Silviano Santiago 08

“Não sinto o meu corpo. Não quero senti-lo por enquanto. Só permito a mim existir, hoje, enquanto consistência de palavras” – assim começa o vertiginoso diário fictício de Graciliano Ramos nas páginas de Em liberdade, de Silviano Santiago. Publicado em 1981, em diálogo e embate com os relatos de vida de ex-presos políticos em voga à época, o livro causou estranheza pela sua ousadia e originalidade. O incômodo vinha não só do ato de se tomar como objeto de pastiche um autor canônico, mas principalmente por fazer dessa apropriação desautorizada – em todos os sentidos do termo – a forma de reflexão literária das questões políticas que o regime autoritário ainda vigente deixava em aberto, apesar de tudo, no país. Há nas páginas do diário uma abdicação proposital da autoria de quem narra, um “tirar o corpo fora” da escrita para manter melhor a liberdade de ambos, ciente que está o escritor de como a relação entre poder e saber se joga toda nos corpos e neles, em última instância, é modelada.

O procedimento não é incomum na obra de Silviano Santiago. É retomado em Mil rosas roubadas (2014) pelo viés autoficcional, a partir da visão do corpo em coma do amigo querido, a que o relato opta por dar vida na biografia impossível que o narrador, um velho professor de História tenta ironicamente levar adiante: “Perco meu biógrafo. Ninguém me conheceu melhor que ele”, é dito logo de início, como uma senha do que virá pela frente. O estado do corpo meio morto, meio vivo, – ligado a sondas e aparelhos – traduz a compulsão biopolítica de fazer viver a todo custo. Mas a reversão de expectativas provocada pela perda do possível biógrafo, que se torna biografado, rasura a identificação dos corpos e, com isso, deixa entrever uma abdicação do sujeito (narrador) para instaurar uma experiência compartilhada do sensível, matéria do livro.

Escrita sem pai, porque intercambiáveis as figuras do biógrafo e do biografado – “perseguidor-perseguido”, nas palavras de quem narra –, ela se faz por linhas de fratura e desincorporação, que reforçam o processo de autodissimulação biográfica como espaço de incorporação desse terceiro que é o leitor. Pode-se falar, então, de uma comunidade emancipada, uma vez que se desfazem as fronteiras do sensível, da divisão estética entre os que atuam e os que leem por meio da narração de uma história comum que, paradoxalmente, instaura a individualidade do sujeito, a liberdade de sua escrita.

Os dois livros apresentam ainda outro elemento norteador da obra de Silviano Santiago: a memória. Desde O olhar (1974), em que do ponto de vista do menino fantasia e rememora a cena originária do romance familiar, o escritor confrontará o passado a partir de uma distância brechtiana, que faz da reminiscência um ato de memória do outro, não do mesmo. A reminiscência estará sempre ligada a esse primeiro olhar — “falso mentiroso” — que retorna como memória do que foi ou poderia ter sido, origem da narrativa e sua inserção numa história pessoal e social determinada. Essa alteridade constitutiva do texto instaura um “entre-lugar” discursivo – para lembrar aqui um famoso conceito do ensaísta, forjado no início dos anos de 1970 – como forma de se situar na sua história familiar e na tradição literária brasileira, assumindo a postura de “um antropólogo que não precisa deixar o seu próprio país”, conforme diz em um de seus ensaios.

Em certos casos, o antropólogo se confunde com o antropófago e a ele se superpõe, para reforçar ainda mais a feição paradoxal do “entre-lugar”. É o que ocorre em O banquete (1970), que desde o título sugere a aludida superposição ou devoração. Em “O piano”, um dos contos do livro, a criança é punida por morder os outros na rua, o que acarreta severa punição do pai, ao esfregar violentamente com sabão de barra a boca do filho. A mordida é uma não fala — ou fala interdita — que inscreve no corpo do futuro escritor uma memória do acontecimento que demanda a escrita e somente nela adquire forma e sentido — vale dizer, torna-se comum, comunicável.
Para “digerir” o evento pretérito é necessário refazê-lo como obra literária, por meio da memória-citação que toma corpo na obra do autor de O banquete. Em um de seus contos, o narrador recorre a Valéry para expressar o processo de remissão literária. Diz ele: “Um leão é feito de carneiros digeridos”, e depois corrige a frase nos termos de Gide: “Um leão é feito de sua imagem digerida, pois a imagem […] só é criada para realçar certas virtudes do modelo original”, que passa a ser um ponto de referência na “família” literária do escritor.

Prestadas as contas com a antropofagia oswaldiana, os textos perdem daí por diante seu referente primeiro, passam a ser imagens que devoram outras imagens, num processo interminável, descolando o leitor do referente para depois lançá-lo ressignificado de volta a ele e, por isso, abrindo-lhe a novas perspectivas de compreensão. Devolve assim ao leitor seu corpo/corpus significante, sob a forma de um descompasso ou embate que engendra a experiência da leitura como experiência de vida: “A verdadeira leitura é uma luta entre subjetividades que afirmam e não abrem mão do que afirmam, sem as cores da intransigência. O conflito romanesco é, em forma de intriga, uma cópia do conflito da leitura. Ficção só existe quando há conflito, quando forças diferentes digladiam-se no interior do livro e no processo da sua circulação pela sociedade” – diz o narrador de Em liberdade.

Esse trânsito de mão-dupla da memória se apresenta como um dispositivo da escrita em que o sujeito e o texto indiciam um aquém da palavra — o corpo que se dá e a se ver como linguagem ficcional. É o caso do homoerotismo em contos de Keith Jarrett no Blue Note (1996) e de Histórias mal contadas (2005); é também o que ocorre em Stella Manhattan (1985), cujas “personagens-dobradiças”, no seu peculiar desdobramento, impedem que as questões de gênero e gender se tornem caducas, se transformem em categorias rígidas de reflexão e invenção.

O deslocamento do sujeito de um texto para outro, de uma imagem para seu contrário, de uma cultura instituída para o que ela recalca, reafirma o movimento da diferença, colocando em xeque o estatuto do texto literário. A estrutura do paradoxo — ou dobradiça — permite que sejam ensaiadas as mais distintas formas de enunciação, em busca de “um ritmo anônimo e exterior” da escrita. Artimanhas da literatura: redimensionar a natureza heterogênea das práticas sociais e culturais como uma política da forma.

O ritmo buscado leva Silviano-Artaud ao México, num movimento paroxístico que confina com a loucura e, em última instância, com o silêncio. Na forma monstruosa do anfíbio — “uma só cabeça e vários tentáculos, várias pernas-tentáculos que se assentam em terras diversas e variados mares” —, Viagem ao México (1995) superpõe o ano de nascimento de Silviano Santiago, 1936, ao ano da partida de Antonin Artaud para o México. Mais radical do que Em liberdade, a experiência vivida assume a forma de uma máscara ou assinatura, confunde uma e outra, até o limite da despersonalização, ou seja, da afirmação da verdade do discurso biográfico pela sua impossibilidade narrativa. Assim, o livro implode as fronteiras da invenção, da representação e seu duplo, da tradição em que paradoxalmente se insere.

O conto “O envelope azul”, de Histórias mal contadas, sintetiza as diversas linhas — indefinidas — que memória e ficção vão traçando. Num movimento de ir e vir textual, o narrador vai aos poucos delineando seus extravios pessoais, uma modalidade de experiência construída “como se a linguagem da lembrança devesse ser escrita pela ausência de palavras”, embora a escrita tenha de se valer delas para dar conta do vazio que o sujeito enuncia. Essa parece ser uma questão fundamental para o leitor diante de histórias cujo “desfecho” depende do desvendamento sempre adiado de um “segredo” que se formula como lugar de enunciação — e de recepção — que só é instigante “se o interlocutor nos sugere (escancaradamente) que está escondendo algo (intimamente)”.

Afinal, não é esse o jogo do texto literário? Ou uma das inúmeras formas de se pensar nas questões propostas pela obra de Silviano Santiago? Jogo a um só tempo inocente e perverso, por meio dele se cumpre a promessa de felicidade meio sem saída da literatura — “Depois que se é feliz o que acontece?”, diz o narrador em Mil rosas roubadas. Toda a obra do escritor é atravessada por essa pergunta, que a escrita contorna, rememora, desfaz e condensa no horizonte da forma enfim provisoriamente alcançada.

Leitura ficcional e leitura ensaística se conjugam: abrem caminho para o enfrentamento de valores literários, sociais e políticos impossíveis de serem apartados na arena onde se confrontam. Os textos de Silviano Santiago – não importa a inflexão predominante que cada um possa ter – insistem na configuração de uma escrita em que as culturas se reconhecem por meio de suas projeções de alteridade, já atravessadas pelos efeitos de globalização. Nesses termos, instauram formas singulares de interlocução que, por sua vez, impulsionam a construção de novas ficções teóricas.

Nessa forma de articulação estética e ética, o heterogêneo se apresenta como um processo de significação no qual se afirmam campos de força distintos e distintos critérios de avaliação. Ao valor enquanto horizonte consensual, a ser fundado no juízo crítico proveniente da demanda moderna de universalidade e totalização, contrapõe-se a relação como valor. Daí a emergência de um entre-lugar discursivo como possibilidade de redefinição ininterrupta do valor da literatura postulado enquanto resistência à uniformização globalizante.

Ficção e ensaio aparecem, enfim, investidos da autorreflexão de suas premissas até o limite de sua implosão e refuncionalização, até a destituição da transcendência que anteriormente garantia ao texto um lugar hegemônico na ordem dos discursos. Para tanto, o gesto crítico ou ficcional vale-se da natureza intersticial da literatura — uma forma entre outras, um valor entre outros — para melhor acessar as novas conexões e redes propiciadas pelo espaço intervalar que lhe garante sobrevida atualmente. Não é pouco como opção de leitura da nossa difícil contemporaneidade.

 

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