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O escritor Bernardo Carvalho lança o livro Simpatia pelo demônio (Companhia das Letras), já à venda nas livrarias. A obra narra a história de um funcionário de uma agência humanitária designado para levar o resgate que libertará o jovem refém de um grupo extremista. Enquanto espera para travar contato com os terroristas, o personagem revê o mais tortuoso episódio de paixão de sua vida: seu caso com um estudante mexicano em Berlim. 

Antecipamos abaixo um trecho inédito da obra.

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5. O princípio de uma missão secreta é permanecer secreta, a menos que os principais envolvidos estejam divididos quanto ao mérito da questão. Gente importante dentro da agência teria razões de sobra para sabotar essa ação antes de ela ter início. Bastaria lançar o rumor. Os assuntos confidenciais, uma vez alardeados, são sempre os que circulam com maior rapidez, pela inércia de uma excitação transgressora, muitas vezes fora de lugar, substituta de alguma necessidade individual, interior, uma carência, uma neurose, um recalque. Revelar operações secretas é o que resta a quem não participa delas. Nesse caso, entretanto, era o próprio diretor quem em princípio mais interesse deveria ter num vazamento. A missão abria uma exceção moralmente insustentável diante das vidas de funcionários que, por cumprimento das regras internas da agência, não puderam ser negociadas e que terminaram sob a lâmina dos punhais. Se por um lado, como alegava o diretor, o futuro da agência dependia do cumprimento daquela missão, por outro, manter sigilo significava não só romper com as diretrizes internas mas compactuar com um pragmatismo abjeto. E era o que mais o irritava e constrangia, aparentemente. Precisava de um funcionário de confiança, que pudesse pagar o resgate em sigilo, sem nenhum vínculo com a agência ou com os Estados dos quais a agência dependia. O segredo seria garantido pela própria improbabilidade da operação. E a escolha do Rato, um homem que nada tinha de agente secreto, era a mais improvável de todas. Ao mesmo tempo, o fato de não faltarem motivos para sua demissão tornava‐o àquela altura o candidato ideal. Era impossível associar sua demissão iminente e inevitável ao acobertamento do que quer que fosse, a menos que ele mesmo o confessasse — mas confessar o quê, se não saberia nada, não conheceria os verdadeiros mandantes nem o refém? Além disso, era muito improvável que, uma vez demitido, alguém como ele aceitasse participar de uma operação que só poderia humilhá‐lo ainda mais. No final das contas, o diretor não lhe propunha uma missão; estava lhe pedindo um favor e um sacrifício, por tudo o que já fizera por ele e pelo futuro da agência.

6. O Rato era um profissional tarimbado, com experiência de guerra, quando sua tese de doutorado, cuja publicação coincidiu com sua ascensão fulgurante dentro da agência humanitária, mudou o modo de intervir em zonas de conflito interétnico e inter‐religioso. A reputação dele, a despeito dos desafetos, desde então só cresceu. E, se acabou destroçada em questão de horas, a responsabilidade foi toda sua, consequência de um mau passo que lhe revirou a vida pública e privada uma semana antes de ele ser chamado à sala do diretor para uma conversa que, pela sincronia, só podia tratar da sua demissão. Não esperava ouvir o que ouviu. A ruína fez a ocasião: sua situação profissional insustentável dentro da agência era o disfarce perfeito para uma missão que o diretor não podia propor a mais ninguém.

Aceitá‐la só expunha o Rato ao risco de mais desonra, no caso de tudo vir a ser descoberto, para não falar no risco de vida, admitindo que a sua valesse bem menos que a do desconhecido que ele devia salvar. Também não podia descartar que os supostos mandantes — os Estados ou quem quer que estivesse por trás da ação — viessem a tomar providências para eliminá‐lo, por questões de sigilo e segurança, uma vez cumprida a missão. O Rato podia ter seus defeitos, mas não tinha vocação para mártir, nem era do tipo aventureiro, que tira proveito pessoal do risco. Tampouco era arrivista ou submisso a ponto de arriscar suas convicções para agradar superiores. Não tinha por que vestir a camisa da agência se fosse para abrir mão da razão e do bom senso, ainda mais depois de ser demitido. Não dispunha do altruísmo inviolável ou do cinismo que é capaz de justificar o desapego pessoal, em nome do trabalho, com respostas tão abstratas e automáticas quanto a da vocação humanitária desinteressada, que além do mais não cabia naquele caso. Se havia algum bem a colher para a agência, como alegava o diretor, seria a longo prazo e por meios que a conspurcavam. Em princípio, não havia explicação para o que o levava a aceitar, depois de demitido, uma missão para a qual não fora talhado e que contradizia o estatuto da agência para a qual trabalhara por quase trinta anos. Não tinha nada a ganhar. Teria de ir só, como um espião, e no caso de alguma coisa dar errado, no caso de perder o controle, no caso de vir a ser malsucedido, também cair só, pagando sozinho pelo desmando, não apenas com a reputação já comprometida mas talvez com a vida. Era preciso conhecê‐lo bem — ou intuir o momento, como fazia o diretor — para supor que aceitasse o sacrifício. Porque aquela era uma missão suicida. “Por que não mandam um agente secreto, gente que trabalha na área?”, o Rato afinal perguntou. “Porque não há consenso entre os principais interessados. Preferimos não correr riscos. Ninguém melhor que você para esse papel”, o diretor desconversou, dando a entender que havia coisas das quais não podia falar e que talvez fosse melhor o Rato não saber. Ele teria de tomar decisões com a autonomia e a independência de quem age por conta própria, à revelia dos chefes, embora na verdade apenas seguisse ordens de chefes cuja identidade desconhecia. Assim, no caso de falhar, não levaria a agência humanitária consigo em sua queda autônoma e independente. Em caso de urgência ou de algum imprevisto, não teria com quem contar. Não haveria a quem recorrer. Sofreria todas as consequências sozinho. Teria de arcar sozinho com a responsabilidade de seus atos. Como um agente secreto, justamente. Um anjo caído. A missão seria sua escola na vida que começava fora da agência.

7. Nada explicava sua presença ali, numa zona de guerra onde ninguém queria estar e onde, paradoxalmente, ele não estaria se ainda trabalhasse para a agência humanitária. Aqueles que o receberam e os que ele contratou ao chegar não estavam ali para fazer perguntas. Não precisavam saber que ele trabalhara para a agência, que já não trabalhava para a agência, nem que, demitido, seguia trabalhando para a agência secretamente. As explicações seriam demasiado complicadas e só levantariam mais suspeitas, aumentando os riscos. Aqueles homens conheciam as próprias atribuições e, se é que suspeitavam de alguma coisa, deviam se contentar com o que recebiam para fazer o que lhes era pedido sem entrar no mérito ou nas razões de quem pagava. Mas a figura do Rato não ajudava. Seria natural que não tivessem vontade de perguntar nada e agissem como mercenários profissionais, se a solidão do homem que os contratava não expressasse uma forma insistente e provocativa de charada. Estava completamente só. E, embora insondáveis, suas razões também eram demasiado profundas para que, na falta de interlocutores e de perguntas, não emergissem naturalmente em modos e gestos, apesar de sua discrição e de seu silêncio, à maneira de um trauma recalcado que se manifesta fora do lugar, onde menos se espera. A pulseira que ele usava, por exemplo, podia ter função de combate no braço de outros homens, guerreiros de culturas exóticas, mas de nada servia no braço do funcionário de uma agência internacional encarregada de promover a paz ou no braço de um homem encarregado de pagar o resgate por um refém que não conhecia. O Rato colecionava adornos de guerra dos povos que visitara a trabalho, adornos que obtivera por meios no mínimo pouco condizentes com as funções dele. Comprara as pulseiras por ninharias — quando não as recebera de graça, como presente —, e nunca sofreu da má consciência de se aproveitar dos homens que ajudava. Realizava seu trabalho com competência, nunca lhe passou pela cabeça perder a oportunidade de adquirir os objetos que mais cobiçava, pelo preço que conseguisse, de preferência o mais baixo. Esse comércio era um vício menor, ao qual os superiores da agência faziam vista grossa mas que irritava os colegas. As pulseiras eram um detalhe diante de sua reconhecida capacidade profissional. Ele as usava como amuletos. E, embora não fosse um homem supersticioso, havia quem especulasse que também se servisse do trabalho humanitário para se proteger de uma ameaça ainda maior do que qualquer atentado ou qualquer guerra, como se procurasse o horror para se desviar de si, para evitar o destino a que estaria condenado longe do perigo.

É possível visitar o horror alheio e sair ileso, mas ninguém escapa ao próprio horror. Espalhado por desafetos dentro da agência, o boato de que ele tirava proveito do sofrimento dos povos que visitava, na verdade nasceu da propaganda que ele mesmo fazia de suas pechinchas, como um adolescente a se gabar de conquistas amorosas, só para provocar, por oposição ao arrivismo e à hipocrisia dos colegas enredados em cálculos e estratégias diplomáticas de autopromoção às custas da dor alheia.

Não precisava de nada daquilo. A aparente inabilidade e a indiscrição com que revelava seus pequenos negócios eram vistas pelos colegas como confirmação de sua arrogância. As pulseiras não serviam apenas para que o reconhecessem, mas para que o difamassem. E, em vez de se defender, ele alimentava a difamação, deliberadamente, com mais mal‐entendidos. Como se não bastasse colecionar antigos adornos de guerra dos povos que visitava em missão humanitária — objetos que ele adquiria, como fazia questão de alardear, em tom de bazófia, de maneira pouco condizente com a ética humanitária —, também anotava, para depois repetir em recepções e reuniões sociais, preconceitos e injúrias que circulavam desde tempos imemoriais entre esses povos e que muito contribuíam para promover a suspeita e as guerras entre eles. O estranho é que os repetia, rindo, como piadas.

Seu interesse, ou melhor, sua obsessão por esses preconceitos disseminados entre os povos que conhecia, e precisamente porque os conhecia, em vez de reproduzir a ignorância e o ódio que grassava entre eles, tinha por objetivo ajudar a compreendê‐los, sem paternalismo, como vítimas da má‐fé e da opressão que eles mesmos alimentavam uns contra os outros. Decorava as injúrias e as repetia às gargalhadas, como quem recitasse poemas grotescos, sempre que a ocasião se apresentava, para um público consternado e horrorizado, enquanto na intimidade compunha poemas singelos que ninguém lia: “Os furacões deixaram frestas/por onde agora passa uma brisa/ indireta e maligna/ que resfria quando menos se espera”.

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