“Você tá mais deprimido que eu, Luciano”, disse, rindo, Caio, na noite de 24 de fevereiro de 1996. Luciano não escondia. Saía do quarto que o amigo estava, no hospital, com a desculpa de acender um cigarro. Fumava lágrimas. Voltava, olhos vermelhos, mareados. Caio, fraquinho, magrinho, ria: “Traz isso que você fumou, também quero”. Os dois gargalhavam. Luciano Alabarse foi um dos poucos amigos que acompanhou, de perto, Caio Fernando Abreu, a doença, até o fim. “Lembra que eu escrevi o que queria pôr na minha lápide?”, olhos atentos, a morte quase como uma performance. Luciano olhou para ele, tentou segurar o riso-quase-choro. “Caio F., que muito amou”. O “Caio F.” era abreviação de “Caio Fernando” mas também citação a Christiane F., drogada e prostituída, best-seller barra-pesada que povoou o imaginário de um Ocidente louco por uma profanação. Risos. Era um sábado e Luciano foi ficando no hospital até mais tarde.
Caio estava animado, tomou sopa (como odiava), tinha flores sobre a mesa. Fez questão de ter um girassol no quatro do hospital. Depois de muito hesitar sair de São Paulo, daquele apê delícia na Frei Caneca, Caio preferiu voltar para Porto Alegre. Perto da família (não que isso representasse oh-grande-coisa), mas sei lá, os amigos, a gauchice ranzinza, o chimarrão. Havia algo de conforto ali. O Menino Deus, a calmaria. Caio numa vida-jardim. Acordava cedo, tomava banho de sol, de chuva da Lorenzetti, vapores cheirosos de sabonete Phebo, penteava os ralos cabelos e ia realizar o processo fotossintético da leitura. Batia um sono, uma preguiça, depois acordava, seguia tarde e noite adentro. À noite, a coisa doía. A vitamina D do sol se esvaía e tome o pensamento a vagar. Havia o medo. E o escuro. Aquela pessoa intermitente na cabeça, aquele encontro todo errado, o que podia ter sido.
Luciano olha para o girassol sobre a mesa e Caio, mirando a televisão, parece acomodar o riso em algum lugar entre os olhos e a boca. “Tô cansado”. Não sei bem quem disse, talvez Caio. Luciano deu um beijo na testa do amigo e apagou a luz. Quando faleceu às 13h30 do domingo, 25 de fevereiro de 1996, Caio Fernando Abreu pesava 39 quilos e oitocentos gramas. Foi enterrado no Cemitério São Miguel e Almas em Porto Alegre e, depois, seus restos mortais foram transferidos, juntos com os da mãe e do pai, para o Cemitério Ecumênico João XXIII. Com a vasta divulgação da doença de Caio, a então impronunciável Aids, enfermeiros tinham receio de tocá-lo. Conhecidos olhavam de longe. No cemitério, amigos, gente da militância gay, artistas, gente do teatro, da literatura, da noite. “Foi uma festa o enterro do Caio, chegaram umas drags, a bichice correu solta no cemitério”, me contou Fernando Pocahy, um querido amigo gaúcho, pesquisador e, na época que nos conhecemos, já nos anos 2000, militante do grupo gay gaúcho Nuances.
Dias antes de morrer, Caio fizera um testamento – bem à sua moda, é verdade. Nada registrado em cartório, era uma carta, para ser lida, pelo seu pai, depois de sua morte. Deixava os direitos da obra teatral para Marcos Breda; da literária para Gil Veloso; e da cinematográfica e audiovisual para Gilberto Gawronski – todos amigos. A vontade de Caio não foi cumprida. Quem administra toda obra do escritor é a família. Sete dias depois do enterro, os amigos se reuniram para a leitura da carta. Seu Zaél, pai de Caio Fernando, sério, emocionado, foi enumerando os legados do filho. E quando chegou na parte dedicada a Gilberto Grawonski, que Caio chamava de Betinho, o pai teve que ler e segurar o riso. Porque, num parêntesis, repleto de exclamações, ao relatar os direitos autorais sobre o romance Onde andará Dulce Veiga? (levado ao cinema pelo diretor Guilherme Almeida Prado), Caio, na carta-testamento-pintosa, aos risos, celebrando chegar ao céu de nuvens de algodão e pétalas de flores, escreveu para o amigo: “Betinho, se o Spielberg quiser filmar Dulce Veiga também, imagina? A senhora vai ficar rica!!!”.
E partiu.
> Thiago Soares, jornalista, é professor e pesquisador da UFPE