arte Gilberto Freyre

Arte de Hallina Beltrão

Em meio à movimentação gerada pela edição comemorativa dos 80 anos de Raízes do Brasil (Companhia das Letras), a Folha de São Paulo publicou uma polêmica entrevista com o sociólogo Jessé de Souza (UFF) sobre esse clássico. Nela, Souza deixa claro que as comemorações contínuas da obra camuflam importantes discussões sobre a história do país. As declarações foram comentadas na revista Peixe Elétrico em texto assinado pelo crítico literário Pedro Meira Monteiro, professor da Universidade de Princeton (EUA) e um dos responsáveis pela edição comemorativa.

Ainda que polêmicas, as ideias de Souza cumpriram um papel necessário de se fomentar o debate sobre Raízes e sobre a obra de Gilberto Freyre – a quem também critica em sua entrevista.

Para lançar outras ideias no debate, entrevistamos a historiadora Maria Lucia Garcia Pallares-Burke, uma das maiores especialistas na obra de Gilberto Freyre. Professora aposentada da USP, Pallares-Burke trouxe importantes contribuições para a interpretação desse clássico. Também foi responsável, junto com o esposo - o também historiador Peter Burke - por difundir Freyre em língua inglesa. Ela reconhece "a miséria do nosso debate acadêmico", mas não poupa críticas às afirmações de Souza desses clássicos ("são cientificamente nulas") e aponta para a necessidade de uma edição rigorosamente crítica de Casa-Grande e Senzala que analise as mudanças que Freyre realizou em sua obra ao longo dos anos. 

 

Tanto Gilberto Freyre com Casa-Grande quanto Sérgio Buarque de Holanda com Raízes do Brasil lançaram mão de interpretações estruturais da história brasileira - a mestiçagem e a cordialidade -, que foram e são usadas à exaustão e das formas mais diversas. Quais seriam os principais problemas da "exaustão" desses termos?

A nosso ver (nosso, porque incluo o Peter Burke nessa visão), o problema não é que as interpretações de GF e SBH estejam sendo usadas à exaustão ao serem repetidas, há décadas, por seus seguidores ou pretensos seguidores e seus leitores - mesmo que haja aqueles cansados de tanto ouvirem a repetição. O problema, ou melhor, os problemas reais são relativos às expectativas que essas intepretações têm gerado; expectativas que não parecem levar em conta ao menos três pontos essencias que deveriam ser considerados.

i. Nenhum livro pode oferecer uma interpretação de um país vasto sem simplificar, sem enfatizar alguns aspectos em detrimento de outros. Daí a necessidade, ou a inevitabilidade de interpretações rivais, o que as de Freyre e Buarque de Holanda, em certo sentido, são. A visão de Sergio é, por exemplo, muito mais crítica da sociedade brasileira do que a de Freyre. Pode-se dizer que enquanto a pergunta que Freyre procurava responder com seu livro era “quem somos nós”, a pergunta que Buarque de Holanda tentava responder era: “o que deu errado com o Brasil?” E enquanto Freyre, sem negar os problemas brasileiros, enaltecia em Casa-Grande a potencialidade que tem a cultura brasileira para a “riqueza dos antagonismos equilibrados”, Sergio, em Raízes, tinha uma visão bastante pessimista. Segundo ele, religiosidade dos brasileiros é superficial, seus intelectuais são inconsistentes e contraditórios, falta ao país disciplina, coesão, democracia, ordem e racionalidade. Na verdade é como se o livro tivesse sido escrito por um alemão, já que os valores enaltecidos por Buarque são ordem, disciplina, racionalidade e burocracia weberiana.

ii. Clássicos, como são os estudos da sociedade brasileira de GF e SBH, frequentemente são mal entendidos ou manipulados para apoiarem argumentos com os quais seus autores provavelmente não teriam concordado. Jessé de Souza, por exemplo, atribui a Freyre e a Buarque de Holanda uma idealização da sociedade norte-americana, “um paraiso na terra”, como diz; ideia que quando absorvida pelos brasileiros, estaria por trás, segundo ele, do complexo de inferioridade, do complexo de vira-lata que “nos” marca. Ora, tendo estudado Freyre e sua formação em profundidade, não encontro base em seu pensamento para sustentar a interpretação desse autor. Como Souza diz em uma de suas entrevistas, referindo-se a Freyre, Buarque e outros teóricos da sociedade brasileira: “O nosso mito é o mito da inferioridade. E a gente se vê, a gente idealiza os Estados Unidos [grifo da entrevistada]. Então todos esses teóricos, desde o século XIX, entre nós vão idealizar os Estados Unidos como paraíso na Terra, a Terra sem corrupção…”. Essa afirmação generalizadora de Souza pode atrair atenção, mas certamente não se sustenta; ou, para usar uma crítica que o próprio Souza faz tanto a Freyre quanto a Buarque de Holanda, é “cientificamente nula”.

iii. Essas famosas intepretações da sociedade brasileira foram escritas nos anos 1930 e o Brasil mudou em muitos sentidos desde então. Na época, a questão da identidade nacional – intimamente relacionada ao “problema da raça” - estava em pauta, não só no Brasil mas em muitos outros países. E foi a essa questão que as obras de Freyre, Buarque de Hollanda, e mesmo Paulo Prado anos antes, buscavam responder, cada uma a seu modo. Com a publicação das obras desses autores, e mesmo de Caio Prado Junior anos mais tarde, o Brasil se viu sacudido, como bem lembrou Antonio Candido, por trabalhos que tiveram, naquele momento histórico, um inegável impacto libertador dos paradigmas racistas então prevalescentes. Enfim, o que é importante lembrar, seguindo os conselhos do grande historiador intelectual Quentin Skinner, é que "recuperar a identidade histórica" de um texto é essencial para a sua compreensão. Em outras palavras, ao invés de se considerar os textos como "estando num eterno presente" (floating around in a kind of eternal present) e como sendo "matéria auto-suficiente, bastando uma análise textual para entendê-los", para compreendê-los, deveríamos considerá-los como fazendo intervenções nos debates políticos e intelectuais de seu tempo.

Em entrevista recente à Folha de São Paulo, o professor Jessé Souza lançou interessantes provocações sobre Raízes do Brasil. Diz ele que a celebração dos 80 anos de Raízes do Brasil mostra a pobreza de nosso debate acadêmico e público em virtude das limitações científicas da interpretação de Sérgio Buarque. Além de desconsiderar, aparentemente, as revisões que o autor fez ao longo das edições, Souza parece diminuir a importância do movimento que Buarque, Freyre e Caio Prado iniciaram nos anos 1930 de tentar interpretar um país extremamente complexo. Qual sua opinião em relação a tentativas como a de Jessé de tentar diminuir a importância dessas já clássicas interpretações do Brasil?

Nós não conhecemos os livros de Souza e o que sabemos sobre ele se baseia em entrevistas reproduzidas em jornais ou TV, e alguns artigos. Confesso que o próprio título de seu último livro, A Tolice da Inteligência Brasileira – em destaque em muitas dessas entrevistas – me desanimou, pelo que anuncia de presunção, atitude que suas entrevistas parecem confirmar. Apesar disso, concordamos com Souza em dois pontos: primeiro, que todos os clássicos devem ser lidos criticamente, e não tratados como se fossem sagrados. E, segundo, que existe, de fato, o que ele chama de “miséria do nosso debate acadêmico” e público. Mas também acreditamos que livros como os de Freyre e Buarque incluem insights muito importantes e que devemos continuar a lê-los e com eles nos engajar, ao invés de desconsiderá-los e desprezá-los. Essas obras ainda têm ideias que nos ajudam muito a pensar, a refletir, mesmo quando com elas não se concorda.

Em resumo, como provocações ou como sínteses, elas se mantém até hoje insubstituíveis. De fato, após aquele momento áureo do debate brasileiro, nos anos 1930, que produziu três grandes análises da sociedade brasileira, houve uma carência de acréscimos significativos. A excelente contribuição de Roberto DaMatta nos anos 1970 é, em certo sentido, uma continuação da de Freyre. Pode-se dizer que fora a contribuição significativa de Raymundo Faoro em 1958, nada de novo, na mesma classe das interpretações dos anos 1930, surgiu; em outras palavras, uma contribuição que leve em conta as grandes mudanças desde aquela época ainda está para ser feita. O verdadeiro desafio para os intelectuais de hoje é, pois, construir uma nova interpretação do Brasil levando em conta o grande aumento da populacão brasileira, da urbanização, da classe média, as novas formas de comunicação na nova era digital, as novas formas de cultura, como a telenovela, etc; enfim, uma interpretação, ou várias interpretações, que considere coisas não discutidas pelos nossos “grandes explicadores”, porque não existiam então.

Simplesmente descartar esses “explicadores” do Brasil como não científicos e fazer comentários rudes e simplistas, tal como Souza muitas vezes faz, parece ser uma saída facil demais - ‘an easy way out’, como dizem os ingleses - e muito pouco, ou nada, iluminadora. Como pode se sustentar, por exemplo, a afirmação de que “a herança da escravidão nunca foi criticada entre nós”, tal como Souza afirma? Uma leitura integral, séria e não ligeira da própria obra de Freyre desmontaria essa afirmação, assim como a leitura de tantos outros autores, como os sociólogos da USP mais tarde. Isso, para não lembrar de autores “menores” como o amigo e mentor do Freyre jovem, Rüdiger Bilden. Ele foi, na verdade, louvado por importantes membros da intelectualidade brasileira, já nos anos 1920, por anunciar em artigos um estudo – infelizmente jamais concluído - que mostraria como o legado da escravidão estava ainda presente e atuante, a impedir o desenvolvimento da, então ainda nova, república brasileira.

É possível dizer que Casa Grande & Senzala e Raízes do Brasil estão impregnados por uma interpretação sociológica, que leva em consideração a análise de estruturas sociais e perde de vista a importância da escolha individual?

Essa questão advém de um equívoco, um mal-entendimento sobre o propósito desses livros. Se alguém oferece uma interpretação de toda uma sociedade, ou cultura, num único volume, em termos estruturais – no caso de Freyre, elegendo, por exemplo, a mestiçagem como o elemento definidor da nossa cultura, assim como a fraqueza do Estado e a importância dos senhores do engenho, que criam seus ‘reinos’ – não há espaço para a discussão dos indivíduos em detalhe. Isso não significa, no entanto, que qualquer um que proponha uma interpretação nesses termos estruturais seja um determinista econômico ou social. Simplesmente significa que na sua interpretação abrangente de toda uma sociedade, as escolhas individuais, que podem existir, não podem ter prioridade; elas têm de ser analisadas no âmbito de biografias ou do estudos de uma pequena comunidade, ou seja, da microhistória.

Nos seus 80 anos, Raízes do Brasil ganhou uma edição crítica, com notas e nove ensaios de especialistas. Será que seria hora de se pensar em algo parecido com Casa-Grande e Senzala? O que a senhora acha das edições que o clássico de Freyre tem recebido ao longo dos anos? Ainda faltaria uma edição definitiva dessa obra, que a reposicionasse de forma crítica nesse momento histórico que estamos vivendo, ressignificando em alguma medida a imagem de Freyre como um pensador exótico fora do eixo Rio-SP?

Há, de fato, uma “edição crítica” de Casa-Grande & Senzala, organizada por Guillermo Giucci, Enrique Larreta e o saudoso Edson Nery da Fonseca, publicada em 2002, que contém mais de 30 ensaios críticos, se não me engano - ou seja, muito mais do que os nove ensaios incluidos na edição crítica de Raízes. O que falta no caso de Casa-Grande é seguramente uma edição de fato cuidadosamente crítica, no sentido de ser uma edição que aponte todas as mudanças nos textos feitas por Freyre ao longo dos anos, por menores que elas sejam. No nosso entender, no entanto, o melhor meio de reposicionar Freyre nesse atual momento histórico seria alguém se esforçar por continuar sua famosa trilogia sobre a sociedade brasileira até o século 21. Tal livro, que poderia se chamar “O condomínio e a favela” teria de discutir como a interpretação de Freyre deveria ser modificada para levar em conta as mudanças econômicas, sociais políticas e culturais que transformaram o país desde 1933. Como você sugeriu, tal continuação poderia então oferecer uma visão do Brasil de hoje tal como visto a partir do Recife, de Belém, Porto Alegre, assim como de São Paulo, Rio de Janeiro e outros lugares.

A visão de Freyre sobre a importância da mestiçagem precisaria também, nessa nova obra, ser ampliada para incluir o modo como os sucessivos governos pós-1933 se apossaram da controversa idéia de “democracia racial” atribuida a Freyre. Teria também de incluir a crítica da mestiçagem feita por acadêmicos a partir de Florestan Fernandes, apontando para a importância da discriminação racial existente no Brasil; e finalmente teria de enfrentar a questão da rejeição da democracia racial, mesmo como uma ideal, realizada por alguns setores do Movimento Negro que se referem à mestiçagem como ‘linchamento étnico” ou “linchamento branco”.

 

Maria Lucia Pallares-Burke ainda fez duas considerações sobre a obra desses "explicadores do Brasil" fora das perguntas feitas:

a- Refletindo sobre a obra de Sergio e sua distinção entre sociedades patrimoniais e burocráticas, diríamos que essa distinção é valiosa, desde que não procuremos formas puras dessas sociedades, acreditando que existam, e que uma é ruim e outra é boa; desconsiderando, portanto, o que cada uma tem de custos e benefícios. Pois se a sociedade burocrática tende a ser mais racional, mais justa e mais impessoal, a patrimonial pode pecar por ser menos justa e racional, mas ganha em flexibilidade. Assim, no primeiro tipo de sociedade, as regras são justas e racionais, mas as pessoas tendem a administrá-las de modo rígido e literal; na outra, as regras são mais arbitrárias e são seguidas ou não seguidas de um modo mais flexível, graças ao “jeitinho”, por exemplo, no caso brasileiro. Algumas sociedades são mais burocráticas no sentido weberiano, do que outras, como as escandinavas; enquanto outras, como a italiana e brasileira, mais patrimoniais. Nas sociedades burocráticas, o pais legal e o país real mais ou menos se confundem; enquanto nas sociedades patrimoniais os dois países, o real e o legal, estão muito distantes um do outro. Nessa linha, lemos a interpretação de Sergio Buarque como contendo a esperança de que o Brasil se aproxime, um dia, do modelo burocrático. Nesse sentido, se ele estivesse vivo hoje, suponho que estaria feliz com o movimento do Lava Jato, vendo-o como uma iniciativa que poderia levar à aproximação entre o país real e o pais legal - mesmo se, ao que parece, este movimento está se voltando contra o PT, partido que ele, Sergio, ajudou a fundar.

b- Qualificar as interpretações dos teóricos, dos “explicadores” do Brasil, como “cientificamente nulas”, como faz Jessé de Souza, é, sem dúvida, uma forma violenta e bombástica de desclassificá-los e desqualificá-los – e de atrair grande público. Argumentar de um modo não bombástico implicaria refletir, por exemplo, sobre a inevitabilidade de se ser um tanto impressionista quando se tenta interpretar um país vasto e complexo, mesmo quando se supõe que uma abordagem “científica” da realidade é possível. E também implicaria refletir sobre a necessidade de se ter um imenso time de pesquisadores para produzir um trabalho científico sobre toda a sociedade brasileira; e mais ainda, sobre o problema de se reconciliar os pontos de vista variados desse grande time de pesquisadores, já que, sendo humanos, eles não veriam a sociedade estudada do mesmo modo. Pois bem, apesar de Souza demolir Buarque de Holanda e outros teóricos, sob a acusação de serem não-científicos, é no mínimo irônico vê-lo, em certo sentido, como que ilustrando os comentários feitos por Buarque sobre os intelectuais brasileiros, quando diz que eles tendem a dedicar pouca estima às verdadeiras especulações intelectuais, mas devotam “amor à frase sonora” e à “erudição ostentosa”, que servirão, no final das contas, apenas para marcar uma distinção social e não para fazer da inteligência um “instrumento de conhecimento e de ação”.

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