A "capacidade de depurar os movimentos da subjetividade arredia e de idealizar um sublime avesso à mundanidade, numa dinâmica alimentada, de um lado, pelo brilho de uma retórica cínica e, de outro, pelo apelo melodramático de uma sentimentalidade desabrida". Eis um bom começo para se falar de um dos escritores contemporâneos mais importantes no Brasil: Sérgio Sant'Anna, um autor em cena é o nome do livro organizado pelas pesquisadoras Ângela Maria Dias e Regina Dalcastagnè, publicado pela Eduff (Editora da Universidade Federal Fluminense). Além dos dez textos sobre a obra de Sant'Anna, o livro traz também um artigo do próprio escritor sobre o que ele chama de "a arte de não escrever". Com exclusividade, o Suplemento Pernambuco o publica abaixo:
"Muito já se escreveu sobre a arte da poesia, ou da narrativa, mas nada sobre essa outra arte tão dura e demandante de rigor que é a de silenciar quando não se tem o que dizer, ou o desejo de dizê-lo, ou, principalmente, os recursos para tanto. Este pequeno ensaio visa a preencher essa lacuna para aqueles que se iniciam na atividade literária, ou aqueles, veteranos, que se veem impelidos a continuar simplesmente por que começaram.
Aos aspirantes a escritor que se sentem torturados pela desconfiança de que não têm aptidão para o ofício, pode-se dizer que, quase sempre, estão certos. Mas é bom lembrar que somente os que duvidaram da própria incapacidade, através da ação, tiveram a oportunidade de confirmá-la. E também que escrever talvez seja, em grande parte dos casos, muito mais o exercício de uma vontade, às vezes férrea, do que a realização de uma vocação irreprimível, como aquela de um Rimbaud (mesmo assim parou logo) ou de um Jarry, que escreveu o seu primeiro Ubu para gozar um professor.
Poderiam esses dois exemplos insinuar que a grande pergunta ao pretendente a escritor é se as suas palavras fluem, com a espontaneidade do sentimento, dos seus corações e mentes diretamente para a folha de papel ou tela do computador? Se a resposta é sim, deve-se desconfiar em dobro, pois, não suportando a literatura qualquer tipo de primitivismo, é muito provável que as composições nascidas desse fluxo se tornem um lixo ainda mais visguento do que aquele produzido pelo mero esforço. Este último, quando nada, pode servir também para o saudável exercício de cortar palavras, às vezes até a última delas.
Trabalhar com um computador, para os principiantes na informática, implica ainda um outro risco: pelo simples fato de conseguir alinhar frases e parágrafos o artista pode acreditar-se um gênio.
Mas onde se quer chegar? Àquele velho lugar comum, que os escritores repetem em entrevistas, de não sei quantos por cento de inspiração para não sei quantos de transpiração? Ou a alguma definição como a do coreógrafo Maurice Béjart, a propósito de Baudelaire, de que o poeta é um misto de delírio (palavra algo perigosa) e disciplina (palavra algo militar)? Não propriamente, pois não se trata, aqui, de um guia com o objetivo de introduzir ou aprimorar pessoas nos procedimentos do ofício literário, mas, ao contrário, de auxiliá-las no caminho da abstenção, entendendo-a como virtude e fenômeno produtivo do ponto de vista social e individual. À inflação, como se sabe, corresponde uma quantidade excessiva de papel-moeda sem o devido lastro em bens. Literariamente, isso equivaleria a um excesso de palavras para pouco ou nada a dizer, fenômeno bem brasileiro que remonta à Colônia e ao Império – seguindo adentro pela República – com seu bacharelismo beletrista. Trata-se, basicamente, de enrolar as gentes, com o discurso do jurista, do político e do homem de letras, isso quando as três condições não coexistem num só homem, espécime que teve o seu representante mais notável em Rui Barbosa. Uma perda de substância da linguagem, enfim. Em oposição a essa estética do latifúndio trabalhariam os escritores antiinflacionários, ecologistas da palavra, como Graciliano Ramos e João Cabral de Melo Neto, tratando de escrever menos e melhor.
O editor Pedro Paulo de Sena Madureira, em palestra, identificou como uma das causas desse mal brasileiro – variante intelectual da saúva – a quantidade de autores ou candidatos a, sem a devida correspondência em leitores, as poucas oportunidades de afirmação social e econômica no país, levando grande número de pessoas a buscar a carreira artística. Como todo mundo domina mais ou menos a língua, ao contrário da música e do desenho, daí para a tentação de escrever um livro é um pequeno passo.
Começa também aí uma série de infortúnios para o sujeito. O primeiro deles seria uma perda imediata da capacidade de viver espontaneamente. Tomem-se alguns exemplos simples como os atos (ou não-atos) de assistir ao anoitecer ou ver e ouvir a chuva. Para qualquer ser humano dotado de sensibilidade, isso pode ser oportunidade para a contemplação, a meditação desinteressada e até a integração com algo mais vasto. Para o escritor, não; para ele, toda vivência, inclusive a convivência com o semelhante, é encarada de forma utilitária, material, passível de transformação, ainda que em frases do tipo: “Os pneus chiavam no asfalto e as poças d’água refletiam os letreiros luminosos”. Quando se trata da convivência no amor, o risco de perda existencial é ainda maior. Norman Mailer escreveu um conto sobre isso: O caderno de notas. É sobre um jovem escritor e sua namorada. Vale a pena transcrever um pedaço.
“Há uma coisa que eu vou dizer a você”, ela continuou amargamente. “Você magoa os outros mais do que a pessoa mais cruel do mundo faria. E por quê? Vou lhe dizer por quê. É porque você nunca sente nada e faz os outros acreditarem que sente”. Ela percebeu que ele não estava escutando e perguntou, exasperada: “Em que você está pensando agora?”
“Em nada. Estou ouvindo você e gostaria que não estivesse tão zangada.”
Na verdade, ele estava bastante inquieto. Acabara de ter uma ideia para pôr no caderno de notas e isso o deixava ansioso, pensar que se não tirasse o caderno do bolso para anotar o pensamento, poderia esquecê-lo.
O escritor acaba conseguindo fazer a anotação, que é a seguinte:
Crise emocional agravada pelo caderno de notas. Jovem escritor, namorada. Escritor acusado de ser observador, não participante, da vida. Tem ideia que precisa anotar no caderno. Faz isso e a discussão piora. Garota rompe a relação por causa disso.
Pode-se retrucar que a essa perda corresponde um ganho considerável, a possibilidade de viver a existência em dois planos simultâneos: como vida e como obra. O jovem escritor de Mailer procura administrar isso, pois se a ideia do conto é boa, a garota também é legal e o autor-personagem tenta alcançá-la na próxima esquina. Bom, se acaso a houver perdido para sempre, restar-lhe-á o consolo de havê-la aprisionado no papel, ou o de que poderá inventar outras namoradas. A grande sedução da literatura – e eis uma das razões por que é tão difícil não escrever. Você pode amar imaginariamente, viver aventuras, cometer os mais diversos crimes e ainda receber prêmios por isso.
Tudo, é lógico, se o resultado for bem-sucedido. Do contrário, corre-se o risco, se a obra for publicada, de emoldurar um daqueles retratos amarelados, fixados num momento infeliz. E, o que é pior, não se poderá mais destruí-lo. Se levarmos em conta que o verdadeiro escritor começa por ser um crítico severo de si mesmo, a grande probabilidade é de que encare com desconfiança, para não dizer desgosto, todos os retratos passados, tentando retocá-los – ou eliminar seus traços – no seguinte e assim por diante. Algo tão infernal quanto um cão querendo morder o próprio rabo. E gasta-se uma vida nisso.
Já o hábito de ler, que também amplia a realidade a mais de um plano – creio mesmo que a vida é muito mais real nos livros e nos filmes – não entra em conflito com o existir, desde que se desfrute da leitura sem segundas intenções, de aprendizado, sobretudo o do ofício de escritor. Neste caso, perder-se-ia a pureza e o prazer primordiais daquela leitura ideal de Se um viajante numa noite de inverno, de Italo Calvino. E, como a percentagem autores/leitores é totalmente insatisfatória no Brasil, trata-se de aumentar a quantidade destes últimos, provavelmente à custa dos primeiros, com proveito qualitativo para ambos.
Quando se começa a escrever, os outros autores, até os antes admirados, passam, de imediato, à categoria de concorrentes, que, se você não conseguir superar, será tentado a reduzir pela crítica, velada ou pública. O que faz dos salões de cabeleireiro, perto dos literários, templos de inocência. Entre outras vantagens da abdicação – se for sincera, e não mera conformação às evidências – está a de livrar você próprio e os outros das dores amargas da inveja e do ressentimento. É evidente que essa adicação implica também na renúncia a certos ideais: alguns deles gloriosos, como o de onipotência sobre o verbo, cujo fim último é a perfeição; outros, apenas nobres, como o de dotar a realidade, tão impermeável, de um contorno preciso; outros, como já vimos, de motivação mais íntima, como o de substituir essa realidade por uma mais de acordo com as nossas inclinações.
Mas, ainda que se trate de uma inação, a arte de não escrever não pode ser confundida com a preguiça, pois, ao contrário desta, requer método e força de vontade, e, se se pode falar em exercício, é o da ascese. Em termos mais práticos, seria comparável a parar de fumar ou aos regimes alimentares: a cada cigarro que você não fuma, a cada substância gordurosa de que se abstém, o ar penetra mais puro em seus pulmões, o sangue flui límpido por suas veias. Assim é também com a palavra: a cada uma delas não escrita, a atmosfera se torna menos rarefeita, a vida corre solta, a chuva e a noite caem sem nenhuma interferência sua e você, sem dar-se conta disso, tornou-se personagem em vez de autor. O resultado, uma vez vencido o medo inicial, é comparável a jogar-se num espaço sem fim. Se, para além dele, encontra-se a morte, esta também não é um obstáculo sólido.
De todo modo, qualquer tentativa de evitá-la, outra grande motivação dos escritores, acaba por revelar-se fútil. Porém, se, apesar de tudo, a necessidade de expressar-se por escrito brota dentro de alguém como uma toxina endógena, é melhor expeli-la em palavras, sabendo sempre que a fonte é inesgotável; que escrever é como matar baratas com o sapato, elas continuam a se multiplicar, como neste ensaio aqui. Diante da contradição em que ele implica, o autor argumenta, em sua defesa, que talvez possa contribuir na formação desses seres tão singulares: os homens e mulheres comuns."