensação desconfortável e inevitável de fracasso. Sem a experiência do embaraço, do desconforto da afirmação amorosa, a crítica esmorece.
A atitude teórico-crítica de Barthes, em seus momentos mais radicais, consistiu precisamente no atrevimento, na teimosia de fazer o elogio do não elogiável. Fez-se então necessário que assumisse publicamente a dimensão clandestina e arcaizante de seu gosto estético. Barthes problematizou a função crítica do gozo estético ao trazer de volta à cena de leitura, em leituras finas, autores inatuais, inviabilizados pelos tiques de leitura ou quase ilegíveis de tão cobertos pelo mofo cultural. Iluminou uma marginalidade literária que não podia ser identificada à noção de vanguarda ou com o brio transgressor da juventude, a marginalidade de uma literatura enrugada e démodé. Declarou também sua paixão biográfica, o interesse pelas vidas dos autores, confessando ter preferido, em algumas épocas, os diários de Kafka e as cadernetas de Tolstói à sua obra. Desarmou o binômio clássico/moderno (e seus correlatos) e, se por um lado aderiu à escrita experimental de Sollers e Robbe-Grillet, por outro expôs claramente suas ressalvas a Artaud (a recusa do livro) e ao Surrealismo (“os surrealistas não atingiram o corpo”), preferindo a releitura intensiva de autores neoclássicos.
Ao escrever sobre Racine (ou Michelet, ou Loyola), não fazia o elogio sossegado daquilo que amava, mas criava condições críticas para desrecalcar certos autores, liberando outros modos de os ler. Ler os clássicos como ele leu — criando uma nova linguagem capaz de dar conta da performance da leitura sem recair em trivialidades sociológicas — era também um gesto transgressor. O trabalho crítico não se contentava com o papel de incentivo à leitura, mas intervinha cirurgicamente no campo literário, cutucando as feridas mal curadas da crítica. Daí reações tão virulentas de um R. Picard.
A crítica amorosa de Barthes tem muito pouco ou nada a ver com nossa cultura atual de carícia crítica. Esta atua como instrumento publicitário do objeto literário em desprestígio, ao passo que aquela articulava vigorosamente a diferença entre a leitura e o livro. Enquanto a crítica amorosa desestabiliza, a carícia crítica é anestésica, parasitária, apodrece no mesmo ato que a faz surgir. Para a crítica amorosa, decepcionar é uma arte, sendo também seu princípio, de modo que num mesmo lance de linguagem inventa um novo ponto de vista e escancara as velhas molduras de recepção. Enquanto a carícia age em nome da rima pobre de uma boa fé, a crítica amorosa sabe que as boas intenções também constroem um inferno.